FAQ: Coronavírus – 29

Todo dia leio que milhões de doses foram distribuídas, mas também que a previsão de vacinação caiu. Como pode ser?

É que o fato de uma dose de vacina ser distribuída não faz ela automaticamente chegar no braço da população. Uma coisa é a distribuição, outra é a aplicação.

Lembra lá no começo, no ano passado, quando a gente falava que a criação de uma vacina era só o primeiro passo? Pois é, se o país não tiver uma boa logística de distribuição, a vacinação é lenta. Hoje, no Brasil, em média, existe um intervalo entre a dose ser distribuída e ser aplicada demora mais de 20 dias.

Então, quando o laboratório diz “toma, tá pronto” e dá a vacina nas mãos do Poder Público, ainda demora mais de 20 dias para que essa vacina seja aplicada na população. E, cada vez que acontece um imprevisto (como confundir o nome dos estados e enviar para o local errado) atrasa mais ainda.

É por isso que um país como o Brasil, que tem forte tradição em imunização e rastreio de doenças, tem pouco mais de 10% da população vacinada com duas doses, quase seis meses depois de começar a vacinar. Pura incompetência. Não é brincadeira quando dizemos que o país já poderia estar completamente imunizado, se tivesse feito tudo certo, todo brasileiro já estaria com duas doses de vacina. Imagina a demora para terminar a vacinação se o país continuar vacinando 10% da população a cada seis meses…

Isso deveria melhorar urgentemente, não apenas por uma questão de vergonha na cara e da possibilidade de surgirem novas variantes, mas pelo fato do Brasil estar prestes a receber muitas doses (3 milhões de doses) da Janssen, vacina da Johnon´s, que, além de ser uma ótima vacina, é dose única. Mas, estas vacinas vencem no dia 27 de junho. Ou seja, se elas chegarem hoje, vão vencer sem ser aplicadas. Uma pena desperdiçar boas vacinas, dose única, por incompetência logística. Ou o Brasil vai se adequar, ou vão ter que fazer uma gambiarra para burlar o prazo de validade dessas vacinas.


O que aconteceu com a Sputnik V? Você explicou um monte de restrições muito difíceis de serem atendidas e, no final das contas, ela foi aprovada.

Pergunta para a ANVISA, pois o Instituto Gamleya, fabricante da Sputnik V, continua mantendo a mesma postura: “quer, quer, não quer, não compra”. Não mexeram um alfinete em suas fábricas para se adequar às exigências da ANVISA, não mudaram os componentes da sua vacina (um suposto vírus replicante), não disseram o que estas vacinas contém e muito menos deixaram visitar as fábricas que o Brasil queria ver. Acho que fica bem claro quem abriu as pernas aqui.

Mas, para ser justa, vale ressaltar que ela foi aprovada com restrições, ou seja, apenas alguns lotes poderão ser comprados, que são os lotes vindos das fábricas nas quais a visita foi autorizada. Ainda assim, como vimos no FAQ só sobre a Sputnik V, existiam muitas outras pendências, inclusive uma forte acusação de vírus replicantes dentro da vacina, que poderiam se reproduzir dentro do organismo humano. Parece que tudo isso foi deixado de lado.

Também colocaram restrições a quem pode receber a vacina: apenas pessoas jovens e saudáveis. Idosos, gestantes e outros grupos não poderão tomar. Isso também passa uma mensagem ruim, pois, aos olhos do leigo, parece um “toma esse troço duvidoso você, que tem mais chances de sobreviver”. Pra que fazer as coisas desse jeito? Se resolveram negar e sentar o cacete na Sputnik V, que mantenham a consistência. Nada mudou nesses dias, só o posicionamento pessoas da ANVISA.

Percebam que eu posso respeitar ambas as escolhas: aprovar mesmo não estando em condições ideais devido à urgência da pandemia e ao amplo uso da vacina pelo mundo sem efeitos graves OU não aprovar pois não atende às exigências da ANVISA. O que eu não consigo respeitar é, num primeiro momento meter uma banca do cacete exaltando o quanto essa vacina não parece segura e não atende os requisitos e, semanas depois, dizer que tá bom, vai lá, vamos aceitar só um pouquinho.

