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Medo.

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| Sally | | 34 comentários em Medo.

Medo é o resultado evolutivo de um mecanismo de sobrevivência. A função do medo é nos proteger, nos manter vivos. E vem dando certo.Se estamos aqui hoje é porque o antepassado de cada um de nós sentiu medo no momento certo, evitando perigos que pudessem causar sua morte.

Para falar de medo, tem que falar do cérebro humano, pois é ali que ele nasce e é processado. Em uma simplificação bem bem BEM grosseira, o cérebro humano tem uma parte externa (papo técnico: neocórtex) responsável por funções racionais como linguagem e pensamentos e, mais para dentro, um miolinho (papo técnico: sistema límbico), que comanda as reações mais instintivas. Nesse miolinho existem dois carocinhos no formato de amêndoas (papo técnico: amígdala, que é “amêndoa” em grego) que serão as estrelas do texto de hoje.

O lado racional e o lado instintivo do seu cérebro estão sempre interagindo, mesmo que você não perceba. Trocam informações, e muitas vezes o lado instintivo contribui de forma determinante para nossas tomadas de decisão, mesmo que não nos demos conta disso. Mas quando o bicho pega, quem fala mais alto é o lado irracional. Se ele disparar um alarme, o corpo todo o obedece e só depois confirma com o lado racional se aquilo procede.

A Amigdala (não confundir com aquelas da garganta) é a responsável por identificar o perigo e avisar que você deve ter medo. Qualquer animal um pouquinho desenvolvido tem amígdalas, mas quanto mais complexo for o cérebro, mais desenvolvidas elas serão. Enquanto animais com cérebro mais rudimentares sentem apenas medo ao avistar seus predadores, o ser humano tem a extraordinária capacidade de antever o perigo e sentir medo antes que ele se personifique, apenas por indícios que, de alguma forma, façam crer que o perigo pode se apresentar.

O funcionamento da amígdala ainda não é totalmente compreendido. Até onde se sabe, ela seria uma espécie de “caixa-preta” do perrengue. Quando vivemos uma situação de risco, ela grava informações importantes sobre aquele evento: local, odores, sons ou o que mais lhe parecer importante, por critérios ainda não totalmente explicados. Caso algum dia esses fatores volte a aparecer, a amígdala dispara um alerta para o cérebro: hora de ter medo!

E a sensação de medo nasce rápido, mais rápido do que o cérebro consegue processar. Quando o cérebro percebe o que está acontecendo de forma racional, a amígdala já se encarregou de promover uma verdadeira revolução no seu corpo, te preparando para o pior.

E quando a amígdala decreta que é hora de ter medo, envia ordens para o corpo todo, que a obedece. Suas pupilas se dilatam, o que significa que sua vista não está mais propensa a reparar em detalhes, porém ganha um campo de visão maior. O corpo faz isso pensando em uma forma de te ajudar a encontrar uma rota de fuga ou identificar de onde está vindo o predador, na hora do medo o importante é ver o cenário que te cerca da forma mais ampla possível. Por isso testemunhas de crimes e eventos traumáticos nem sempre lembram de detalhes ou erram no reconhecimento de rostos.

Com o alerta da amígdala o corpo começa imediatamente a consumir gordura, que é um dos combustíveis mais eficientes. Isso ocorre para te preparar para uma bela corrida ou algum esforço físico necessário para salvar a sua vida, como por exemplo um embate corporal com um inimigo ou um predador. Só não vale sacanear o seu corpo e ficar tomando susto para emagrecer, não vai funcionar. É preciso efetivamente se movimentar.

O sangue vai prioritariamente para o cérebro e para o coração, locais onde é mais necessário. O cérebro precisa estar na sua melhor forma para tomar decisões rápidas e o coração tem que bater na velocidade máxima para levar sangue e nutrientes para o corpo agir com rapidez. Estima-se que por causa desse mecanismo o corpo deixe o sistema digestivo e o sistema imunológico meio… desamparados. Eles são “desativados” para não gastar energia, pois no momento são considerados secundários. Isso causa um desarranjo que culminará naquela “diarreia de nervoso” que vem depois que passamos pelo susto.

