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Desfavor Bônus: Dia do Axé.

| Sally | | 76 comentários em Desfavor Bônus: Dia do Axé.

Hoje é feriado nacional na República Impopular do Desfavor: Dia do Axé. Está lá no nosso calendário, pode conferir. Poderia falar de mil coisas, mas decidi que neste primeiro ano educarei a população, para apenas nos próximos me aprofundar.

Frequentemente vejo fãs de  MPB tirando onda com axé, acho irônico. Falam que as letras são ruins, que a música é ruim. Não acho Muda a estampa, a roupagem o estigma social, só isso. Vamos comparar algumas letras e quero que me respondam com toda sinceridade, se não é questão meramente publicitária. A mesma letra colocada na voz de um cantor tido como bom massificada em trilha sonora de novela e “jabazeada” em rádio seria um sucesso ou então o inverso, a letra de um suposto cantor conceituado quando colocada em axé seria execrada, taxada de medíocre e ignorante.

Vamos começar falando desta música, chamada “Mundo Cão”. Supondo que ela tivesse sido composta e gravada por algum ícone da MPB brasileira, um daqueles homens pouco machos ou uma daquelas mulheres excessivamente machos quaisquer, fosse tema de novela global e fosse divulgada de forma exaustiva, duvido que não fosse sucesso, ou até mesmo um “hino”, como foi “Que país é esse?” do Legião Urbana. Se o cantor em questão fosse onipresente em programas de televisão dominicais, se sua música tocasse sem parar em rádio e se virasse trilha sonora de um filme nacional, duvido que não seria aclamada, elogiada e regravada.

As encostas vão caindo
Tudo desabando
E o povo vai morrendo
E ninguem esta ligado
Inscricao para trabalho
Em algum orgao publico
Voce paga a sua taxa
E eles comem tudo
Mas que pais esse estou entregue as feras
Ninguem resolveu o caso dos sem terras
E esse bombardeio de regioes
O país já esqueceu daquele sete anoes
Mas que mundo é esse
É um mundo cão
Você paga seus impostos
E não vê solução
Por isso povo brasileiro vamos protestar
De uma forma correta, sem violência
Vendo a pessoa certa
Pra você votar
Eu quero mais saúde, mais educação
Mais divisão de renda, mais alimentação

SE. Se tivesse sido composta e gravada por Chico Buarque, Caetano Veloso, Djavan ou qualquer outro de suposto alto conceito. Porque assim como a roupa, o brasileiro escolhe a música pela marca. Coisa de quem não tem certeza do próprio bom gosto e precisa de uma garantia de estar bem vestido: compra a marca tal porque sabe que é socialmente aceita. Quem se veste bem não tem pudor em escolher peças de roupa interessantes das mais diversas fontes, porque tem bom gosto, porque sabe combiná-las, porque sabe usá-las (e a meu ver, são pessoas muito mais interessantes e bem vestidas).

Para você que não sabe, a música acima é música baiana ou axé, como queira chamar. É do Olodum. Para você que não sabe, Olodum tem os melhores percussionistas do Brasil e seus arranjos são aclamados internacionalmente. Fazem um tipo de música único, admirado por pessoas que entendem de música no mundo todo. Michael Jackson, que de música e arranjos entendia, se apaixonou de tal forma que fez questão de gravar um clipe com o Olodum. Quando esteve no Pelourinho, onde se localiza a quadra do Olodum, chorou ao ouvi-los tocar e disse que nunca tinha visto coisa igual. O mesmo aconteceu comigo: nada no mundo se compara com a percussão do Olodum.

Além de competentes e únicos, a banda é engajada em diversos movimentos sociais, como por exemplo na luta pelos direitos humanos. Não são músicos vazios. Tem escolinhas que ensinam a crianças carentes e vários projetos interessantes. Quem for a Salvador e não tiver medo de morrer (porque o Pelourinho à noite está em uma vibe meio cracolândia), não deixe de ir a um ensaio do Olodum. É relativamente caro mas vale cada centavo.

