Não curto.

Já faz algum tempo que eu percebo alguns dos canais de YouTube que eu acompanho soltando vídeos reclamando da plataforma, dizendo com todas as letras que do jeito que a coisa vai com a verba de publicidade, não dá mais. E nesses vídeos de reclamação, algo é constante: da noite para o dia os vídeos deles param de ser recomendados e as visualizações desabam. Talvez você ache que eu vá falar de shadow banning hoje, mas o buraco é muito, mas muito mais embaixo…

E para quem não está familiarizado com a expressão, shadow banning pode ser traduzido como banimento sombrio, uma forma que grandes empresas de tecnologia conseguem fazer criadores de conteúdo incômodos pararem de ser vistos sem todo o clima chato de banir a pessoa descaradamente. Sim, ghosting virou padrão de comportamento generalizado.

Alguns desses canais que eu vi começarem a perder quase todas as visualizações até tinham algum viés “anti-mensagem moderna”, o que hoje em dia pode significar ser contra qualquer detalhe do discurso politicamente correto das grandes corporações americanas e europeias. Eu sou um progressista meio que radical até, mas ainda temos críticos que nos colocam no mesmo balaio que a extrema-direita. Então, qualquer saída do script te faz ser chamado de Hitler para baixo.

Mas não são todos os canais que tinham discursos fora do padrão aceitável moderno, eu até argumento que nem eram a maioria. Não nego que redes sociais fazem essa prática de shadow banning, mas não foi isso que me chamou a atenção e fez este texto nascer. Na verdade, era outra reclamação comum deles: desde que o YouTube começou a forçar os Shorts, um clone do TikTok, a equipe do site pressionou todos os criadores de conteúdo a postar material lá sob o risco de perder relevância.

Não como ameaça, mas explicando que eles iam turbinar o alcance dos vídeos curtos em detrimento dos longos. Quem quisesse uma explosão de visualizações, que são necessárias para gerar novos inscritos mais rápido do que se perde, teria que produzir os vídeos curtinhos que o povo parece adorar. E sim, o povo desses canais que estão morrendo agora fez isso. Produziram vídeos curtos, receberam milhões de visualizações, mas tinha algo bem mais nefasto escondido no processo.

Por mais que os canais ganhassem muitos views e muitas novas inscrições, o público-alvo de vídeos de 15, 30 ou 60 segundos claramente não tinha interesse em ver vídeos mais longos. Não adiantava produzir vídeos curtos para chamar esse novo público com cérebro de TikTok para ver vídeos longos com linguagem de documentário, por exemplo. Oras, se eles quisessem isso, o YouTube tinha bilhões de horas de vídeos longos! Não estavam vendo por um motivo.

E aí, a realização: como é possível que ninguém dentro do YouTube tenha percebido esse erro óbvio? Como eles não sabiam que estavam forçando um novo tipo de conteúdo que alienava seus produtores mais antigos e, quando obrigados a fazer, não ajudaria em nada com os formatos de longa duração. Impossível não perceber, né?

Pois é. Foi aí que eu comecei a pensar com a cabeça de quem financia toda a estrutura das redes sociais, recebendo todo seu dinheiro com anúncios. O vídeo curto é a droga perfeita. Altas doses de dopamina em sucessão constante, com espaços entre anúncios muito menores. Um vídeo longo de um canal que monetiza o conteúdo tem uns dois ou três anúncios pela sua duração, um vídeo curto faz muito mais: você pode passar um anúncio a cada 3 ou 4 vídeos curtos sem quebrar a experiência viciante de arrastar a tela para a próxima novidade.

E ao contrário de vídeos longos, os curtos não te deixam “satisfeito” sobre o tema. Quando eu termino de ver um vídeo de meia hora sobre um tema que me interessa, eu não estou pronto para encarar outro parecido. Quem viu um vídeo de dancinha vai ver mais duzentos, porque nunca dá tempo do cérebro dizer que aquilo já deu. Antes de você ter qualquer chance, o próximo vídeo chega e reinicia todo o processo.

E tem mais: o custo de hospedar um vídeo curto é exponencialmente menor do que um daqueles vídeos de 20, 30 minutos de canais mais caprichados no YouTube. E como a experiência toda é pensada para o celular, o arquivo de vídeo que o site serve para você é mais leve até mesmo na qualidade.

Pode parecer um monte de obviedades, mas tem algo que não vejo mais pessoas falando: o conteúdo distribuído pela internet pelas redes sociais de vídeos curtos é o que estavam procurando desde o começo, o formato que mais alavanca tempo de atenção e que mais entrega densidade de anúncios numa sessão de visualização. É isso. Acharam. Está otimizado de um jeito que começa a fazer as contas das Big Techs baterem. Custo menor de manutenção em relação à capacidade de pegar dinheiro de anunciante.

