Escala Kinsey

A Escala Kinsey é um modelo que tenta descrever o comportamento sexual de uma pessoa. Criada pelo sexólogo americano Alfred Kinsey na metade do século passado, ela tenta dividir as pessoas em um gradiente entre hetero e homossexualidade, prevendo que nem todo mundo é exatamente uma coisa ou outra, inclusive sugerindo que podem existir variações durante a vida da pessoa. Algo que deveria ser pensamento progressivo, mas… que parece cada vez menos condizente com os movimentos progressistas do século XXI.

Primeiro, falemos da Escala: ela vai de 0 a 6, o 0 correspondendo a uma pessoa exclusivamente heterossexual e o 6 a uma pessoa exclusivamente homossexual. O 3, como vocês já devem ter previsto, corresponde a uma pessoa bissexual. Esses três pontos da escala são coisas com as quais já estamos acostumados a pensar no dia a dia. O grande diferencial da Escala Kinsey é considerar comportamentos e pensamentos que vivem entre esses conceitos mais comuns.

Uma pessoa no número 1 da Escala Kinsey é predominantemente heterossexual, mas eventualmente pode ter relações ou desejos homossexuais. Uma pessoa no 5 é o inverso. A ideia é que seres humanos são complexos e raramente vão ficar dentro de caixinhas muito bem definidas sobre sua sexualidade.

Trazendo para exemplos mais práticos, um homem que se relaciona com mulheres normalmente e de vez em quando se aventura com outro homem não é puramente heterossexual, mas não é um comportamento tão frequente ao ponto de colocá-lo na categoria de bissexual. Talvez seja o típico machão brasileiro, aquele que jura que não é gay apesar de sair com prostitutas transexuais para dar uma variada.

Não é o mesmo comportamento do bissexual, provavelmente nem são os mesmos padrões de atração. Se esse mesmo homem só tiver relações sexuais eventuais com outros homens que tem uma aparência muito feminina, é provável que ele realmente não sinta atração nenhuma por características masculinas.

Você pode estar tentando passar um juízo de valor sobre esse cidadão hipotético agora, achando que é um homossexual enrustido. Vejam bem, existem sim essas pessoas que vivem em negação por preconceitos internos e externos, mas quem disse que os outros tem que se adequar a uma categoria que a gente quer?

A grande sacada da Escala Kinsey é a mensagem que ela passa por tabela: a categorização está na mente do categorizador. Ou, de forma mais simples, que a gente tem tanta mania de colocar rótulos nas coisas para entender elas melhor que muitas vezes forçamos a barra para definir o outro. Se você tem birra de homem “tóxico” que paga de mulherengo, mas é pego com um travesti no motel, vai querer categorizar ele como gay porque sabe que isso vai doer mais nele.

Mas, se você for pensar friamente, sem querer forçar sua visão de mundo sobre os outros, vai reconhecer que ninguém é obrigado a obedecer às suas regras do que configura ser macho, fêmea, gay, hetero… o mundo continua girando e todo mundo tem sua própria vida para tocar. A Escala Kinsey é uma forma de enxergar sexualidade sem amarrar o outro nos seus problemas e opiniões.

É uma escala entre sentir atração pelo sexo oposto até sentir atração pelo mesmo sexo. Prevendo que pessoas podem ter gostos diferentes e que esses gostos podem variar durante a vida. Nos seus estudos, Kinsey menciona muita gente que teve fases de experimentação e curiosidade, mas que eventualmente se estabilizaram no seu nível atual. Ou mesmo gente que realmente se sentia de um jeito e foi mudando com o avanço da vida.

A sexualidade humana é muito mais abstrata do que mera reprodução, somos uma das espécies de primata que usam sexo como ferramenta de socialização. O bicho que faz sexo recreativo tem relações muito mais complexas com seus pares. E essa noção que vem dos anos 50 do século passado parece estar ficando mais e mais difícil de encaixar em 2023.

Explico: quando você pensa na Escala Kinsey, começa a se importar menos com consistência na atração sexual entre humanos. A ideia central é jogar os rótulos na lixeira e reconhecer uma dinâmica cheia de variáveis entre as pessoas. Ninguém precisa ser nada, existem níveis de variação, e a divisão entre 0 e 6 de Kinsey não é uma regra inescapável: é provável que boa parte da população mundial esteja em alguma fração de número.

Os números só estão lá para fazer gráficos, não para te definir. Até porque se você pensar numa mulher que se sente atraída por um transexual extremamente masculino, por exemplo, será que ela sequer mudou de número na escala? Atração e fantasia são coisas diferentes de praticar o ato sexual. Antes de lidar ao vivo e a cores com uma genitália igual a sua, como definir se a pessoa tem tendências homossexuais ou não? E como considerar quem faz sexo com outra pessoa mesmo não querendo de verdade, mas por medo de violência ou dificuldade de dizer não?