O Olodum surgiu em 1979, criado por moradores do Pelourinho, em Salvador, que eram excluídos do carnaval oficial da cidade, com o objetivo de criar um carnaval próprio que eles também pudessem pular. Estas pessoas, de origem muito humilde, formaram músicos de renome com qualidade musical atestada e reconhecida pelo mundo todo. Apesar da marginalização, da precária instrução e de todas as dificuldades, eles conseguiram criar letras com poder de questionamento e reflexão que muito filho de papai dono de gravadora não criou. Assistir a um ensaio do Olodum no Pelourinho é uma experiência ÚNICA.

Primeiro você vai lá e vê, depois você diz que não gostou. Não existe nada parecido com aquilo no mundo. Pessoas que tocam de forma primorosa sem ter recebido qualquer ajuda para isso. Tocam porque tem o dom, porque tem dedicação, porque tem força de vontade. Fizeram seu nome sem auxílio, sem divulgação. Muito pelo contrário, sempre pesa a propaganda negativa: música que vem da Bahia “é baixaria”, é “ralar na boquinha da garrafa” e axé “não presta musicalmente”.

Agora eu pergunto, se fosse o Olodum a compor uma música chamando uma estátua de “Mulher sem orifício”, iam falar O QUE? “Bando de pobres baixo nível pervertido, axé é mesmo uma putaria”. E se tivessem composto uma música cujo refrão é “Eta, eta eta eta, é a lua é o sol, é a luz de Tieta eta eta” iam falar O QUE? “Bando de semi-analfabetos que não sabem nem falar direito, quanto mais rimar, isso não é rima, isso não é música”. Porque o bacana é meter o pau no axé mesmo sem conhecer. E mais bacana ainda é achar que qualquer coisa da MPB é licença poética. Tem dó, crianças que comiam ratos na infância fazem melhor que muito playboy criado a filé e batata frita.

Vamos ver mais uma letra de música. Esta música foi composta para as vítimas do desabamento do Morro do Bumba, no Rio de Janeiro e se chama “Firme e forte”. Se tivesse sido composta por um cantor socialmente aceitável, teria virado tema de documentário, teria virado carro-chefe de show/tributo para arrecadar dinheiro para as vítimas e sua letra teria virado estampa de camiseta.

Na encosta da favela “tá” dificil de viver,
e além de ter o drama de não ter o que comer.
Com a força da natureza a gente não pode brigar
o que resta pra esse povo é somente ajoelhar,
e na volta do trabalho a gente pode assistir.
Em minutos fracionados a nossa casa sumir
Tantos anos de batalha junto com o barro descendo
E ali quase morrer é continuar vivendo.

Teria. Se não fosse da banda baiana Psirico. Precisou uma banda baiana se sensibilizar com um desastre ocorrido no Rio de Janeiro, porque aqui ninguém liga para o fato do Poder Público ter colocado pessoas para morar em cima de um lixão e ter cobrado IPTU delas como se nada, até que a comunidade toda foi pelos ares e ainda levaram a culpa com comentários como “ficam invadindo terreno, dá nisso”. Vamos falar umas verdades? No geral, a causa do carioca não é a igualdade social, a causa do carioca é a maconha mesmo. “Legalize já, legalize já, porque uma erva natural não pode te prejudicar” (come cicuta então, filho da puta). ISSO estampa camiseta.

Culpa de todos nós. Quem vai para Salvador no carnaval e fica pulando feito um bicho no cio atrás do Chiclete com Banana ou do Asa de Águia deve achar que na Bahia não tem música que preste. Pudera, não vão até lá atras de música, a música é um mero pano de fundo para pegação.

Queria ver se o Psirico (Ave Marcio Victor!) tivesse feito uma música sobre o homem aranha, por exemplo: “Eu adoro andar no abismo, numa noite viril de perseguição, saltando entre os edifícios, vi você (…) Me joguei de onde o céu arranha, Te salvando com a minha teia, Prazer! Me chamam de Homem-Aranha, Seu herói!…”. Chamariam de idiota. Francamente, se é para falar em super-herói, eu prefiro o “Foge foge, Mulher Maravilha, Foge foge com Superman”, porque ao menos tem senso de humor. Se esta musiquinha sobre Homem Aranha fosse do Psirico chamariam a banda de medíocre, ridícula, sem conteúdo, daí para baixo.