Foram décadas torrando dinheiro para controlar o mercado de mídia da humanidade, e agora que estão estabelecidos e protegidos de concorrência pelo tamanho absurdo das suas operações, encaixou o modelo de negócios de distribuição de conteúdo. O Google saiu na frente porque a ideia das pesquisas patrocinadas era uma jogada de mestre, mas ainda era muito passiva: a pessoa tinha que ir lá pesquisar alguma coisa.

TikTok e quem está seguindo a tendência (Instagram em 2024 é TikTok, boa parte do YouTube em 2024 virou TikTok) está com a próxima máquina de imprimir dinheiro nas mãos. Boa parte da humanidade conectada já está viciada ou em vias de ficar viciada no formato de vídeos curtos.

“Mas eu não gosto de vídeo curto!”

Bem-vindo(a) ao time de quem não gosta do é popular. O mundo não vai acabar, relaxa, mas saiba que é meio solitário aqui. O fato de você gostar ou não de conteúdos que a maioria das pessoas está ficando acostumada a ver não muda nada. A maioria das pessoas gosta, e o mercado vai ir na direção delas. O que eu acho especialmente sujo nesse caso é como as Big Techs não vão esperar a conversão geral da população, estão acelerando o processo agora. Elas querem matar conteúdos de longa duração, e não é nada ideológico, é que tem um jeito testado e aprovado de aumentar a margem entre custo e receita no mercado, e quem chegar primeiro bebe água limpa. Ninguém quer ser o Yahoo! dos anos 20.

“Nossa, as pessoas estão ficando muito idiotas para gostar desses vídeos curtos…”

Cuidado com essa ideia. Porque entre essa percepção que o ser humano está emburrecendo por gostar cada vez mais de TikTok e similares e teorias da conspiração sobre moderadores do Google e da Meta decidindo qual é o conteúdo politicamente correto, perdemos a noção do processo econômico que realmente sustenta isso.

O truque é fazer a gente brigar entre nós para não dar bandeira que vão moldar o tipo de conteúdo distribuído na internet por economia de armazenamento e transmissão, além de possibilidade de mais receitas publicitárias.

De uma certa forma, é a nova indústria do tabaco, porque quanto mais viciados, mais dinheiro ganham. Imagina como os fabricantes de cigarro ficariam felizes se o povo começasse a brigar por preferência entre cigarro com e sem filtro? Um odiando o outro por causa de uma preferência, mas nunca olhando para o fato de que a indústria gastava milhões em propaganda para atrair clientes cada vez mais novos?

É isso que eu estou notando aqui: existe um interesse comercial no vício em vídeos curtos. Monetizar vídeos longos, textos de blog e todo tipo de conteúdo mais aprofundado é um modelo de negócios que não fez sites como o YouTube ganharem tanto dinheiro assim. Eles trabalharam com prejuízo por muitos e muitos anos, subsidiados pelos anúncios de pesquisa do Google.

Você vai ver mais e mais gente viciada nisso. E se você cair na armadilha de sair xingando todo mundo de burro, vai gerar justamente a confusão que querem que você cause. Se você misturar opiniões políticas polêmicas ainda, a cortina de fumaça fica mais e mais espessa. É excelente para eles que todo mundo ache que tem algo profundamente ideológico aí, que a sociedade está se deteriorando, blá blá blá.

Vídeo curto vicia, vai ser problema de saúde mental pública eventualmente. Quem controla essas plataformas sabe disso, mas evidente que não vão se autorregular fora da maior oportunidade de acúmulo de renda do século até aqui. Toda bagunça que os radicalizados de rede social fizerem é perfeita para manter isso fora do foco.

Eu sou um viciado contumaz, não tenho moral para dar conselho para ninguém, mas não preciso dela, só preciso demonstrar conhecimento de causa: você corre um risco grande de começar a consumir esse tipo de conteúdo superficial de forma cada vez mais doentia, porque vídeo curto é poderoso assim, e porque o mercado está claramente interessado em enfiar as garras em todo mundo que puder lobotomizar diante de uma tela de celular antes que o tema finalmente seja abordado e eles tenham que seguir pelo caminho da indústria do tabaco e do álcool e começar a encher seus produtos de avisos e proibições.

E até termos uma geração que rejeita esse tipo de vício, pode demorar bastante. Eu só estou jogando a ideia aqui: o vício de rede social que conhecíamos era fichinha perto do que os vídeos curtos podem fazer. Se você tiver essa informação em mente, pode tomar decisões melhores.

Porque, é claro, você consome o conteúdo que quiser. Eu não vou cair na armadilha que eu mesmo descrevi brigando com quem gosta de ficar horas vendo vídeos curtos. Você não é um imbecil por isso, você pode ser imbecil por diversos ouros motivos, é claro, mas não necessariamente por ter propensão a se viciar no que as Big Techs perceberam como a droga perfeita.