Isso é ruim para o Brasil, pois fica parecendo que aqui não se tem palavra ou critérios e também é ruim para o brasileiro, que primeiro teve a cabeça enchida de desconfianças sobre uma vacina e agora, os mesmos que plantaram a desconfiança os mandam tomar a vacina. Óbvio que isso gera desconfiança e hesitância vacinal, problemas que já eram bastante sérios no Brasil antes dessa lambança.

Eu sinceramente não sei dizer o que pesou de verdade para o Brasil aceitar a Sputnik V. Pode ter pesado o fato do mundo todo estar usando essa vacina, inclusive a Unicef, sem o relato de nenhum efeito colateral grave. Pode ser o desespero pela terceira onda, pode ser até uma propina ou uma comissão que o governo esteja levando, afinal, pacto de brasileiro com russo a gente sempre tem que desconfiar.

Ainda assim, se a vacina tinha tantos perigos como acusou a ANVISA (as acusações estão detalhadas no FAQ sobre a vacina), me parece desmoralizante que ela seja aceita, ainda que com restrições, principalmente quando uma das acusações era sobre a falta de confiança e transparência no governo russo. Se é um governo no qual não se pode confiar e não há transparência, quem garante que vão mandar um lote produzido na Fábrica X, que foi inspecionada pelos brasileiros? Podem mandar lote de onde quiserem, o Brasil nunca vai saber.

Enfim, foi uma arreganhada de pernas. Bradar que o vírus poderia se reproduzir dentro do corpo das pessoas, que havia severas violações a normas de segurança e higiene e que havia recusa em fornecer dados sobre componentes da vacina e, dias depois, dizer que tá tudo bem fica feio demais. Se topavam flexibilizar suas normas, que o fizessem no primeiro momento. Alarmar a população contra a vacina e depois dizer “tá bom, vou deixar, mas só um pouquinho” é um tremendo desfavor, pois de dois um: expõe as pessoas a uma vacina que eles não consideram totalmente segura ou criam uma animosidade e um receio contra uma vacina perfeitamente segura. Parabéns aos envolvidos.


Você disse em um TOP DES que a variante indiana destronou a de Manaus. Pode explicar melhor?

Sim, infelizmente a Variante Delta (conhecida como Variante Indiana) é muito pior do que imaginávamos, inclusive que a Variante Gama (conhecida como Variante de Manaus). Provavelmente, vamos ter um problema enorme com a Variante Delta e só vacina não vai resolver.

Tem duas grandes preocupações em variantes: que sejam mais transmissíveis e que tenham escape imune (que saibam burlar nosso sistema imune/vacinas). A variante Alfa (não vou escrever Alpha, desculpa), conhecida como Variante do Reino Unido, era mais transmissível e a variante Beta, conhecida como Variante da África do Sul, era boa no escape imune, reduzindo a eficácia de vacinas.

Depois, surgiu a Variante Gama (de Manaus) que conseguiu a proeza de ser mais transmissível e ter escape imune (conseguiu reinfectar quem já teve covid, ainda que tivessem anticorpos no organismo para o vírus anterior). Não preciso falar muito sobre ela, o Brasil viu o que aconteceu no país (e nos países vizinhos) com a Variante Gama. Um grande estrago. Pois bem, a variante Delta é bem pior.

A Delta parece ter um escape imune maior do que as anteriores (reduzindo a eficácia de todas as vacinas entre 30 a 60%) e é muito, mas muito mais contagiosa do que as anteriores. Isso seria um problema para qualquer país, mas, em um país com pouco mais de 10% da população vacinada com duas doses e onde as pessoas não têm a capacidade de fazer isolamento social, isso pode ser catastrófico.

A esperança da Variante Delta não entrar no Brasil não existe. Já foram detectados alguns casos (ou seja, entraram vários que nem foram identificados) e, mesmo que não tivessem entrado, o país está sediando uma Copa América na qual os atletas não precisam estar vacinados para jogar. Então, dou como certo que ela vai entrar, se já não entrou. Essa compra tá feita, cedo ou tarde vai chegar a conta para pagar.

Vamos analisar um histórico das variantes para que vocês entendam o tamanho do problema. A primeira variante, a Alfa, era 50% mais transmissível que a covid original, a covid raiz (cujo nome técnico é “vírus ancestral” mas não vou usar), aquele de Wuhan. Pois bem, a variante Delta é 50% mais transmissível do que a Variante Alfa.

