Guerra de verdade.

No último domingo, os russos atacaram um campo de treinamento de voluntários estrangeiros na Ucrânia perto da fronteira com a Polônia. Segundo os russos, morreram 180 deles, segundo os ucranianos, 34. Mais uma batalha de versões, como tanta que vimos e ainda vamos ver nessa guerra. O que parece mais confiável, no entanto, é a quantidade de pessoas que começaram a repensar a ideia de ir lutar uma guerra…

Dados oficiais confiáveis são difíceis de se encontrar nesse caso, mas desde o começo do conflito, milhares de pessoas ao redor do mundo manifestaram seu desejo de ir até a Ucrânia ajudar o exército local. Sabemos que vários chegaram lá, até mesmo brasileiros. Gente que foi para pegar em armas e lutar, não voluntários para ajudar refugiados ou algo parecido.

Já surgiram vários relatos desses voluntários desde então. A maioria depois do ataque ao campo de treinamento: não só mencionam o óbvio do perigo subitamente percebido, como sobram críticas à desorganização e suposta loucura dos comandantes ucranianos. Relatos do tipo de receber um rifle com 10 balas e a sugestão de conseguir mais com soldados russos mortos.

Embora eu não vá negar que existe algo nobre na ideia de ir para uma guerra defender um povo que você considera oprimido, existe algo também de insanidade de se surpreender com o risco e o estado caótico da defesa ucraniana no momento. Muitos desses voluntários, incluindo brasileiros, botaram a viola na sacola e voltaram para a segurança da Polônia. Covardia? Não sei, não posso julgar. Eu jamais teria ido para começo de conversa, por mais que ache incrivelmente errada a agressão russa. Talvez tenha sido a primeira atitude racional de muitos desses voluntários nos últimos tempos.

O que eu tiro dessa história pode ser visto de forma otimista ou pessimista. Eu vou expor os dois ângulos e você decide quão cheio está o copo. O Ocidente está há tanto tempo sem uma guerra “de verdade” que boa parte da população sequer entende o que uma guerra significa na prática. E isso pode ser visto de forma positiva sim, afinal, esse tipo de inocência de achar que lutar uma guerra é uma missão nobre para salvar a população civil não deixa de ser uma prova de como a paz entrou na cabeça do cidadão médio europeu e americano.

Gerações anteriores não tinham muitas ilusões sobre uma guerra: diziam adeus para as mães e as mulheres e iam para uma situação de vida ou morte, com muita ênfase na morte. Décadas e décadas de avanços tecnológicos que reduziram e muito o número de casualidades em conflitos militares começaram a influenciar a visão do cidadão médio sobre o que é uma guerra. O americano e o europeu, especialmente. Viam guerras como algo totalmente desequilibrado ao seu favor, lutando contra grupos desesperados de fanáticos religiosos no meio do deserto. Ou pior, viam guerras como jogos, esquecendo que na vida real você não pode tentar de novo depois de tomar um tiro na cabeça.

Chegar na Ucrânia para enfrentar um exército de verdade não é a mesma coisa que a ideia de guerra ocidental das últimas décadas. O adversário tem tecnologia e recursos. Tem mão-de-obra e planejamento. Por mais que o exército russo não tenha o nível de refinamento que nações mais ricas, eles têm o básico para pisar na cabeça de milícias urbanas e guerrilheiros em geral. Para quem já esqueceu, os russos entraram na guerra da Síria e em pouco tempo esmagaram a resistência ao ditador local. Não existe disputa real entre um exército com aviões e bombas e um com rifles no meio da rua. O pessoal do Oriente Médio já sabe disso.

O pessoal que foi lutar/lacrar na Ucrânia aprendeu do jeito mais difícil. Novamente, eu vejo algo de bom no coração de quem achou que poderia ajudar numa injustiça dessas, mas sem o cérebro o coração de nada vale. E faltou muito cérebro aqui…

O ser humano é o único predador do ser humano. E por mais que algumas pessoas se achem especiais, na prática qualquer disputa entre dois ou mais tende a ser muito equilibrada. Um soldado do lado ucraniano no máximo compete com um soldado do lado russo. Tem outra pessoa do outro lado, pessoa que não quer morrer, que não vai ficar com dor no coração por achar que é o vilão. Por algum motivo, esses voluntários pareciam achar que estavam indo para desequilibrar a guerra para o lado ucraniano. Oras, basta 10 segundos de pesquisa na internet para descobrir o tamanho da desvantagem ucraniana.