Isso vai dar merda, e o que temos hoje ainda não é essa merda. Continuem nessa de querer regular se Luizinho ou Zezinho estão falando bobagem na internet para ver o tamanho da trolha que vai passar fora da vista…

Para dizer que eu estou sendo histérico, para dizer que quem lê esses textos já tem proteção natural, ou mesmo para dizer que conhece muita gente que já está viciada: comente.

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Comments (12)

  • Esse texto me fez pensar em outra coisa: o tanto de material já produzido e armazenado em grandes data centers, seja de vídeos longos ou de vídeos curtos. Uma hora a coisa toda não tende a colapsar não? Quer dizer, precisa de economia de espaço e manutenção, por isso se priorizam os vídeos curtos, ok, mas ainda assim, a tendência é que cada vez mais ocupemos mais e mais espaços físicos pra armazenar vídeos a ponto de ter que desocupar cidades e habitações? Onde as empresas vão parar com isso? Alguém do pessoal da TI ou dessa gente aí que estuda/trabalha com big data, já pensou sobre isso?

    No mais, deixa eu acrescentar o fato de que me dá certo nojo perceber que existem grandes data centers consumindo água e energia por aí pra manter uma estrutura como tik tok funcionando, pra gente besta ficar postando dancinha por lá e espalhando fake news… A humanidade involuiu mesmo!

  • No caso do Brasil eu acho que é emburrecimento, sim. Em países mais ricos, mesmo com a tecnologia mais avançada, como Coreia e Taiwan, o povão ainda lê muito e compra muitos livros. Filipinos e indonésios, apesar de serem mais pobres, leem mais que brasileiros. Questão de cultura.

  • É exatamente por causa dos potenciais estragos dos vídeos curtos que tenho usado minhas redes sociais cada vez menos. Fiquei bastante assustada quando vi quanto tempo tinha passado assistindo reels no Instagram. Eles são péssimos pra capacidade de concentração, é difícil reeducar a mente pra focar por longos períodos depois que nos acostumamos aos vídeos curtos. Fora que li uma pesquisa afirmando que cerca de 70% desses vídeos – no caso da pesquisa, sobre TDAH, autismo e saúde mental – propagavam informações equivocadas e acabavam diminuindo o alcance de informações cientificamente verificadas. Imaginem a quantidade de fake news sobre outros assuntos viralizando.

  • Se você é da época que o YouTube exigia vídeo com mínimo 10 minutos de duração pra poder monetizar, parabéns, você está ficando velho. Pelo menos o YouTube oferece aquela opção de clube de membros e doações em lives, nem tudo está perdido pros produtores de conteúdos longos.

    Então o negócio do futuro é ser um terapeuta especializado em reabilitação de viciados em vídeos curtos?

    • Não. Tik Tok representa a quebra de paradigma no campo dos vídeos que o Twitter ao seu tempo representou na comunicação por texto na Internet e o Google mais atrás no sentido de clean interface com um poderoso motor de busca por trás.
      As ditas redes sociais estão pro atual momento assim como o rádio e a televisão estiveram respectivamente pra primeira e pra segunda metade do século que passou.

      • Perspectiva interessante, mas tenho minhas dúvidas, porque o próprio Twitter aumentou os limites de caracteres de 140 pra 280. Pra quem paga mensalmente, o limite é ainda maior, até 10.000. Por enquanto, os Shorts do YouTube permitem vídeos de até 1 minuto, mas pode ser que aumentem o limite no futuro. Ou não, vai saber.
        Ainda tenho esperanças de que um dia a humanidade vai se cansar de toda essa correria pra fazer e ver o máximo de coisas que puder em menos tempo, como se a vida fosse uma gincana do Faustão.

        • Minha teoria é de que tenham aumentado para pessoas e páginas que já possuam engajamento, ou seja, para quem já possui público e tem poder de fala.

          Claro, todo mundo pode usar os limites aumentados, mas a maioria só lê ou assiste e tem preferência pelo que é mais mastigado e amistoso possível. Não é todo mundo que quer digitar textaum ou se pega frequentemente em ideias complexas. Apenas uma minoria realmente aproveitará esse aumento.

          Faça uma ferramenta parecer democrática, mas ciente de que os “certos” quem a usarão.

        • O aumento no número de caracteres no Twitter tem a ver justamente com os efeitos colaterais relatados de imprecisão de informações ou mesmo de informações falsas, mas o limite original de 140 caracteres era pensado tendo em vista a integração com sistemas de SMS.

  • “E se você cair na armadilha de sair xingando todo mundo de burro, vai gerar justamente a confusão que querem que você cause.”

    Política e guerra de consoles seguem mais ou menos o mesmo modus operandi. Se xingar de burro resolvesse, sequer precisaríamos nos atentar ao problema.

    Se a maioria das pessoas quer se afundar nesse vício, paciência. O importante é fazer o seu, se dar ao exemplo, não com finalidade de doutrinar outrem para uma causa, mas, lembrar que ainda existe um lugar fora das telas e é possível viver um pouco lá.

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