Discussões vazias.
Ontem foi o aniversário de 75 anos da libertação dos prisioneiros de Auschwitz, considerado o mais emblemático campo de concentração nazista durante a Segunda Guerra Mundial. Enquanto lembrava-se desse evento terrível na nossa história, discutia-se no parlamento da União Europeia a criminalização da negação no Holocausto em toda região, como já acontece em alguns de seus países. Mas… será que isso ajuda a causa?
Antes que alguém presuma algo errado sobre minha opinião: eu não nego a existência do Holocausto, mas me parece óbvio que se for para realmente analisar os números ou mesmo algumas das alegações dos sobreviventes e exércitos vencedores da guerra, vamos encontrar coisas pouco precisas. E isso é esperado: mesmo hoje em dia com computadores por todos os lados, mal conseguimos calcular quantas pessoas aparecem numa manifestação popular. Precisão é basicamente impossível nesses casos.
Já li muitos argumentos de negadores do Holocausto, colocando dúvidas sobre o número de judeus que realmente foram mortos, dos métodos utilizados nos campos de extermínio… alguns até viram meme nos dias atuais. A ideia prevalente nesse grupo de pessoas é que os dados foram manipulados em alguns casos e até mesmo inventados em outros. Um complô governamental e midiático para estabelecer uma narrativa mais favorável aos judeus perseguidos na época. Adoram pegar casos de pessoas que mentiram estar em campos de concentração, depoimentos claramente fantasiosos de supostos sobreviventes, contagens alternativas de vítimas realizadas por outras partes… se você quiser se aprofundar no tema, vai ter mesmo a sensação que a história que ouvimos não é tão certa quanto se imaginava.
Mas, como disse logo no começo, mesmo tendo me aprofundado nos argumentos dos negadores, eu continuo acreditando no Holocausto. Não porque tenho certeza de que foram 6.000.000 de judeus mortos e não porque acredito cegamente nos relatos do exército soviético sobre os campos que liberaram três quartos de século atrás. Tem muita coisa a ser questionada sim, mas nenhuma delas muda o cerne da questão: um governo colocou em prática uma política genocida contra pessoas cuja única coisa em comum era a descendência.
Mesmo que você tenha certeza de que não foram 6 milhões e que na verdade foram 6.000, o que isso muda na ideia de que o nazismo foi um regime de terror que violou tudo o que consideramos direitos humanos atualmente? Existe um número definido de assassinatos que um governo pode cometer antes de ser considerado maligno para a humanidade?
“Pode matar 10.000 pessoas que não tem problema, mas se matar 10.001, ninguém vai mais te tolerar!”
Oras, o cerne da questão não é a quantidade de pessoas assassinadas por um motivo torpe, é assassinar pessoas por um motivo torpe. E a tolerância dos nazistas com os judeus não é o argumento que os negadores do Holocausto querem montar. Se for menos de 6.000.000 de judeus, muda o nome de Holocausto para Lollapalooza e fica tudo bem para tentar o nazismo de novo? As coisas não funcionam assim. Não se analisa o cerne de uma questão através desse tipo de detalhe secundário. Me parece o mesmo tipo de discussão estúpida que se costuma ter em relação às religiões: gente discutindo a interpretação de uma escritura sagrada como se isso fosse central ao argumento sobre a existência de divindades interventoras. Se você está discutindo detalhes, é porque aceitou a premissa.
Ou começam a surgir argumentos válidos para dizer que Hitler e cia. não pregaram o extermínio de judeus, e seus textos e vídeos dizendo isso com todas as letras são falsos, ou não criamos nenhum fato novo na discussão sobre o Holocausto. Por mais que um negador acredite que tenha reduzido o número de mortos nos campos de concentração em 90%, isso não resolve o mais importante: mortos em campos de concentração. Um serial killer não é liberado pela justiça se descobrem que na verdade ele matou só metade do que foi acusado originalmente.