Quem foi pra lá achando que ia ter uma aventura e ajudar os mocinhos se deparou com uma guerra, e pior, do lado absurdamente mais fraco. Quanta gente que se mandou para a Ucrânia entendia de verdade que estava basicamente se matando? Pelo desânimo causado na legião estrangeira depois do bombardeio, eu imagino que era a grande maioria. Muitos eram soldados veteranos das guerras do Iraque e do Afeganistão, que nada tinham a ver com o conflito da vez. Estar numa guerra do lado com todo o poderio é muito diferente de uma equilibrada, e mais ainda da missão impossível de derrubar o segundo maior exército do mundo com guerrilheiros que sequer tem munição suficiente.

E aqui podemos olhar para um lado negativo: o que diabos aconteceu com a mídia de massa ocidental para deixar tanta gente ignorante sobre o que é uma guerra? Repito que nem acho que quem fugiu depois do bombardeio seja necessariamente covarde, é provável que tenham realizado a besteira tarde demais. O mundo ocidental demonstrou sua inocência e vulnerabilidade à propaganda furada de que guerra era algo nobre. Americanos e europeus passaram décadas falando sobre o heroísmo de vencer os nazistas e depois, continuaram falando sobre como as guerras no Oriente Médio eram sobre enfrentamento de ditadores e proteção de direitos humanos. Queriam dar um verniz de legitimidade aos seus esforços para assegurar soldados e financiamento para suas indústrias militares.

Mas na vida real, guerra é algo horroroso, gente se matando por ordens que sequer compreendem. É brutalidade, é sofrimento, é quebra do acordo social moderno. É um mundo que ainda bem que muitos não viveram, mas que me preocupa o quanto foi escondido do cidadão médio. Sempre tem maluco que vai para guerras com o objetivo de matar ou morrer, e por mais que eu chame de maluco, pelo menos sabem o que estão aprontando. O cidadão médio que acabou nos centros de treinamento ucranianos dificilmente entende essa questão.

Porque mesmo a noção de morrer numa batalha não é realista numa guerra. Do jeito que a guerra funciona no século XXI, é imensamente mais provável morrer por um bombardeio ou por um ataque surpresa do que num tiroteio de filme. Pegou num rifle, o exército inimigo vai te matar da forma mais segura possível assim que tiver uma chance. Mesmo quem acreditou que poderia morrer de forma gloriosa lutando pelo povo ucraniano se enganou: estão lá para morrer numa explosão aleatória sem mal ver um soldado russo.

Me preocupa que ninguém tenha explicado isso para boa parte desses voluntários. Me preocupa que mesmo que alguém tenha explicado, eles não terem capacidade de entender. A parte vergonhosa de sair com o rabinho entre as pernas do campo de batalha não é a de não querer morrer, eu também não quero, a parte vergonhosa é a desconexão da realidade necessária para só perceber isso quando uma bomba gigante explode ao seu lado.

O que essa gente achava que ia acontecer? Eu vi fotos de “patrulhas trans” andando pela Ucrânia… americanos e europeus sem um neurônio funcional na cabeça entrando em uma zona de guerra para fazer panfletagem da sua causa querida. É uma falta de noção tão grande que parece piada. E eu mantenho minha crítica ao presidente ucraniano, tratado como herói, mas que na prática está incentivando milícias locais e transformando cidadãos que tecnicamente estariam protegidos pela sua condição de civis em alvos livres. Estão jogando com essa noção infantilóide do que é uma guerra.

É muito importante lembrar que os russos estão com dois braços e uma perna amarradas ainda. Bombardeio de maternidade é só o começo do que eles podem fazer se quiserem acabar com a Ucrânia de verdade. Na Síria, que ninguém olhava mais, eles pegavam listas de hospitais e bombardeavam para acabar com a resistência. Guerras são horrorosas por definição. A única coisa alongando essa guerra é a preocupação russa em não cometer crimes de guerra demais.