Queria ver se o Psirico compusesse músicas ridículas e sem nexo com trechos como “Açaí, guardiã, zum de besouro um imã, branca é a tez da manhã” ou “Tudo que Deus criou pensando em você, fez a Via Láctea fez os dinossauros”. Iam dizer O QUE? Diriam que são idiotas, semi-analfabetos, imbecilóides etc, etc. E se o Psirico fizesse múscias sobre animaizinhos, tipo “Gosto muito de te ver leãozinho, caminhando sob o sol” ou “Sou o seu bezerro, gritando mamãe”. Falariam O QUE? Que são idiotas, que tem que cantar no Zoo, que axé só tem letra simplória.

Márcio Victor, o vocalista do Psirico, que mesmo baiano, só merece aplausos. Não só se comoveu com a tragédia do Bumba a ponto de fazer uma música, como mesmo tendo nascido como ele mesmo diz “preto, pobre e favelado”, deu lição de cidadania quando foi vítima explícita de racismo durante uma apresentação da sua banda no carnaval em vez de se vitimizar. Um empresário o chamou de “preto favelado viado” em pleno desfile do trio e deixou claro que podia xingá-lo o quanto quisesse porque era empresário e tinha dinheiro. Márcio Victor é muito querido pelo povo e imediatamente a massa se voltou contra o empresário para, no mínimo, dar umas boas porradas, ao que Márcio pegou o microfone e berrou para todo mundo parar dizendo “Eu sou preto e pobre e me orgulho, não faz nada com ele não vamos errar também, para estas pessoas, a lei”.

Aqui no Rio, ator e cantor se ofende quando é parado bêbado em blitz e sai do carro gritando “você sabe com quem você está falando?”. Tem os mauricinhos de olho azul que roubavam carros na adolescência e Papai ia tirar da delegacia na base do suborno (Chico? oi?). Por muito menos do que isso (“ela e o seu bebê) pessoas processam pedindo cem mil reais. Por muito menos do que isso pessoas batem, pessoas xingam. Quem é baixo nível? O mundo do axé? Será mesmo?

Falemos agora de uma última música, mas só porque o espaço está acabando, exemplos não faltariam. Sobre o que falam aquelas pessoas humildes de origem pobre quando querem cantar sobre Deus? Adoração, louvor, admiração. Fé cega e conformismo são camuflados como “respeito a Deus”. E se alguém falasse de Deus envolvendo questões sociais? Depende, se fosse um cantor socialmente aclamado talvez virasse uma música genial, uma crítica pertinente. Talvez fizessem debates sobre a música, talvez ela estampasse provas de vestibular.

Jesus é preto, eu sei, eu vi
Jesus é preto, eu bem que vi
Jesus é um negão, com dois metros de altura
Com os dentes cariados e a fome na cintura
Um dia passeando perto da periferia
Ele disse mãos ao alto! Perguntando aonde eu ia
Ele disse que não tinha aonde ir
Ele disse que não tinha o que sonhar
Ele disse que não tinha o que comer
Ele disse que não tinha onde morar

Jesus me deu a mão, me levou no seu barraco
Dividimos pão com pão e comemos pão com rato
E depois me botou pra dormir
Eu vi Jesus, Jesus eu vi
Fiquei baratinado e não pude discutir
E foi num sonho lindo, num sonho cheio de luz
Que eu vi naquela cara, a imagem de Jesus
O mal não sai da boca de um anjo
Acredite, se quiser
Você pode ver Jesus, deitado nas marquises
E dormindo em papelão
Gritando por socorro, estendendo a sua mão

Se fosse de algum cantor da moda, seria uma licença poética, um ousadia, uma inovação: pura criatividade. Mas é da Timbalada. Assim como o Olodum, a Timbalada tem os melhores percussionistas do Brasil e arrisco dizer que do mundo. Um dos fundadores da Timbalada, Carlinhos Brown, está concorrendo ao Oscar de melhor música este ano. Porque é bom? Porque faz arranjos únicos? Não, porque emplacou a trilha sonora de um desenho de uma empresa americana que está na moda. Uma pena. Tomara que ganhe, pois apesar de achar ele um chato de galocha, sua competência musical é inegável.

