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Desfavor Explica: Falácias. (Parte 2)

| Somir | | 34 comentários em Desfavor Explica: Falácias. (Parte 2)

Continuamos com nossa viagem pelo mundo dos argumentos furados. Lembrando: Não pretendo mencionar TODAS, e sim agrupar as mais comuns e irritantes que encontramos por aí. Você pode conferir uma explicação mais detalhada na primeira parte desta série. Vamos às falácias!

EMOCIONAL

Se você, assim como eu, despreza qualquer sentimentalismo, alegre-se: Você não é necessariamente morto por dentro, você pode apenas gostar de argumentos logicamente consistentes! Apelar para os sentimentos de outra pessoa numa discussão é sim uma falácia. A lógica é fria.

E antes de qualquer coisa, não vamos confundir sensibilidade com sentimentalismo. Ter a capacidade de ler o estado emocional alheio e agir de acordo é uma habilidade valiosa para quem quer argumentar bem, muitas vezes é isso que mantém o canal de comunicação entre duas pessoa aberto e produtivo. Isso é sensibilidade.

A falácia emocional tem tudo a ver com sentimentalismo. Ex: “A mãe do pequeno Somir diz que ele não deve jogar comida fora porque existem crianças africanas passando fome. O pequeno Somir oferece seu prato e diz para sua mãe então levar a comida para elas. Apesar de ter ficado de castigo, o pequeno Somir desmascarou a falácia.”

O sentido do argumento deve existir de forma independente que qualquer reação emocional de quem o ouve/lê. Ou é logicamente válido, ou não é. Esse tipo de falácia é absurdamente comum, é uma das mais desgraçadas de perceber… Quem se depara com uma deve se perguntar se reagiria da mesma maneira ao argumento sem nenhum envolvimento emocional.

Falácia emocional pode apelar para medo, inveja, ódio, pena, orgulho… Muitas guerras e perseguições étnicas e/ou religiosas começaram a partir de falácias emocionais. O ditador dizendo que a economia está em frangalhos por causa de um grupo étnico específico, o sacerdote ameaçando com sofrimento eterno que não segue as regras de sua religião, a namorada que diz que se você a amasse a acompanharia à casa da sogra… Todos exemplos de falácias emocionais.

O que você sente sobre um tema não reflete necessariamente o que você pensa dele. Até por isso existem atenuantes de estado emocional nas leis.
A falha lógica neste tipo de falácia é o desvio do tema em prol da reação da pessoa sobre ele. O argumento só “cola” porque a pessoa tem o envolvimento emocional necessário para aceitá-lo.

Quando você está sendo bombardeado por falácias emocionais, ou seja, quando você estiver numa DR, o segredo é não alimentar o troll. Quanto mais emocional for sua reação, mais fortes ficam as falácias. Embora não seja exclusividade de nenhum dos sexos, as mulheres tendem a ser mais habilidosas quando entram numa discussão que descamba para esse lado. Cuidado redobrado quando tentar essa tática para cima de uma delas, vem chumbo grosso como resposta, principalmente se você tiver envolvimento emocional com ela. “Se você me amasse, concordaria comigo.”

E se você quiser utilizá-la, lembre-se: Tire a discussão do assunto em si e leve para como você e seus interlocutores se sentem sobre ela. Reações emocionais são terreno fértil para irracionalidade.

ESCORREGADOR

O nome é bem descritivo: A falácia escorregador sugere que ao aceitar um argumento, você necessariamente vai escorregar até uma conclusão exagerada dele. O golpe é ignorar a capacidade humana de concordar com alguma coisa até certo ponto e impor limites baseados em condições.

Exemplo: “Zé Reaça discute com Somir sobre casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Somir argumenta que não enxerga nenhum problema com esses casamentos, Zé Reaça rebate dizendo que se deixarem gays se casarem, logo estaremos permitindo que pessoas se casem com seus pais, irmãos, animais de estimação, objetos inanimados… Somir se divorcia da conversa.”

Apesar de pessoalmente eu não ligar nem se as pessoas começarem a se casar com seus animais de estimação, o argumento de Zé Reaça ignora uma série de conceitos oriundos do senso comum. Uma coisa não leva necessariamente a outra.

Esse tipo de falácia é especialmente comum no mundo político. Para assustar as pessoas a concordar com uma posição política ou outra, é comum criar exemplos e conclusões exageradas. Em polarizações entre ideologias de esquerda e direita, já é uma tradição que o candidato da esquerda diga que o adversário vai colocar tudo na mão da iniciativa privada, e que o candidato de direita mencione a vontade de seu adversário de instituir o comunismo.