Mas infelizmente as pessoas parecem ser fãs desse tipo de discussão vazia. Não só os negadores do Holocausto como os que tentam criminalizar qualquer forma de expressão nesse sentido: figuras públicas tentando prender quem diz algo diferente do “certo” colocam combustível nessa fogueira ao validar a discussão vazia sobre o número de vítimas. Não é à toa que o número de negadores só vem aumentando nas últimas décadas: quanto mais repressão sobre expressão de ideias surge dos governos, maior a sensação do povo que tem algo errado nessa história.
Só que é crime em vários lugares. 16 países atualmente. De uma forma ou de outra, a negação do Holocausto é ofensa passível de banimento em várias plataformas online, e vai te colocar em problemas na maioria das conversas com estranhos. Eu entendo que controlar o ímpeto de nazistas modernos tenha suas vantagens para uma sociedade, só não acho que essa mecânica de criminalizar ideias dissidentes seja válida. Até porque jogar essa discussão em cantos escuros tem um efeito colateral terrível: evita que o negador do Holocausto escute bons argumentos contrários ao seu ponto de vista. Todo mundo que veio falar comigo, direta ou indiretamente negando o Holocausto (e que eu não entendi como humor) ouviu de volta esse argumento sobre a irrelevância dos números disputados. Eu te digo com confiança que boa parte dessas pessoas sequer tinha considerado essa questão. Não sei se mudou a cabeça de alguém, mas o papo nunca mais veio da mesma forma quando eu estava por perto.
Quando a única forma de combate ao que você diz é histeria e ameaças, é inevitável que você comece a acreditar que está tocando nos pontos certos. E esse tipo de pensamento se espalha como um vírus entre as pessoas. Adoramos discussões vazias, parece algo básico do nosso funcionamento mental. Esse tipo de conversa baseado em minúcias não força muito o cérebro e mantém nossas visões de mundo basicamente intactas. Eu já aprendi a prestar muito mais atenção nas raras pessoas que enxergam por trás dessa mania de picuinhas por assuntos pequenos e vão direto na jugular de cada tema. Antes de discutir qualquer coisa, é importante saber o porquê daquela discussão. O que ela vai gerar de resultado? O que ganhamos com isso? O que podemos aprender?
Se você não souber a resposta de nenhuma dessas perguntas, está na hora de considerar se a discussão vale a pena mesmo. Portas de madeira em celas de campos de concentração tornam o nazismo aceitável? Relatos conflitantes entre exércitos nos fazem querer totalitarismo racista? A não ser que você esteja preparado para defender a base da sua ideologia, a análise do que se origina a partir dela é pouco relevante. E no sentido oposto, se você dá o poder de quem defende algo abjeto de te incomodar ao ponto de tentar censurá-lo por detalhes técnicos de seu discurso, você está admitindo o valor daquela ideia por trás de tudo ao mesmo tempo. E pior, criando mais e mais pessoas que vão ter seu primeiro contato com uma ideologia perigosa a partir da parte mais defensável dela.
Temos que aprender a cortar o mal pela raiz. E a raiz continua intacta com leis bizarras que criminalizam expressão. Na verdade, só reforçam a ideia em muita gente que estão escondendo algo delas, e isso é extremamente estimulante para o ser humano médio. Cada lei criminalizando a negação do Holocausto cria mais pessoas desconfiadas que vão achar argumentos tentadores se pesquisarem um pouco. E como essas pessoas não vão entrar em contato com alguém que consegue explicar calmamente para elas porque o nazismo é um problema, vão acabar na mão de quem pensa justamente o contrário.
O Politicamente Correto criou a guinada à direita que estamos vendo ao redor do mundo atualmente, e as leis contra a negação do Holocausto estão ajudando a radicalizar gente que só está de saco cheio de lacração na rede social. Influenciar seres humanos é uma tarefa muito complexa, e qualquer exagero num sentido tende a sair pela culatra. Quer negar o Holocausto? Manda ver. Mas, quando eu perguntar por que matar UM judeu só por ser judeu é justificável, é bom você ter uma resposta, porque senão todo o resto da conversa é inútil e ambos perdemos nosso tempo.
