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Somir Surtado: Tecnologia fashion.

| Somir | | 47 comentários em Somir Surtado: Tecnologia fashion.

Escrevo hoje inspirado por uma reportagem sobre a derrocada dos celulares BlackBerry nos EUA. Começo assim para linkar a matéria, para estabelecer um exemplo prático do assunto, mas também para avisar desde já que vai ser um texto nerd. Menciono há tempos meu horror à Apple pelo seu papel decisivo na transformação da computação pessoal em mais um braço da indústria da moda, o que hoje eu desenvolvo melhor.

A matéria, caso você tenha preguiça de ler, menciona exemplos de pessoas extremamente incomodadas por ter de usar celulares da marca BlackBerry ao invés dos mais populares iPhones e derivados, como os que usam o sistema operacional Android. Muitas empresas fornecem celulares ou tablets para seus funcionários, e até alguns anos atrás, o padrão era os modelos da BlackBerry. Hoje em dia, não mais. Tanto que a empresa está afundando a olhos vistos.

Tudo bem que tecnologia avança e é razoável que com o passar do tempo as pessoas queiram migrar para versões mais novas dos gadgets que utilizam em seu dia-a-dia, mas basta dar uma lida nas reações coletadas dentre as pessoas entrevistadas para a matéria para notar que tem uma distorção de valores em curso neste momento histórico.

Adultos envergonhados e enraivecidos com seus celulares tais quais crianças emburradas porque ganharam o “presente errado” dos pais nos seus aniversários. Um dos depoimentos menciona a vontade de quebrar seu celular “menos fashion” com um taco de beisebol. Outro diz que se sente excluído porque não consegue acessar alguns dos aplicativos disponíveis nos celulares da Apple… Esse é o resultado da popularização dos dispositivos móveis no mundo? Uma geração de criançonas buscando aprovação através de um pedaço de plástico apinhado de circuitos?

De um ponto de vista estritamente racional, quando uma empresa fornece para seus funcionários celulares do tipo, quer que eles consigam se comunicar em qualquer lugar, editar e salvar documentos, acharem os lugares que devem visitar… E nesse campo, não existem diferenças tão gritantes assim entre as marcas. As pessoas reclamam do sistema GPS do BlackBerry, mas querem ter um iPhone, cujo sistema de localização a própria Apple assume que é uma merda. Não é como se a tecnologia disponível permitisse tamanha segregação entre as marcas.

Só que o cidadão médio não é o maior fã de tecnologia, não de verdade. Vivemos numa era onde a interface se mistura demais com a estrutura que a torna possível. Para a maioria das pessoas, computadores da Apple são mais rápidos e eficientes que PCs. Mesmo que hoje em dia os computadores da Apple sejam PCs com uma maçã desenhada (sério, são as mesmas peças montadas do mesmo jeito, pode pesquisar…). Não é o que está dentro que importa, é a interface e a opinião alheia.

Adendo: Interface nada mais é do que a parte que se usa para fazer o produto em questão funcionar.

Você pode argumentar que futilidade passa LONGE de ser um fenômeno recente e que as pessoas nunca ligaram de verdade para os componentes que constroem seus brinquedinhos. E você não está errado. Design e status vendem mesmo muito mais do que competência tecnológica, em diversos setores e desde… bom, desde que existe um mercado.

Mas essa tara por aparência não existe sem seus custos. Toda vez que um produto é massificado, a tendência é que os avanços tecnológicos que o tornaram possível entrem num círculo vicioso de aumento de lucros para quem vende, efetivamente parando no tempo o cerne de seu funcionamento.

Carros são um ótimo exemplo: Os primeiros carros que foram vendidos para grandes públicos são basicamente os mesmos que são vendidos hoje. O conceito do carro não foi modificado, sua interface e status sim. Eles ainda usam combustível para fazer os motores funcionarem, ainda trafegam sobre rodas com pneus diretamente no chão. Evidente que hoje em dia eles são muito melhores e mais eficientes, mas não é como se o conceito do que é um carro tenha mudado em quase um século de produção em massa.

Carros voadores foram o sonho de diversas gerações, e tivemos um baita de um tempo para torná-los possíveis. Cadê? A espécie que colocou um homem na Lua há mais de 40 anos atrás não é capaz nem de pesquisar direito isso? Faltou o incentivo de perseguir essa tecnologia, e boa parte da culpa é do mercado que premiou regiamente quem se concentrou em aperfeiçoar tecnologias mais vendáveis e focar em status.

E o exemplo dos carros parece estar se materializando perfeitamente no mundo da computação pessoal. O primeiro computador de massa é basicamente a mesma coisa que os modernos. Interface, eficiência e status mudaram, a base não. Computação quântica, o equivalente aos carros voadores, está sendo perseguida por alguns laboratórios universitários por aí, mas o GROSSO do financiamento está mesmo em tornar os computadores em máquinas mais bonitas e marcas mais fortes para seus produtores.

Não sei se vocês chegaram a ver algum dos inúmeros vídeos de pessoas em filas para comprar o iPhone 5:

Mesmo se você não entende muito bem inglês, dá para sacar sobre o que vídeo se trata: Pessoas desesperadas para consumir um produto sobre o qual não sabem porra nenhuma. Pura imitação de comportamento alheio. Apesar de ser um exemplo exagerado, ainda sim é um exemplo do que realmente está por trás desse mercado de aspiração. Pra quê evoluir substancialmente uma tecnologia se o público compra por impulso e necessidade de seguir a moda?

Não detesto a Apple porque ela é popular, detesto porque eu quero os meus “brinquedos” fazendo coisas mais interessantes do que acessar a internet para saber o que outras pessoas estão almoçando… O rumo da tecnologia computacional atual está prestes a se tornar um “loop” de futilidade: As pessoas compram iCraps porque eles permitem que se aproveite melhor as funcionalidades criadas para vender iCraps. Em circuitos fechados assim, existe espaço para criatividade, mas não para originalidade.

E sim, eu estou fazendo uma diferenciação entre as duas coisas. Pode-se ser criativo mesmo dentro de uma série de limitações, eu sei disso porque publicidade é basicamente criar seguindo regras bem rígidas. Criar uma nova interface para um sistema que vai continuar fazendo a mesma coisa é um exercício criativo, mas é extremamente limitante no campo da originalidade.

Hoje em dia todo mundo é fotógrafo, diretor de vídeos, músico… Mas não parece tudo mais ou menos a mesma merda? A criatividade da internet aumentou, impulsionada sem sombra de dúvidas pela portabilidade dos equipamentos que a acessam, mas a diferenciação entre as criações está cada vez menor. Criar para se sentir inserido é a praga da originalidade.

A mentalidade “Apple” (não é culpa só deles, evidente) vai se espalhando por aí a passos largos, envenenando as gerações conectadas com a ilusão de que podemos viver apenas de aperfeiçoar e criar dentro de regras muito específicas. E como tudo que vira moda, essa limitação vai gerando cada vez mais crianças mimadas como as que aparecem na notícia que ilustra esta coluna. Tecnologia não pode ser moda, moda passa todo tipo de ideia errada para uma espécie que só chegou onde chegou por pensar em coisas malucas, impopulares e aparentemente inalcançáveis.

Enquanto pessoas se sentirem arrasadas por seus celulares não terem o mesmo logotipo dos de seus pares, nossos carros não voarão. Não financie a estagnação. Bom… agora vocês sabem porque o desfavor fica uma merda quando lido no seu iCrap.

Para me agradecer por avisar que seria nerdice, para dizer que não curtiria o meu texto, ou mesmo para concordar com tudo respondendo pelo seu celular: somir@desfavor.com

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