O pulmão se dilata (papo técnico: bronquíolos) para permitir uma maior captação de oxigênio, pois quanto mais oxigênio maior será sua capacidade muscular, seja para fugir, seja para lutar. O fígado começa a quebrar açúcar para obter energia imediata. Os rins produzem adrenalina, que faz com que os vasos sanguíneos se contraiam, de modo que o sangue circule mais rápido. As artérias da pele se contraem, para mandar todo o sangue possível para os músculos, gerando a sensação de calafrios. A adrenalina faz com que o cérebro ignore funções secundárias e foque naquilo que é indispensável à sobrevivência. O corpo começa a suar com a intenção de já promover um resfriamento, antevendo o aquecimento que será gerado pela fuga ou pela luta.

Em resumo, o corpo otimiza seu funcionamento piorando seu desempenho onde entende ser secundário e melhorando seu desempenho onde entende ser necessário para sobrevivência. Graças a esse maravilhoso mecanismo vemos pessoas fazendo milagres na hora do susto e do medo: velocidade, força e tantos outros atributos ganham um upgrade.

Evidentemente isso causa um grande estresse ao organismo, um desgaste que a longo prazo faz mal. Sim, sentir medo com muita frequência faz mal ao seu corpo e à sua saúde, nunca deixe ninguém te dizer que seu medo é uma “besteira” ou “frescura”, pois independente do quão incompreensível seja o estopim, o medo é real e causa um estresse real ao corpo. Eu, por exemplo, quando vejo uma lagartixa, tenho um Mini-AVC, do qual demoro horas para me recuperar.

A Amígdala tem boa memória, mas infelizmente não é muito espertinha. No meio de um evento traumático, ela pode registrar como perigosos diversos fatores que não colocam a vida da pessoa em risco mas que estavam presentes no momento. Por exemplo, soldados que lutaram na guerra e viram companheiros sendo mortos por tiros, granadas e minas: muitas vezes o trauma do barulho fica, mesmo sabendo racionalmente que não foi o barulho que matou os colegas. Como o barulho estava presente nos eventos traumáticos, na dúvida, ele entra no pacote de “coisas que devemos ter medo” e ali fica, fazendo com que ex-combatentes tenham pavor de trovoada, motor de moto e outros ruídos inofensivos.

Há quem afirme que a amígdala vem com alguns medos de fábrica. Medos gravados no nosso DNA por muitos anos de evolução. O ser humano, por exemplo, parece vir com medo de cobras “de fábrica”. Bebês expostos a cobras pela primeira vez na vida se assustam. O mesmo acontece com ratos expostos a gatos.

Ratos nascidos e crescidos em laboratório que foram expostos a cães e gatos se mostraram apavorados com os gatos e tranquilos em relação aos cães. Experimentos com dois grupos de macacos de laboratório mostraram que mesmo sem nunca terem visto uma cobra, eles se assustam ao entrar em contato com elas, entretanto, macacos que tiveram a amígdala removida cirurgicamente não se abalam quando colocados em contato com cobras. Sem amígdala, sem medo.

Existe ainda uma teoria que, longe de ser comprovada, especula que as fobias mais comuns são uma espécie de versão moderna de medos ancestrais que estariam gravados na nossa amígdala e por algum motivo comportamental acabam vindo à tona de forma exacerbada. Sem excluir as armadilhas da mente, os traumas e todos os fatores estudados pela psicologia, esta teoria apenas acresce como potencializador do medo uma informação que estaria gravada desde o nascimento.