Pessoas de origem humilde tiveram a coragem de brincar com o conceito de Deus e de compará-lo a um pivete. Tem muito ser humano supostamente esclarecido, com estudo e cultura, se cagando de medo de fazer uma coisa dessas. Independente de gostar ou não da música deles, vai dizer que os caras não tem mérito? Mas o que aparece na mídia é aquela foto da década de 90 de mulheres com os peitos pintados de branco. “Timbalada é axé, axé é baixaria e ponto”. Bonito mesmo é quando o filho do dono da gravadora, com língua presa, canta “Que só eu que podia, dentro da tua orelha fria, dizer segredos de liquidificador”.

Quando Marisa Monte canta “Beija eu, beija eu, beija eu me beija” é licença poética, vai a Timbalada compor algo assim: “burros, ignorantes, prestando desfavor e deseducando o povo com seus erros de concordância”. Basta virar ícone que pode escrever sobre qualquer merda, sobre o tema mais idiota: “Pois há menos peixinhos a nadar no mar, do que os beijinhos que eu darei na sua boca”. Vai uma banda de axé cantar ISSO e observa o que vão dizer.

A questão não é te convencer a gostar de axé. Você pode não gostar. Na verdade, se você espera ser respeitado socialmente e ter um carimbo de “bom gosto” social, você DEVE não gostar de axé. Meu objetivo é te fazer ver que, independente de você gostar ou não, axé não é necessariamente mais burrice, mediocridade, baixaria e bunda do que as outras músicas. “Não demora muito agora, todas de bundinha de fora, topless na areia, virando sereia” fica poético na boca de uns e baixo nível na boca de outros.

Reflitam. A baixaria não está no conteúdo e sim na aceitação social.  Odeie o axé, mas odeie com conhecimento de causa, não com preconceito. Primeiro você vai lá e escuta a percussão em músicas como “I miss her” do Olodum e depois você vem me falar que é uma música de merda.

Não tem como dissociar a realidade social do compositor do resultado da sua obra. Se estas pessoas, que levaram vidas sofridas, conseguiram fazer letras com conteúdo crítico, contestação, protesto e revolta, seu mérito deve ser dobrado. Muito fácil para um filho de papai, que estudou nos melhores colégios, fazer um joguinho de palavras e mandar afastar o Cálice.

Muito difícil, e digno de aplausos, independente de ser do seu gosto musical ou não, pessoas que cresceram com fome e violência conseguirem tocar com primor os instrumentos musicais aos quais tem acesso, a ponto de excursionar o mundo e serem aclamados. Muito difícil, e digno de aplausos, independente de ser do seu gosto musical ou não, pessoas que cresceram marginalizadas e privadas do básico conseguirem escrever letras com consciência social e críticas. Tem muito letrado por aí que não consegue, que só fala de amor, monotematicamente, de forma brega, álbum atrás de álbum.

Axé não é pior do que as outras músicas. Axé apenas é vendido como se fosse pior e a maior parte das pessoas compra esta injustiça. Sempre vai ter quem alegue que o axé que faz sucesso é o bunditizado, baixo nível, mas… a culpa é do axé ou é do povo que escolhe prestigiar o baixo nível? Porque eu lhes garanto, oferta de música boa (qualidade musical propriamente dita) e letras bacanas existe. Parem de bater no axé, batam no povo!

Podem falar o que quiserem de mim, mas eu tenho discernimento. Eu tenho discernimento e estou lhes assegurando que existem boas músicas no mundo do axé. Não sejam bobos, não sejam preconceituosos. Não comprem com essa facilidade tudo que lhes é vendido. Não precisa ouvir, não precisa gostar, não precisa nem pesquisar ou procurar conhecer. Só não fica repetindo que axé é tudo uma merda baixo nível, porque não é verdade.

Para perguntar como o Somir permite textos assim, para ouvir “I Miss Her”, gostar, mas ter vergonha de admitir ou ainda para dizer que melhor axé do que funk: sally@desfavor.com

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