Para dizer que eu continuo sendo nazista por não dizer seus pronomes, para dizer que eu seria preso do mesmo jeito na Alemanha, ou mesmo para dizer que apagar comentário chulo sem relação com os textos é censura e eu sou hipócrita: somir@desfavor.com
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Etiquetas: argumentação, holocausto, nazismo
Ana
Triste isso mesmo. Sufocar uma discussão, mesmo que um dos lados seja terraplanista, ou antivacina, ou negador do holocausto, só tende a formar bolhas de gente cheia de razão sem nenhuma evidência disso (o fato de eu tirar essa afirmação do meu nariz é bastante hipócrita, mas enfim eheheheh). E cria mesmo essa sensação de “se eu estou tão errado assim, porque você tá tentando me proibir de falar em vez de apresentar o argumento em contrário?”.
Bárbara.A.
Já fui forçada a conviver com um nazista (Nas palavras dele “nacional socialista) que negava o Holocausto por causa das malditas portas de madeira!
Apresentei matérias, estudos, fontes confiáveis (que ele sempre dizia estarem mentindo) e até uma análise de herança genética comprovando que os campos existiram, mas continuava negando… Chegou uma hora que eu mandei a merda. É tipo aquele ditado de discutir com um pombo
Somir
O fanatismo religioso nem sempre precisa de uma divindade…
Geraldo Renato da Silva
Muito preocupante que, em pleno século XXI, ainda exista gente que negue a ciência, ou pior, as evidências dos fatos. Anos atrás, li uma notícia de que havia uma proposta no Parlamento da Alemanha para retirar as cruzes das igrejas, para não “insultar” os “refugiados” muçulmanos…
O que sempre achei estranho é os “estudiosos” nunca considerarem o comunismo tão horrível quanto seu irmão, o nazismo, sendo que ambos são regimes de esquerda.
Somir
Nazismo de esquerda é forçar a amizade. O movimento foi uma bagunça no sentido econômico, cedo o ponto que o inchaço do Estado pode dar essa impressão, mas é meio como dizer que a União Soviética de Stalin era de direita porque ele controlava o país com mão de ferro.
Anônimo
Negadores do Holocausto são como terraplanistas.
W.O.J.
Taí, gostei da definição…
Anônimo
O problema é que pode abrir brecha pra criminalização do questionamento de outros fatos históricos, aí se resolverem forjar propositalmente (não me refiro ao Holocausto), não vamos ter o direito de descobrir.
Tem zoomer de 13 anos por ai dizendo que o impeachment da Dilma foi golpe, Zé Cruzadinhas falando que a ditadura militar era boa e a Inquisição foi bela e moral, mídia forçando diversidade racial até em filmes históricos sobre um vilarejo isolado no norte da Noruega, e aquele emblemático caso da universidade (Harvard, eu acho) que removeu retratos de ex-alunos notáveis de suas paredes, por serem majoritariamente homens brancos…
UABO
Ah, essa molecada que nasceu ontem mas acha que já sabe de tudo e que tem a solução pra todos os problemas do mudo mas é incapaz de resolver a própria vida e enfim sair da casa dos pais…
Mokvwap
Não consigo pensar em maneiras melhores de se estimular uma pessoa média a se interessar, buscar, questionar e negar (da maneira mais simplória, reducionista e vazia que se possa imaginar) algo do que tornar crime passível de prisão o questonamento ou negação desse algo. É um prato cheio para o fenômeno “VERDADES QUE -ELES- NÃO QUEREM QUE VOCÊ SAIBA”.
Some-se isso à banalização do termo Nazista, que tem sido usado pra rotular personalidades com um perfil similar ao do Trump, seus apoiadores, e pessoas conservadoras em geral, e um dos efeitos paralelos disso é levar essas pessoas a questionarem se o Nazismo era mesmo aquela coisa hedionda e monstruosa ou se a coisa toda não foi aumentada por gente histérica ou com interesses obscuros nisso.