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Desfavor Explica: A história dos cães.

| Sally | | 66 comentários em Desfavor Explica: A história dos cães.

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Se alguém perguntar de onde vieram os cães, a resposta está na ponta da língua: “do lobo!”. Mas a história é muito mais interessante do que isso. Desfavor Explica: a história dos cães.

Os cães foram os primeiros animais a serem domesticados pelos seres humanos, estima-se que isso tenha ocorrida há cerca de 14 mil anos (enquanto os gatos contam com “apenas” 9 mil anos de domesticação). A dobradinha de cães com humanos deu tão certo porque foi um bom negócio para ambos. Há 15 mil anos atrás, o ser humano deixa de ser nômade e passa a fixar residência em uma espécie de vilas rudimentares. Tudo isso graças à agricultura: ao aprender a plantar, isso os obrigou a se fixar um um único local de modo a cuidar de sua plantação. Como qualquer aglomerado de gente, ao final do dia geravam restos de comida e lixo nas proximidades dessas vilas. Muitos animais, dentre eles o lobo, via nestes restos um ótimo jantar, fazendo com que comecem a aparecer pelas proximidades regularmente.

Ocorre que no entorno desses restos havia pessoas, ninguém andava até muito longe para jogar o lixo fora e, como você pode imaginar, não havia serviço de coleta de lixo à época. Inicialmente isso foi um problema, porque os lobos são muito antissociais e relutavam muito em chegar perto dos humanos. Mesmo quando os humanos se afastavam, os lobos eram obrigados a pegar a comida com muita pressa, pois se um humano se aproximasse eles sairiam correndo. Assim, os lobos tinham uma fonte meio rudimentar e incômoda de comida, que nem sempre conseguiam alcançar.

O tempo foi passando, estes lobos foram procriando. Por um desses acasos da natureza, nasceram um que outro filhote destes lobos mais corajosinhos, que por um revertério qualquer, não tinha tanto medo dos humanos. Em toda família, até mesmo em uma de lobos, sempre nasce um maluco. Pequenos psicopatas de rabo, destemidos, que não se intimidavam com a presença humana. Começaram a se dar bem: fartura de comida, bastava ignorar aquele macaco pelado que estava nas redondezas. Na mãe natureza, quem come melhor vive mais, cruza mais e passa mais seus genes adiante. Resultado: a eclosão de uma geração de lobos que não tinha medo de humanos. Além da questão genética, é preciso levar em conta que os filhotes destes pais destemidos aprendiam desde pequenos, ao observar o comportamento de seus pais, que não era preciso temer o homem, que poderiam se aproximar. Ao ver os pais comendo despreocupadamente perto de humanos, os filhotes reforçavam esse comportamento.

Em contrapartida, o ser humano também estava achando bacana o processo. Para o homem, também era muito produtivo ter estes lobos à sua volta: os lobos não os atacavam e ainda davam alerta quando predadores se aproximavam, tomando conta da área. O homem podia dormir em paz, pois acabara de adquirir um ótimo vigia noturno. Nessa via de mão dupla, ambos, homens e lobos, começaram a conviver cada vez mais. Os lobos que eram mais ariscos nem se aproximavam e os que eram mais dóceis acabaram montando acampamento ali, na entrada das “vilas” humanas. O mundo dos lobos estava dividido em dois. E esta convivência acabou por aproximar mais ainda o homem do lobo. Com o tempo, criou-se uma geração de lobos que já não sabia mais caçar, pois desde sempre estava habituada a comer os restos. Com isso tinham que forçosamente viver nas redondezas e acabavam se esbarrando com humanos mais cedo ou mais tarde.

Foi quando se deu o primeiro passo para o contato físico. Como já foi explicado em outro texto, nós humanos temos uma atração incontrolável por filhotes de mamíferos, pois nos remetem a nossos próprios filhotes, despertando instintos de amor e acolhimento. Não demorou para humanos se encantarem pela fofura que são os filhotinhos de lobos e começarem e trazê-los para perto de si. Em contrapartida, os filhotes, por serem curiosos e inconsequentes muitas vezes “invadiam” o território humano para pedir comida quando estes faziam suas refeições. Difícil resistir a um olhar pedinte de filhote. Não demorou muito, o ser humano estava abraçando e adotando filhotes desse lobo manso. Mas… como surgiu o afeto em si? De onde vem tanto amor recíproco? Tecnicamente já sabemos como foi a aproximação, mas vamos aprofundar e entender o nascimento de uma relação de amor tão sólida.

Não é brincadeira, está cientificamente comprovado que cães nos conquistam. Porque amamos tantos os cachorros? Sim, como eu disse, eles são uma gracinha, mas vai muito além disso. Boa parte da culpa é de um hormônio chamado Ocitocina, responsável pela sensação de afeto e apego por outras pessoas. A ideia original da mãe natureza era usar a Ocitocina para unir bandos ou famílias de modo a aumentar as chances de sobrevivência do ser humano. Por exemplo, quando uma mulher tem um filho, os níveis de Ocitocina sobem absurdamente após o parto. É a mãe natureza assegurando a sobrevivência da espécie. Pois bem, por alguma razão que ainda não se entende bem, os malandrinhos de rabo criaram mecanismos para conseguir despertar a produção de Ocitocina nos seres humanos.

Estudos realizados com voluntários mostram que os níveis de Ocitocina disparam ao brincar com um cão. Cientistas acreditam que a coisa se dá quando eles nos olham nos olhos, um tipo de comunicação que nós humanos costumamos reservar apenas para pessoas queridas. Isso engana nosso cérebro, pois ao travar uma comunicação visual com os meliantes quadrúpedes se subentende que são entes queridos. Além disso, os cães nos entendem, capacidade que nenhum outro animal desenvolveu tão bem. Esconde um brinquedo debaixo de um balde e o embaralhe com outros dois. Chame o cão e aponte ou olhe fixo para o balde onde está o brinquedo. Ele vai entender e vai encontrá-lo, dificilmente isso dê certo com outro animal.

Cães aprenderam a nos entender porque para eles era muito benéfico andar com humanos. Cães sabem distinguir expressões faciais, nosso tom de voz e mais uma série de nuances. Não é exagero dizer que seu cão te entende melhor do que muitos seres humanos, afinal, ele é resultado de um animal que passou séculos observando e decifrando o ser humano. Além de fazerem um esforço enorme de observação para nos entender, cães gostam de nos imitar, o que torna ainda mais fácil o convívio. O cachorro segue um líder e se adapta as regras dele, é um animal moldável por natureza. É provável que seu cão durma na hora em que você dormir e acorde na hora em que você acordar, por exemplo. Tudo isso estreita laços e facilita a convivência.

Esse emprenho ao longo dos séculos não foi apenas por nos observar e nos decifrar. O cão também se esforçam para se fazer entender. Observando nossas vocalizações e nossas reações, eles desenvolveram diversos tipos de latido com a intenção de serem compreendidos. Você já viu um lobo latindo? Não, né? Cães desenvolveram latidos específicos para conversar conosco, já que o humano é uma criatura muito vocal. Mais: desenvolveram um padrão de latidos que pudéssemos entender. Não é difícil, mesmo para quem não é o dono, distinguir um latido de alerta ou um latido pedinte. Sim, eles se moldaram na nossa fôrma, por isso os amamos tanto. Estão, cada vez mais, virando humanos quadrúpedes. Eles sabem muito bem, após poucas tentativas e erros, quem é que se comove com eles, quem lhes dá moral, e exploram essa pessoa. Mais: eles aprendem também como obter os melhores resultados dessa pessoa.

Ser compreendido é um alento para o ser humano. Mais: cães além de fazer um esforço para nos entender, também se esforçam para nos dar aquilo que queremos. Tem muito ser humanos que não faz isso! Essa combinação fatal de Ocitocina com a malandragem canina deu e dá um bug no nosso cérebro, que nos faz amar os cachorros como se de fato fossem um membro da nossa família. Isso explica porque passamos a noite em claro se ele não está bem, porque sentimos saudades ou porque muitas vezes os tratamos como filhos. Existe uma explicação científica, não é loucura da sua cabeça. E nessa eles nos ganharam e entraram de vez nas nossas vidas.

Graças a essa combinação de fatores, em pouco tempo virou rotina estes lobos mansos semi-cães circularem entre os humanos, como parceiros. Eles eram bons companheiros na hora das caçadas, mantinham animais distantes das plantações, davam alerta caso algum predador se aproximasse no meio da noite. Assim, quanto melhor o lobo servia ao homem, mais bem cuidado ele era. E, como eu já disse, quem come mais cruza mais e passa mais seus genes adiante. Os filhotes que cresciam a permaneciam dóceis eram mantidos, os que se mostravam agressivos eram mortos. Ocorreu aí uma seleção involuntária, de modo a que lobos que mantivessem o comportamento desejado (comportamento de filhotes na vida adulta) sobrevivessem e ganhassem muita comida cuidado. Foram os que passaram os genes adiante, reforçando cada vez mais esse comportamento.

Ao menos era isso que se pensava. Hoje existe uma teoria que diz que na verdade esses lobos semi-cães teriam a capacidade de perceber que um comportamento mais bocó agradava os humanos e emulavam esse comportamento, para em troca receber mimos e comida. Ao serem recompensados por um comportamento infantilizado, eles rapidamente se adaptaram, muitas vezes fingindo. Sim, o cão tem essa capacidade de “vou dar a este humano o que ele quer, assim ganho algo gostoso em troca”. Eles podem ser sociopatas com rabo quando querem. Eles nos manipulam, podem ter certeza disso. E a gente adora. Por sinal, cães fingem conosco até hoje. Não que não nos amem, eles nos amam e muito, mas muitas vezes eles nos dão o que queremos para nos agradar. Como este, alguns poucos instintos dessa época ainda sobraram, mas nós humanos, bicho bobo toda a vida, preferimos humanizá-los e atribuir a eles sentimentos que não existem do que compreender a verdadeira origem do seu comportamento.

Por exemplo, um cão que insiste em lamber seu rosto, principalmente sua boca não está tentando te beijar. É um hábito antigo de filhotes, que ativava a regurgitação de suas mães: o cão lambia a boca da mamãe e ela vomitava comida para ele. Buscar a bolinha e trazer de volta nada mais é do que a repetição do comportamento de buscar uma presa e trazê-la à matilha. Levantar a pata e mijar alto no poste? Era a forma dos lobos marcarem território. A verdade é que boa parte do comportamento dos cães encontra explicação na sua origem e não em sentimentos humanizados.

Já reparou que quase todos os cães antes de deitar dão uma (ou mais de uma) rodadinha? Giram em torno de si mesmos e deitam. Não, seu cão não é maluco nem tem TOC, existe um bom motivo pelo qual ele faz isso. É herança dos tempos em que cães eram selvagens e tinham que se preocupar com predadores. O cão gira para identificar para qual direção está o vendo, de modo a se posicionar com o focinho voltado para a direção para onde vai a brisa. Isso porque se um predador chegasse nele sentindo seu cheiro, ele não estaria de costas na hora do ataque e teria mais chances de sobrevivência. Deixa o bicho rodar, ele sabe o que faz.

Voltando à história… Nesse ponto, já podemos falar em cães, não em lobos. Uma parceria firmada com humanos, uma dependência deles para se alimentar (principal critério para definir um animal domesticado) não deixam dúvidas que não eram mais lobos. A bilateralidade regia a relação entre cães e humanos. Os cães tinham que trabalhar para merecer seu lugar na matilha humana: cuidar do território, caçar etc. Porém, passaram-se os séculos e a realidade do homem mudou.

Indústrias, urbanização e outros fatores fizeram com que os cães perdessem suas funções. O humano não dependia mais da ajuda do cão para comer, pois ele não caçava mais ele comprava ou trocava comida agora. A parceria acabou, e como sempre, quando o ser humano está por cima e não depende mais de algo, ele tende a sacanear. Se o cão não servia mais como parceiro, serviria agora como status, como objeto de consumo, como mero acompanhante.

O cão não era mais empregado do dono, passou a ser visto como filho do dono, como objeto de ostentação. Sua única função nas metrópoles era existir. Por mais que ainda existisse uma que outra função como caçar roedores ou ser guardião da casa, o ser humano não dependia mais do cão como antes. Ter um cão deixa de ser necessidade e passa a ser escolha, e, porque não, luxo. Afinal, sustentar um cão não era para qualquer um. O ser humano então decidir mexer em time que estava ganhando. Cães pararam de ser peneirados pela sua funcionalidade e passaram a ser selecionados pela sua aparência. Foi quando começaram a se desenvolver a maior parte das raças.

Surge também o Pedigree, um documento bobo que conferia status ao cão, designando-o como de “raça pura”. O problema é que graças a essa súbita importância que passamos a dar para a aparência do cão em detrimento de sua funcionalidade, nós humanos perdemos a mão e, em alguns casos, sacaneamos os bichos. Patas muito curtas, focinhos muito achatados, excesso de pele e outras desproporções que terminaram por prejudicar os animais foram cometidas. Os coitadinhos pagam o preço até hoje, com dificuldades respiratórias, problemas de pele e em muitos casos doenças congênitas.

Pode observar, se uma raça teve em algum momento um boom de procura, é certo que ela virá com uma carga genética complicada. Isso porque na tentativa de obter filhotes com certas características reforçadas, se cruzavam parentes, algo não recomendado. Exemplo típico: cães da raça Collie, a popular Lassie. Com a série de televisão estrelada por esta raça a procura subiu do dia para a noite. Como havia poucos exemplares, cruzaram parente com parente mesmo, na tentativa de obter filhotes rapidamente e com isso lucrar. Resultado: uma linhagem com pouca variedade genética e com muitos problemas em decorrência desta escolha errada. Estima-se que cerca de 80% dos cães desta raça acabem seus dias cegos ou com problemas de visão. O homem é corno e cruel, mata a baleia que não chifra e é fiel.

Mas a aparência não foi a única pisada de bola que demos com os cães. Ao se tornarem objetos quase que decorativos, sem uma função concreta, acabamos por abandoná-los afetivamente e negligenciar suas necessidades. Cães que precisam se exercitar por horas são condenados a um, com sorte dois passeios por dia e meia hora de brincadeira. No resto do dia os donos estão muito ocupados trabalhando, em seu lazer ou cuidando da família. Resultado: cães frustrados, com excesso de energia, que começam a apresentar problemas comportamentais. O que o ser humano faz? Reflete e passa a dar ao cão aquilo que ele precisa? Não. Os chama de mal educados por eles se portarem como cães. Em casos mais extremos, até mesmo os abandona. Mas tem uma novidade aí, a nova babaquice da vez é medicar cães para que eles fiquem quietos. Hoje, nos EUA, estima-se que cerca de 80% dos cães estão sob efeito de alguma medicação que atua de forma calmante. Cabe ao dono educar seu cachorro, se o cachorro é um mal educado, a culpa é do dono e não do cão. Mas infelizmente quem paga é o animal.

Não é sacanagem fazer isso com quem historicamente sempre nos ajudou e até hoje se desdobra para tentar descobrir o que você quer e te agradar? É hora do ser humano ter vergonha na cara e começar a retribuir o mínimo que ele deve aos cães: dignidade. Tenham vergonha na cara e só aceitem a responsabilidade de ter um cão se puderem prover a ele muito tempo, muito exercício e muito afeto. Essa linda história de amor está tomando rumos escrotos e preocupantes. Como sempre, o ser humano acaba estragando o que constrói de mais bonito graças ao seu egoísmo. Torço para que esta história entre homens e cães não tenha um final infeliz.

Para perguntar se eu estou tomando calmantes porque este é o segundo texto seguido que não tem um palavrão, para dizer que os mensaleiros estão saindo livres e eu aqui falando de cães ou ainda para reclamar porque com um texto desses não tem como me marretar no Twitter: sally@desfavor.com

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