Pela natureza da sua função, que se traduz basicamente em impedir que você morra, a amígdala não pode se dar ao luxo de fazer grandes elaborações ou questionamentos. O alarme tem que disparar rápido, para dar tempo de se proteger ou reagir. Uma “transmissão normal” no cérebro, não prioritária, costuma demorar em média 0,3 segundos para acontecer. Mas quando a mensagem é emergencial e vem da nossa amiga Amígdala, ela toma um atalho e chega em 12 milésimos de segundo.

Eventualmente, por causa dessa discrepância de tempo, podem ocorrer mal entendidos. Explico: o cérebro é complexo e analisa uma informação de forma mais complexa. Quando olhamos para um objeto, ele puxa nos arquivos o que é, para que serve, qual o seu tamanho, se já foi visto antes, etc. A amígdala, coitada, não pode fazer tudo isso, ela tem que ser rápida e certeira.

Por isso frequentemente somos traídos pelas nossas amígdalas. Você está em um cinema, sabe que está tudo bem, mas leva um baita susto durante o filme. A amígdala detectou UM fator de risco, mas não analisou o conjunto, porque não teve tempo, 0,3 segundos X 12 milésimos, lembra? Na dúvida, ela dispara o alarme. E você, mesmo sabendo racionalmente que está seguro e protegido em um ambiente controlado, pula na cadeira. Porque a Amígdala mandou, está mandando, que se dane o racional, ela é capaz de te fazer sentir medo independente dele.

Mas não tem problema, porque pouquíssimo tempo depois o lado racional do seu cérebro vai acalmar o organismo dizendo “shhh, já passou, não era nada, estou vendo que estamos seguros”. O resultado é um mini-susto, suficiente apenas para liberar uma descarga de adrenalina e dopamina (neurotransmissor que causa sensação de prazer). Por isso insistimos nos sustos controlados, eles trazem uma sensação tardia de prazer: filmes de terror, montanha-russa, etc. Bem diferente de uma situação de risco real. Ali a amígdala grita e o lado racional faz coro, desencadeando aquela poderosa reação em cadeia da qual falei alguns parágrafos acima.

A amígdala não te avisa apenas dos perigos externos, ela também é capaz de detectar perigos internos que você nem suspeita. Ela sabe quando algo vai mal no seu organismo e disparam um alerta. Uma pessoa atenta a seu corpo pode detectar que algo vai mal, o corpo “fala” com ela. Não são raros os casos de pessoas que ouviram o pedido de socorro do seu corpo e identificaram antes dos médicos que algo de muito errado estava acontecendo. Lá no fundo, você sabe que tem algo errado. Não ignore o aviso.

A Amígdala é influenciável: o medo de outras pessoas é capaz de disparar o nosso medo. Se está todo mundo correndo e gritando, é provável que sua Amígdala te impulsione a fazer o mesmo. Existem vários relatos de surto de pavor coletivos cujo estopim era falso, onde pessoas correram, se pisotearam e até mesmo se mataram.

Ainda dentro deste raciocínio, notícias que nos causam medo nos chamam a atenção, pois é um aprendizado que nos deixará mais espertos, mais preparados e mais aptos a sobreviver, ou seja, rende cliques e ibope. Por isso a mídia exaure eventos que provocam medo, como catástrofes, acidentes aéreos, programas policiais, violência e similares. Nós assistimos, pois isso chama a atenção do nosso cérebro: parece ser informação valiosa para nos manter vivos. “Ai, como Fulana é sádica, fica vendo essas matérias sobre o acidente aéreo”. O cérebro gosta, ele te recompensa por isso.

Essa hiperfoco no medo é devidamente explorado pela publicidade também, afinal, como diria o comercial “vai que…”. Não raro comerciais colocam situações de medo, ainda que não seja um medo catastrófico. E se o seu absorvente vazar? Melhor usar o desodorante tal, porque o medo de ficar fedido é enorme. Use Corega ou perca os dentes na maçã. O medo está, de forma explícita ou implícita, muito presente na publicidade, não por sadismo, mas como recurso, porque ele chama a atenção do nosso cérebro e ajuda a fixar uma informação que parece importante.