É assustador quanta gente olha para essa situação e acha que os ucranianos estão lutando de volta com força suficiente. É completa falta de noção sobre o que está acontecendo, falta de noção que faz com que muita gente ache razoável ir pra lá pegar um rifle e lutar. Não estava vivo durante as grandes guerras do século XX, mas até onde eu aprendi, naquele tempo o povo recebia uma dose elevada de propaganda, mas não perdiam a noção de que lutar era morte quase certa.

Medo do que essas gerações vão fazer se precisarem lutar de verdade numa nova guerra mundial. Será que vão correr feito gado para o abate na ilusão de que o bem vence o mal? Ou será que no primeiro bombardeio vão entrar em pânico e fugir da fronte esperando o problema sumir por mágica? O futuro da humanidade pode até ser melhor se o conceito de guerra virar um faz-de-conta e todo mundo desaprender sua gravidade, mas enquanto houver desequilíbrio entre povos que nasceram e se criaram na brutalidade e povos que foram protegidos das verdades cruéis da vida, existe o risco do povo mais resistente herdar o mundo.

Ou vamos juntos, ou voltamos juntos.

Para dizer que não entendeu o ponto do texto, para dizer que quer ver a tropa trans lutando, ou mesmo para dizer que eu estou defendendo os russos por dizer que eles ganham quando quiserem: somir@desfavor.com

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Comments (10)

  • “Porque mesmo a noção de morrer numa batalha não é realista numa guerra. Do jeito que a guerra funciona no século XXI, é imensamente mais provável morrer por um bombardeio ou por um ataque surpresa do que num tiroteio de filme. Pegou num rifle, o exército inimigo vai te matar da forma mais segura possível assim que tiver uma chance”.

    Curiosidade histórica: os nazistas inventaram o primeiro (modelo funcional) infravermelho, acoplado em rifles e metralhadoras, denominado Vampiro, perfeito para o trabalho de snipers na frente oriental. Para sorte dos aliados, só começou a ser utilizado ao final de 1944, quando o caldo já havia entornado, e em poucas quantidades.

    Sugiro ler livros sobre armas secretas alemãs para ver as ideias que eles tinham para matar da forma mais segura possível, algumas delas desenvolvidas nos EUA no pós-guerra.

  • Alguem aqui leu a notícia de que os russos bombardearam o quartel da legião estrangeira depois de checar a posição exata pelo Instagram de alguns voluntários brasileiros? Que postaram dezenas de fotos dando todos os detalhes possíveis e mais alguns? É sério isso?

    • Esther, eu vi ontem um vídeo justamente sobre isso num canal de YouTube chamado Galãs Feios e também fiquei espantado com o tamanho da cagada que fizeram. Os caras vão lá querendo brincar de Rambo no meio de uma guerra real e, em vez de ajudar, só atrapalham.

  • Sério que alguém acha que os sem noção (viciados em games com as bundas nas cadeiras em frente ao notebook) que foram encarar uma guerra irão fazer falta aqui no Brasil?

  • “enquanto houver desequilíbrio entre povos que nasceram e se criaram na brutalidade e povos que foram protegidos das verdades cruéis da vida, existe o risco do povo mais resistente herdar o mundo”
    Sempre haverá, porque a prosperidade do segundo grupo em parte se deve ao financiamento de conflitos no primeiro grupo. Suécia, por exemplo, é um dos maiores exportadores de armas do mundo. Assim fica fácil financiar 300 políticas de Estado-babá e gênero neutro…

  • “Eu vi fotos de “patrulhas trans” andando pela Ucrânia… americanos e europeus sem um neurônio funcional na cabeça entrando em uma zona de guerra para fazer panfletagem da sua causa querida. É uma falta de noção tão grande que parece piada. “ Caralho… E, realmente, Somir, essa sua definição “sem um neurônio funcional na cabeça” é perfeita. Que mundo maluco é este em que a mais inverossímil ficção vem sendo superada, de longe, pela realidade? E, por falar em realidade, quão desconectada do mundo de verdade lá fora uma pessoa tem que ser para cometer essa estupidez gigantesca contra si própria? Será que esses “nobres guerreiros do bem” pensam que guerra real é igual àquelas a que estão acostumados nos videogames?

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