Sabemos que para segurar a doença o ideal é que uma pessoa contagiada não contamine mais ninguém ou contamine, no máximo, uma pessoa. Isso quer dizer que se uma pessoa com covid passa a doença para apenas uma pessoa, os casos se mantêm constantes. Passou disso a coisa começa a subir, crescer exponencialmente e sair do controle.

Para que os casos caiam, é preciso fazer com que cada pessoa contaminada não contamine ninguém, ou, na média, que os contagiados contaminem menos de uma pessoa no saldo geral. Quando mais pessoas um contaminado contagiar, pior fica a situação do país. Se o covid-raiz já arrombou o Brasil, e sua variante Gama (de Manaus) arrombou duplamente, preparem-se para um arrombamento com crescimento exponencial. Vamos entender como isso se traduz em números.

Sem tomar qualquer medida de proteção, uma pessoa infectada com o covid-raiz transmitia o vírus para outras três pessoas. Se, para evitar que o vírus se espalhe é preciso que um contaminado não contamine mais de uma pessoa, podemos dizer que no covid-raiz, era preciso que, a cada três pessoas, pelo menos duas não peguem o vírus, o que significaria ter duas pessoas em três vacinadas contra o vírus. É daí aquele mantra de que precisa imunizar 70% da população para gerar uma proteção coletiva. Mas isso mudou, o vírus ficou mais esperto e nosso problema ficou maior.

Depois surgiram as Variante Alfa e Gama, que se tornaram mais transmissíveis. Agora, uma pessoa infectada com a Variante Alfa conseguiria infectar outras quatro pessoas. Se uma pessoa infecta quatro, agora se tornou necessário que três quartos da população esteja imune para alcançar uma proteção coletiva satisfatória, ou seja, 80% da população imunizada para não deixar o vírus circular. Mas o vírus continuou mudando, ficando ainda mais esperto e nosso problema ficou ainda maior.

Agora, peguem seus lencinhos, pois vai dar vontade de chorar. A Variante Delta é mais transmissível que a Alfa: uma pessoa com covid pode transmitir a doença para outras SEIS pessoas. Isso quer dizer que, para fazer uma imunização coletiva eficiente que faça o vírus parar de circular, é preciso imunizar cinco a cada seis pessoas, o que daria em torno de 85% das pessoas. Não sabemos nem sequer se isso é possível, pois se somarmos os que não podem se vacinar com os que não querem se vacinar, talvez não cheguemos a 85% da população.

Além disso, é preciso levar em conta a eficácia da vacina. Esses números trabalham com uma presunção de uma vacina 100% eficaz, o que nem sempre é o caso. Isso quer dizer que se tivermos uma vacina com eficácia de 70% e vacinarmos toda a população, não será suficiente, o vírus vai continuar circulando.

O que nos leva à segunda parte trágica da resposta: a variante Delta mostrou um escape vacinal parcial, ou seja, as vacinas funcionam e protegem contra ela, mas são menos eficientes (a redução oscila entre 30 a 60%). E, para completar, só vacinados com as duas doses, após o prazo de 20 dias, tem uma boa proteção contra essa variante. Talvez seja hora do Brasil parar de divulgar os altíssimos números de pessoas vacinadas com apenas uma dose, pois essa estratégia foi burra pra caralho.

Ser mais transmissível, em países como o Brasil, fatalmente implica em ser mais letal, pois não há leitos, médicos, respiradores ou oxigênio no mundo suficientes para dar conta de tantas pessoas doentes ao mesmo tempo quando a população não sabe usar máscara direito, não faz um lockdown decente e ainda decide sediar eventos que envolvem aglomerações.

Não chega muito na gente por diversas questões, mas o que está acontecendo na Índia é um verdadeiro massacre. Estima-se que os números reais fiquem em torno de 30 mil mortes por dia – e não são mortes muito serenas ou dignas. Os países precavidos estão com as fronteiras fechadas, vacinando na velocidade da luz, em lockdown e apavorados com a entrada dessa variante em seu território. Os países banânicos estão sediando competição e recebendo pessoas não vacinadas.

Então, se a natureza seguir seu curso natural, a variante predominante será a Delta (indiana), destronando a Gama (de Manaus) por ser muito mais transmissível do que ela. Se a Gama lotava UTI em três meses, a Delta vai fazer um estrago ainda pior em um mês. Aí eu te pergunto: se todos os países que estão vacinando bem e fechados estão apavorados, como não deveria estar o Brasil, que está vacinando mal e bundeando?