O medo funciona como isca para pescar atenção em outros setores. Políticos dizem que desgraças econômicas vão acontecer se seu adversário ganhar. Até mesmo em uma roda de amigos é possível ganhar a atenção dos presentes contando uma “desgraça”. O interesse não é mero sadismo, é seu cérebro te empurrando para saber mais, afinal, durante séculos o aprendizado indispensável para a sobrevivência humana foi feito no boca a boca.

Quando algo falha no funcionamento das amígdalas, o ser humano pode ficar imune ao medo. Um exemplo é a doença de Urbach-Wiethe, que gera um depósito de cálcio anormal na região, paralisando seu funcionamento. O resultado são pessoas que não sentem medo de nada e não são capazes de antever o perigo. Em casos extremos, a pessoa sequer identifica o medo nos outros e não consegue nem mesmo desenhar uma expressão de medo em uma folha de papel. Parece bom, mas pessoas sem medo levam uma vida altamente disfuncional, como eu disse, o medo nos protege.

Assim como erra para menos, a amígdala pode errar para mais. Especula-se que fobias tenham também um componente de hiperatividade da amígdala. Sabe quando você chama o elevador, aperta o botão e ele trava, fica apertado? Mais ou menos isso. A Síndrome do Pânico, um dos medos mais recorrentes na sociedade moderna, conta com a participação mais do que especial da nossa amiga, a amígdala trava e fica mandando sinais de perigo sem parar.

Não se sabe muito bem como, quando, onde e porque há o start, mas quando a pessoa tem uma crise de pânico, a amígdala recolhe todas as informações que lhe parecem importantes no momento da crise e as armazena. Vamos supor que a pessoa tenha uma primeira crise de pânico enquanto está dirigindo, no carro. Grandes chances daquilo ser registrado na amígdala e, mesmo não sendo o carro a causa, ele vira dano colateral. Pode ser que na próxima vez que a pessoa entre no carro a amígdala dispare um “Aqui não, aqui dá merda!”, porque ficou erroneamente registrado no último evento. Isso faz com que a pessoa não queira mais andar de carro. Como o carro não é a causa, e sim mero dano colateral, a crise vai se repetir em outro lugar e o mesmo vai acontecer. Se não for devidamente tratada, a pessoa acaba nem saindo mais de casa, pois associa tudo às crises de pânico.

Até então, pessoas com Síndrome do Pânico tomavam remédios com efeito global, em todo o cérebro, que de uma forma ou de outra terminavam por reduzir sua ansiedade. Mas estudos já cogitam utilizar remédios que atuem diretamente na amígdala, para controlar seus excessos. Há estudos em andamento que comprovam a diminuição de sentimentos negativos relacionados a traumas com a exposição a altas doses de cortisol. Não apaga a lembrança, apenas o sentimento de medo ligado a ela. Estima-se que em menos de dez anos esses medicamentos estejam começando a ser inseridos no mercado. Será que isso vai ser bom?

Complicado colocar no mercado um remédio que reduz seu medo. Grandes chances de acabar mal, principalmente nessa sociedade viadinha, intolerante a qualquer sentimento negativo, que se medica compulsivamente para não vivenciá-los. Seu sofrimento, seus medos e suas dores fazem de você o que você é hoje. Passar pelo sofrimento é necessário, o medicamento é apenas para quem estaciona nele. Mas eu sou voto vencido, grandes empresas farmacêuticas ignorarão isso e uma massa ávida por se livrar de sentimentos incômodos consumirão a “pílula contra o medo” como TicTac.

A lição que fica é: escute seus medos, escute seu corpo e não silencie seus medos, a menos que eles sejam patológicos. Seu corpo fala com você, você é que está muito ocupado ou desatento para escutar.

Para dizer que se medo dá ibope eu fui muito esperta em escrever este texto, para contar sobre seus medos ou ainda para tripudiar do medo dos outros: sally@desfavor.com


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