Percebem a confusão? Até onde entendemos com o estudo de civilizações antigas, essa “tara” por colocar todo mundo dentro de uma caixinha de normal e aberração em nome de Cristo é relativamente recente. Os gregos antigos eram preconceituosos com muita coisa, mas não com homens tendo amantes homens jovens. Muitas culturas antigas não deixaram nenhum registro claro de abominação de homossexualidade. E é bem óbvio que isso sempre existiu. Desde que a pessoa se reproduzisse, não tinha muito problema.

A humanidade veio com um movimento puritano muito influenciado pelas religiões populares do Oriente Médio, e começou uma perseguição muito mais severa contra homossexuais, exclusivos ou eventuais. É dessa cultura de repressão estúpida que o movimento progressista atual tenta se livrar. E nisso eu estou 100% ao lado deles: essa fiscalização sobre atividades sexuais entre dois ou mais adultos que consentem é um desperdício de tempo incrível, além de ser munição para radicalizar gente que está sendo sacaneada por líderes corruptos.

Agora, onde eu percebo um problema sério: ao invés de redescobrir liberdade sexual, o povo progressista acabou cooptado pela ideologia da interseccionalidade, a ideia de que precisamos nos colocar em grupos para entender as relações sociais e assim enfrentar opressão e preconceito. Em tese, uma boa ideia, na prática, distorcida até o limiar da insanidade, especialmente quando falamos de sexualidade.

A partir da ideia da Escala Kinsey, podemos chegar numa conclusão libertadora: pessoas sentem atração pelo que elas sentem atração, não tem regra, não “tem que” nada. Você não vira ou desvira qualquer coisa nessa escala, você passeia por ela como der na sua telha, e nada é mais honesto do que seu sentimento ao lidar com sua sexualidade. Algumas coisas te atraem, outras não. Você não é hetero, gay, bi, “queer”, ecossexual, trans, maionese… você é uma pessoa.

E não está escrito em nenhum lugar que você é obrigado a manter qualquer coerência relacionada a um grupo ou outro. Você não deve nada aos heterossexuais, aos homossexuais, aos bissexuais, aos transsexuais… são só nomes que as pessoas dão para resumir uma tendência que têm. O perigo é alguém te forçar a ficar num grupo ou no outro contra sua vontade. Por isso eu detesto quem prega superioridade de qualquer uma dessas palavras inventadas sobre as outras. Na verdade, a Escala Kinsey tem infinitas subdivisões, e por pura matemática, é provável que você ocupe um número só seu nela.

Mas como as variações podem ser muito pequenas, são excelentes as chances de você achar um parceiro compatível. Quando eu penso sobre sexualidade dessa forma, eu enxergo um mundo que pode ser muito mais unido. Pessoas que não precisam de bandeira para serem elas mesmas, pessoas que sabem que todo mundo é diferente, mas que existem bilhões de outras pessoas que combinam com elas.

Num mundo ideal, abolimos rótulos de sexualidade. Gostou de uma pessoa? Tenta. Ela não quer? Que pena. Ela quer? Divirta-se. Não é para ser complicado. Sexo tem dupla função na humanidade: fazer filhos e gerar relações entre pessoas. E daí que a pessoa que você gosta está numa categoria considerada diferente da sua? A gente só coloca limites legais em pessoas que não podem consentir, o resto são adultos se relacionando como sempre fizeram desde o tempo das cavernas. É instinto, é natural.

Mas quando entra na cultura compartilhada de um povo que a porcaria do seu pronome ou bandeirinha colorida no seu perfil te define, começamos a dar passos para trás nesse sentido. Mais divisões, mais complicação na hora de se relacionar. O mundo funciona bem quando as pessoas estão conversando, cooperando… e francamente? Transando. Comece a colocar barreiras mentais entre as pessoas e elas vão viver sua vida como se elas existissem mesmo.

Eu me sinto exclusivamente heterossexual e por muito tempo, eu tinha a ideia de que isso era motivo de orgulho. Mas… orgulho do que? É melhor do que alguma coisa? É pior do que alguma coisa? Quer dizer alguma coisa? Eu sou só um macaco que se sente atraído pelo sexo oposto. Outros macacos se sentem atraídos pelo mesmo sexo. E em infinitas variações entre isso. É uma das partes mais macaco do ser humano. Eu não tenho orgulho de sentir fome, de sentir sede, de sentir frio ou calor, então por que diabos ter orgulho de sentir atração sexual?