Hoje o Brasil parte de quase 90 mil casos por dia, sem a Variante Delta. Imagina para onde isso vai quando ela entrar e começar a se espalhar. Hoje o Brasil parte de mais duas mil mortes por dia, sem a Variante Delta. Imagina para onde isso vai quando ela entrar e começar a se espalhar. Com essa cobertura vacinal, ou fica todo mundo trancado em casa ou vamos ver uma carnificina, um holocausto, uma tragédia muito pior do que todas as que já aconteceram – mesmo com vacina, afinal, uma dose não basta, o que deixa 90% da população brasileira na merda. E ainda vai ter pau no cu dizendo “tá vendo como vacina não funciona?”.

Como em todos os outros alertas que a gente deu, pode parecer alarmista, pode parecer distante, pode parecer que vai demorar. Mas é verdade. Salvo um desvio de curva por algum motivo totalmente inesperado, esse é o futuro próximo. Então, se você ainda está parado no tempo repetindo que “tem que sair para trabalhar para pagar as contas” eu sugiro começar a entoar o novo mantra do sobrevivente: “tenho que mudar meu ganha pão para algo que eu possa fazer online, de casa, sem contato com outras pessoas”.

É muito sério isso, o que está por vir não vai ser bonito. É o que acontece quando o ser humano se comporta de forma mais burra que um vírus. Comecem a se preparar agora, e nem sonhem com a possibilidade de deixar de usar máscara ou ir a aglomerações por causa de vacina, isso só vale para país civilizado que faz seu dever de casa e cria barreiras sanitárias para impedir que novas variantes entrem. O Brasil não faz, muito pelo contrário, as convida, com eventos internacionais.

Só posso desejar boa sorte a todos e pedir que se cuidem muito. Já começou. Está discreto, está silencioso, mas já começou.

Para dizer que depois de estragar seu dia eu tenho o dever moral de escrever um Siago Tomir, para dizer pela milésima vez que acha que estamos exagerando ou ainda para dizer que se for assim o Japão vai acabar (não vai, lá eles tem disciplina e senso de sacrifício): sally@desfavor.com

Se você encontrou algum erro na postagem, selecione o pedaço e digite Ctrl+Enter para nos avisar.

Etiquetas: ,

Comments (6)

  • Enquanto isso, o Reino Unido está repensando as estratégias de afrouxamento do Lockdown, tendo em vista a predominância da variante Delta…Meldels.

    • Pois é, apesar de muita vacina e do vírus muito mais controlado do que no Brasil, eles sabem que precisam ficar fechados

  • Essa última explicação sobre a variante indiana do Coronavírus ter “destronado” a de Manaus e sobre como o estrago por aqui será de proporções horripilantes em um futuro bem próximo é mesmo para deixar apavorado qualquer pessoa que tenha um mínimo de juízo. E esse medo todo nem seria do vírus em si – porque quem tem juízo sempre procurou se cuidar -, mas da porra do tal “Fator Brasil” que torna tudo ainda mais difícil. Já está ficando chato repetir tanto, mas eu ainda insisto em dizer: parece que não importa o que aconteça, o Brasileiro Mé(r)dio não quer – ou nem consegue – perceber que é justamente o seu comportamento de merda o que mais tem contribuído para que esta pandemia demore ainda mais a passar.

    • Parece que o povo fez um pacto de anestesia psicológica coletivo. Ninguém se importa, ninguém quer pensar a respeito. E, enquanto não olharem para o problema, ele vai continuar aumentando. Quando mais adiarem esse aprendizado, mais forte virá a lição que os obriga a olhar para isso.

  • Vc viu como isso não vai ter fim? Aí chega num ponto que a pessoa joga a toalha, porque se a variante Delta me matar, vou até sair no lucro, porque viver sem viver, sinceramente não me interessa.

    • Acho que seria o caso de corrigir os pilares de uma vida que fica desinteressante por não poder sair na rua para lazer. Que porra de vida é essa que perde o sentido sem isso, a ponto de se abrir mão dela?

Deixe um comentário para Anônimo Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Relatório de erros de ortografia

O texto a seguir será enviado para nossos editores: