Nivelando por baixo.
“Uma pessoa muito ignorante acha que a ciência não sabe de nada. Uma pessoa mais ou menos estudada acha que a ciência sabe de tudo. Uma pessoa muito estudada acha que a ciência não sabe de nada.”
Esse é só mais um jeito de brincar com a ideia de como lidamos com conhecimento, e tem bem mais que um fundo de verdade. Numa sociedade com pessoas mais saudáveis da cabeça, é só um jeito divertido de falar que nos limites da ciência ainda existem muitas dúvidas. Mas essa ideia pode ser muito perigosa nas mãos… digo, mentes erradas.
Desde o período da pandemia, muitos cientistas e comunicadores científicos ficaram alérgicos à ideia de que todo mundo pode contestar o conhecimento já acumulado. E com razão: quando o movimento terraplanista começou, era uma bobagem quase que inofensiva. Mas quando negação científica começou a ameaçar a saúde de milhões, com consequências fatais, acabou a paciência.
E mesmo que não estejamos mais dentro dessa tempestade, ela mexeu com muitos de nós. Apesar dos pesares, a vacina foi aplicada. A doença nunca foi embora, talvez nunca vá de vez, mas o colapso do sistema de saúde foi impedido pela imunização. A ciência venceu a ignorância, mas… foi uma briga resolvida por pontos, não por nocaute.
O obscurantismo e a paranoia conspiratória provaram que não tem queixo de vidro. Praticamente todas as pessoas um pouco mais inteligentes do mundo bateram, bateram… e a estupidez nem cambaleou. Não era para ser tão apertado o resultado. A minha impressão é que nem mesmo provas científicas servem mais para convencer uma boa parcela da população. O ser humano do passado não era mais inteligente em média, mas me parece que era mais prático com as coisas.
Doença aparece, governo oferece vacina. Povo resiste por ser chucro, leva umas pancadas para obedecer, mas depois que vê que está funcionando, sossega. Uma coisa meio infantil de não querer tomar banho, mas depois que está lá debaixo da água se diverte. Com esse tipo de teimosia o ser humano sabe lidar. Mas com essa de continuar teimando mesmo depois de ter provas claras que estava errado… isso é outro nível.
E aqui a gente volta para a brincadeira do começo do texto: se você realmente se aprofundar em algum campo científico, vai mesmo perceber que lá no final da linha existem dúvidas imensas sobre o funcionamento do universo. A Física, por exemplo, tem dois modelos de realidade que funcionam em experimentos e previsões, mas em escalas diferentes. O das coisas pequenas não funciona no das coisas grandes e vice-versa.
É normal dar de cara com essas questões fundamentais quanto mais você estuda. E também é normal que nessas partes os cientistas de ponta discutam quem está no caminho certo e quem não está. Tem briga, tem confusão, tem ego e até mesmo corrupção. O ser humano é complicado até mesmo em questões simples, imagina só nas mais complexas que já pensamos até hoje?
E com mais e mais gente sendo exposta ao que acontece nas fronteiras da ciência, começa a aparecer uma subversão à ideia que abre o texto. A fase intermediária de começar a estudar o tema é pulada. A pessoa de repente sai do básico do conhecimento para ver o que dizem as pessoas discutindo o avançado. Você sai da desconfiança científica da ignorância para a desconfiança científica do conhecimento, mas sem ter o conhecimento!
Uma coisa é um físico com décadas de estudo apontar falhas nos experimentos e outra coisa totalmente diferente é o que alguém escutando esse físico vai entender da história. Ele não tem a base para entender a crítica. Eu me incluo aqui. Existem alguns cientistas que estão há décadas propondo uma teoria de que na verdade a única força que existe é o eletromagnetismo. Para eles nem gravidade existe, é só o resultado de atração elétrica.
Eu fui me informar sobre o que era esse Universo Elétrico, e eu não fui capaz de entender por que é uma teoria furada que a imensa maioria dos físicos rejeita. Quando eu leio um artigo ou vejo um vídeo de alguém que realmente estuda o tema explicando por que não faz sentido, aí sim eu percebo os problemas. Em tese eu até poderia achar algumas dessas falhas, mas exigiria esforço que não é condizente com quem pensa em ciência como diversão, não trabalho.
Porque mesmo que eu acabe escolhendo o lado da maioria dos cientistas em rejeitar essa teoria, eu percebo a diferença clara entre quem erra por preguiça de pensar e quem erra por estudar décadas um tema, mas na direção errada. Eles são jogadores, eu sou torcedor. A Era da Informação criou uma espécie de ilusão coletiva onde todos nós nos sentimos parte do time. Como se você concordar com uma teoria científica fizesse alguma diferença… e não faz. Nenhuma diferença.