É assustador como a ideia de ficar se validando por ser hetero ou homossexual começou a ganhar tanto poder neste século. É uma das coisas mais banais sobre a pessoa. E todos os pontos de parada entre o sexo que você se sente atraído e o sexo que você tem são imaginários. O ser humano acha que está num RPG, que tem que colocar pontos em “gostar de vagina” ou “gostar de pênis” como se isso fosse fazer alguma diferença no resultado final.

Então, de coração: foda-se a sua orientação sexual e foda-se a minha também. Existe uma declaração de direitos humanos universais, se a gente seguir mais ou menos aquelas regras, o resto é só macaquice aleatória. Sexualidade está virando astrologia, com um monte de variações inventadas na cara dura para descrever comportamentos que todo mundo pode ter.

Se quiser pensar sobre o que gosta ou não gosta em matéria de sexo, use a Escala Kinsey como apenas uma forma de abrir a mente e deixar de pensar em rótulos. É algo fluido, que só depende do que você sente de verdade. Quer ser 0? Seja 0. Quer ser 6? Seja 6. Quer ser 1,69? Claro. E daí? É só para pensar e se conhecer melhor.

E se possível, no resto da sua vida, pare de se preocupar com essa palhaçada toda, ou mesmo alimentar a ilusão de quem acha que sua atração sexual tem alguma profundidade, porque essa gente vai querer forçar todo mundo a entrar no mesmo armário que elas e decidir quem é bom ou ruim baseado nisso. O que historicamente sempre dá errado.

Eu queria terminar o texto dizendo que sou fodasesexual, mas até essa piada é bater palma para os malucos dançarem. Chega de inventar rótulos para o que não deveria ter rótulos. Eu sou o que eu quiser quando eu quiser, e espero que você entenda que você também.

Para me chamar de viadinho, para dizer que é -1 de tão hetero, ou mesmo para dizer que agora quer ser fodasesexual: somir@desfavor.com

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Comments (14)

  • “Sexualidade está virando astrologia, com um monte de variações inventadas …”
    Tenho reparado nisso também, Somir. Aliás, mania chata de sempre do ser humano querer sempre classificar tudo em casinhas fechadas e estanques. Ok, entendo que o mundo é racional, no sentido cartesiano mesmo do termo, e que o que é valorizado mesmo é o pensamento cético, racional, lógico, enfim… Mas há que se considerar que determinados fenômenos e determinadas ordens de fenômenos não são mensuráveis por essa estrutura epistemológica “racional”.

  • Esse Kinsey é “amado” pelos cristãos mais fundamentalistas. O que já acusaram esse cara de apoiar pedofilia não tá no gibi.

    Não sei se isso procede ou não, mas percebo que entre assexuais parece que é mais fácil aceitar a ideia de que a (a)sexualidade é “fluída”.

    Não é complicado entender que uma pessoa pode ter prazer se masturbando, mas não querer fazer sexo, por exemplo. Ou que até faça sexo, mas precisa de algum fator que a conduza pra isso (querer ter filhos, gostar demais de um parceiro), pois por si própria a pessoa nem pensaria em procurar.

    Não é complicado também entender que embora a pessoa não sinta que sexo é uma necessidade em sua vida, ainda tenha preferência por um gênero ao se relacionar (ou seja, já que ela não quer tocar no corpo de outra pessoa nesse sentido, que diferença faria se relacionar com homem ou mulher?).

    E é claro, eu diria que a raiz da assexualidade é o simples fato de nenhuma dessas “preferências” surgir de traumas. Elas simplesmente acontecem e não geram desconforto para a pessoa.

    Agora aos outros grupinhos do arco-íris, só me resta perguntar: vocês estão bem? Pois vivem arrumando confusão entre vocês mesmos e invalidando uns aos outros.

  • Mas na escala Lacração de Sexualidade encontramos pérolas como Ecossexual que só namora ecochatos e sapiossesual que só namora pessoas inteligentes (vai morrer virgem) Vc já falou que é lésbico. Eu continuo viado.

    • Eu me dizia lésbico, mas quando eu descobri que tem gente que realmente bota uma peruca, diz que é mulher e fica tentando conquistar lésbica em app, eu fui curado.

  • “o povo progressista acabou cooptado pela (…) ideia de que precisamos nos colocar em grupos para entender as relações sociais e assim enfrentar opressão e preconceito. ”
    É porque muitos deles querem criar cotas pra LGBTs, aí precisam desses rótulos. Algumas empresas já até pedem pro candidato marcar sua orientação no formulário. Só quero saber como se prova a orientação de alguém. Vai ter que dar a bunda pro recrutador?

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