A falha lógica é ignorar a capacidade de darmos apenas um passo em determinado caminho. Defender uma ideia não significa defender TODAS as implicações e consequências dela. A discussão se perde quando se começa a discutir a veracidade dessas fabricações ao invés do ponto original.

Quando você se deparar com um falácia dessas em público, bom… força! Não é uma das mais comuns na política à toa: Ela é terrivelmente eficiente quando a plateia é composta de gente com pouca instrução. Por mais que seja contraprodutivo para a discussão em si, você tem mais chances de angariar apoio rebatendo com mais falácias escorregador. É triste, mas enxergar além desse truque lógico exige um pouco mais de estofo intelectual do que o disponível para o cidadão médio. A merda é que ela não é necessariamente uma mentira ou fantasia evidente.

Uma falácia escorregador é mais ou menos como dizer que se você não cuidar de um machucado, ele pode infeccionar e te matar ao se espalhar pelo resto do corpo. Não chega a ser mentira, mas ignora várias probabilidades, tais quais a capacidade do corpo humano de se curar, o acesso mais ou menos comum aos serviços médicos, a chance ínfima de uma pessoa não se “obrigar” a se tratar…

Se você quiser desarmá-la pelo bem do avanço da discussão, lembre-se que não basta voltar cegamente para o ponto original, faz muita diferença apontar os motivos pelos quais A não vai necessariamente chegar a B. Não discuta o assunto “escorregado”, o que importa é o que impede uma coisa de descambar para a outra.

ESPECIAIS

O grupo das falácias “especiais” engloba aquelas que criam situações únicas no meio de uma discussão para proteger o argumento furado de quem as usa. Lógica não muda de acordo com a vontade de quem a usa.

ESCOCÊS DE VERDADE

Basicamente, o escocês de verdade é uma falácia baseada em criar novos parâmetros para aceitar um argumento no meio de uma discussão. O exemplo que dá o nome a essa falácia é bem descritivo:

“Angus diz para Hamish que escoceses não colocam açúcar no seu mingau. Hamish rebate dizendo que é escocês e põe sim açúcar no seu mingau, no que Angus respode, irritado, que nenhum escocês de verdade coloca açúcar no seu mingau.”

Essa é um clássico de pessoas que na defensiva ou dispostas a irritar. É falácia porque muda o foco da discussão durante a discussão, de preferência para algo impossível de ser argumentado. A pessoa toma para si a definição “de verdade” do que se discute, trocando ao seu bel prazer os parâmetros de validação.

Se você é vítima dessa falácia, grandes chances de já estar numa discussão complicada. A vontade de usar “ad-hominem” para rebater vai ser grande, mas só vai mandar a lógica para ainda mais longe. Force a pessoa a definir o que para ela constitui o “de verdade”, e lembre-se disso na hora de contra argumentar. Se o consenso sobre o “de verdade” nunca chegar, daria no mesmo trocar receitas…

APELO À FÉ

Essa é bem simples: Se você não concorda ou entende com um ponto, o problema é que você não tem fé. Fé é uma “sublimação” da realidade, e por definição não pode ser aceito como argumentação lógica. Extremamente comum, evidentemente, em argumentações de cunho religioso. Quando o “fiel” usa um argumento furado ou é confrontado com evidências discordantes, foge para a fé e fica por lá até o perigo passar.

Acreditar em algo não o torna real. Eu posso começar a acreditar na existência de unicórnios o quanto eu quiser que eles vão continuar não existindo fora do campo da imaginação. Não é argumento lógico consistente.

Mas nem só de religião o apelo à fé vive: Misticismo e pseudo-ciências também bebem muito dessa fonte. Quando são expostos truques ou efeitos placebos utilizados por pessoas que seguem campos alheios ao método científico, elas tendem a escapar por essa via também. Se você precisa acreditar em algo para que esse algo seja válido, é tão lógico quanto precisar tomar um tiro para saber que um tiro é perigoso.

Quando defrontado com apelo à fé, é mais prático deixar o assunto morrer. A outra pessoa está na defensiva e não quer ou mesmo PODE (medo) mudar de opinião. Se estiver se sentindo especialmente teimoso(a) no dia, uma solução é voltar para o último terreno comum lógico do assunto antes do “adversário” se esconder atrás da fé. Mas a fé em si é indiscutível. Murro em ponta de faca.

INCREDULIDADE PESSOAL

Como já dito no exemplo anterior, acreditar ou não em alguma coisa não tem impacto lógico em discussões baseadas nela. A falácia da incredulidade pessoal também é simples de perceber: “Zé das Couves diz que não acredita que humanos vieram dos macacos porque não consegue entender como uma coisa virou outra do nada. Somir enxerga aí mais uma prova da relação entre as duas espécies…”

Alguns temas são mesmo complicados, e não é vergonha não ter conhecimento aprofundado sobre eles. Mas isso não dá a pessoa a liberdade de tirar conclusões sobre o assunto baseada em desconhecimento. Ignorância não é um argumento.

Dependendo de com quem se discute, é mais fácil ignorar. Conhecimento sobre um determinado assunto pode depender de várias camadas, para explicar para alguém como nós somos “poeira de estrelas” talvez precisemos primeiro estabelecer conceitos básicos da física. Nem sempre temos tempo ou paciência para fazê-lo. Se quiser comprar essa briga, seja didático e demonstre empolgação com o tema, tente se aproximar. As pessoas tendem a reagir mal se você empinar o nariz e se tornar hermético em sua explicação.

ESPANTALHO

Eu adoro essa falácia. Até onde vai minha experiência com discussões, nada é mais tóxico numa argumentação que uma falácia espantalho. Simplificando, falácia espantalho é colocar palavras na boca da outra pessoa. O espantalho do nome é uma alegoria com a ideia de criar um argumento falso baseado no que a pessoa disse e direcionar toda a pancadaria para ele. Não é um argumento real, é apenas uma imitação barata dele.

No mundo da trollagem (arte), o espantalho é a abertura ideal para uma briga. Se a outra pessoa cai nesse truque, quer dizer que você vai controlar TODA a discussão a partir dali. Como o argumento dela se torna uma fabricação sua, você está basicamente discutindo consigo mesmo. O que o torna uma clara falácia, a maioria dos pontos que poderiam desarmar o seu próprio argumento são jogados para longe. Ganha-se a discussão, mas não aprende-se porra nenhuma.

Vamos a um exemplo: “Maria Ruela diz que prefere homens metrossexuais que cuidam das unhas, se depilam e fazem hidratação. Somir, retrossexual, responde dizendo que entende que ela se sente atraída sexualmente por mulheres e que Maria Ruela deveria assumir sua orientação sexual verdadeira. Maria Ruela responde que não é lésbica.”

Se Somir conseguir manter o assunto girando ao redor das preferências sexuais de Maria Ruela, o tema dos cuidados pessoais masculinos não vai mais ser abordado. E esse era o argumento original. Empurrando o assunto para uma área que causa desconforto para o adversário por não ter nada a ver com o que ele queria falar, a tendência é que ele comece a ficar cada vez mais frustrado (e fácil de derrubar). Pontos bônus se o assunto for polêmico.

Mas isso não quer dizer que a falácia do espantalho significa automaticamente que alguém está envenenando a discussão de forma consciente. Falta de subsídios para tratar o assunto em questão também podem criar espantalhos espontâneos. Uma pessoa que não se sente à vontade para discutir política pode carregar o assunto para um espantalho religioso, conquistando a chance de usar a escapatória da fé assim que possível. Espantalhos também são criados por conveniência.

Quando você enxerga um espantalho na argumentação alheia, você pode seguir vários caminhos. Um deles é o básico de voltar para o tema e fingir que a falácia não existiu. Tem outra tática que eu gosto de usar que é conceder o ponto do espantalho “para fins de argumentação” e perguntar para o falacioso no que isso impacta a ideia original. Em termos mais simples, é o famoso “e daí?”. Grandes chances do adversário se afundar, porque o espantalho é uma desgraça de defender logicamente.

Para usar direito, precisa de algum treinamento. Eu considero essa falácia a maior arma de um troll (lembre-se, quem só xinga é babaca e não troll), porque pode manter a outra pessoa ocupada com um argumento inútil, mas também porque pode ser uma excelente forma de “jogar um verde” e descobrir alguma opinião bem difícil de defender que a pessoa já tenha. No exemplo que eu usei, se Maria Ruela vacilar e falar mal de homossexuais, dá para inclusive direcionar a plateia contra ela.

Entender o espantalho com todas suas nuances leva certo tempo, mas é uma máquina de desestabilizar adversários e desvirtuar discussões. O segredo é tomar conta do argumento alheio, fazê-lo seu. E sutileza ajuda demais… se você for muito explícito, a pessoa não vai entrar na jogada. Tem que ser uma variação do que ela mesma está falando.

Bom, já estourei meu limite por hoje. Teremos mais falácias na próxima edição, afinal, falácia é o que não falta nesse mundo.

Para dizer que vai começar a reler as coisas que eu escrevo caçando falácias, para perguntar se existe alguma discussão nesse mundo sem falácias, ou mesmo para dizer que não acredita em falácias porque não entende falácias: somir@desfavor.com


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