No vácuo do conhecimento “escolar” sobre o tema, vendo só um vídeo de um podcast onde o defensor da teoria não é confrontado, é realmente difícil ter defesas contra o conteúdo. Como eu sou mais interessado no tema, consigo perceber falhas em pessoas muito malucas ou muito golpistas falando sobre ciência, mas a partir de um certo ponto não dá para ir sem grande dedicação ou tendo a mão segurada por alguém especializado.
O texto de hoje existe porque eu mesmo percebi que não tenho nem roupa para ir para o extremo do a “ciência não sabe de nada”. Entendo de forma abstrata porque esse ponto do conhecimento científico existe, mas não de forma prática. Se a pessoa for boa de papo e mentir distorcendo fatos que eu conheço e omitindo problemas, eu caio no golpe. Na verdade, como é impossível ser especialista em todas as áreas do conhecimento humano, é impossível ter alguém imune ao problema.
Porque mesmo que você saiba identificar os problemas científicos na sua área, não quer dizer que saiba identificar em outras. Muitos comunicadores científicos vindos da Academia caem nessa armadilha: ser um gênio em biologia não quer dizer que você é um gênio em sociologia. Em tese está tudo conectado, mas na prática é muito fácil entrar nesse clima de torcedor e começar a concordar ou discordar de estudiosos reais do tema. Especialmente se você se considera uma pessoa inteligente. E como isso não se resume apenas a quem realmente é inteligente, o risco é grande.
Esse pulo entre não saber de nada e ser exposto às opiniões e ideias de quem estudou muito é uma máquina de fazer negadores científicos e malucos da conspiração. Sim, quem é muito ignorante e quem é muito estudado normalmente compartilham do ceticismo sobre o quanto realmente está bem definido no conhecimento humano, mas fazem isso de lugares totalmente diferentes.
Para o ignorante, qualquer coisa serve. Para o especialista, as discordâncias têm começo, meio e fim. Ele ou ela sabem o suficiente para colocar sua ideias ou até mesmo reclamações em pontos bem definidos do conhecimento científico. E se você não tiver a mesma base que eles, tudo está em jogo.
Tudo não está em jogo. A ciência moderna está mantendo pontes e prédios gigantescos de pé, está aumentando a expectativa de vida no mundo todo, nos movimentamos e nos comunicamos como nunca… a base a gente tem. Está funcionando. E na maioria dos casos, nenhum desses cientistas que brigam com o consenso científico está dizendo que é para botar fogo em tudo e lutar contra o demônio/reptiliano/illuminati/judeu, estão realmente incomodados com uma coisa específica, porque são ultra nerds focados de forma obsessiva num tema.
Quem é muito ignorante e arrogante pega essas críticas da ciência a ciência e transforma em desconfiança sobre toda a realidade. E isso é irritante não só pelas bobagens que somos obrigados a lidar por causa deles, mas também porque os cientistas ficam mais irritadiços com o cidadão médio, passando a impressão de que se acham superiores; além de ficarem com medo de fazer críticas honestas, afinal, algum maluco pode usar isso para empurrar suas ideias malucas.
A livre divulgação de ideias fica meio sequestrada por esse processo, quer dizer, a não ser que você seja um irresponsável que só quer atenção e dinheiro. O cientista “do bem” vai ficando mais quieto, e os podres ficam mais barulhentos. E agora, muito fortalecidos por essa massa de pessoas que pularam a etapa de conhecer o básico do básico sobre a área na qual querem opinar. A ciência moderna provavelmente está errada, mas não está errada pelos motivos que o cidadão médio acredita.
O que é uma pena, porque mesmo que não entenda todos os detalhes, ver rinha de cientistas de alto nível é superdivertido. Pelo menos para mim, que não, não sou muito popular em festas. Mas eu começo a entender mais o lado de quem prefere que essas discussões sejam menos públicas. Talvez esteja traumatizando as crianças…
Para dizer que sextou com texto chato, para dizer que eles estão me usando para te pegar, ou mesmo para dizer que tem fé que a ciência vai perder: comente.
UABO
Nada há nada pior do que gente que arrota certezas sobre tudo mesmo sem nunca ter realmente estudado nada. E pessoas que não sabem que não sabem são inadvertidamente perigosas, não só pra si mesmas, mas pra toda uma sociedade em que estejam inseridas.
GILCO COLHOS
“A fase intermediária de começar a estudar o tema é pulada. A pessoa de repente sai do básico do conhecimento para ver o que dizem as pessoas discutindo o avançado. Você sai da desconfiança científica da ignorância para a desconfiança científica do conhecimento, mas sem ter o conhecimento!”. Ou seja: a frase “o conhecimento liberta” é mais verdadeira do que nunca hoje em dia. Porque o conhecimento pode livrar pessoas tanto das trevas da ignorância quanto dos achismos bizarros baseados somente no “ouvi dizer”.