Imagem de empatia.

Depois de muitas décadas, temos novamente uma guerra na Europa. Europa lado B, por assim dizer, porque não está exatamente nas áreas que a maioria de nós consideramos Europa quando pensamos no continente. Mesmo assim, o mundo todo virou os olhos para o conflito como não fez para guerras muito piores acontecidas nas últimas décadas. Por motivos bizarros, talvez russos e ucranianos tenham muito mais “cara de humano” que outros povos…

Quem trabalha com publicidade e produção de conteúdo precisa de muitas fotos e vídeos de pessoas. Humanos precisam se comunicar com outros humanos, então quase sempre alguém precisa achar material com pessoas para utilizar em suas produções. Por várias questões de direitos autorais e medo de processos, surgiram vários bancos de imagens e vídeos que dão conta dessa necessidade.

Se você precisa da foto de uma moça segurando um cartaz para colocar a sua promoção, vai num desses sites e compra uma foto que tenha essas características. E não é sorte achar essa foto, existem muitos profissionais dedicados a montar fotos e vídeos de alta qualidade para esse tipo de uso. Os modelos assinam contratos de liberação de direitos de imagem e os fotógrafos deixam a foto nos padrões de uso de quem vai precisar delas.

Afinal, se todo mundo tivesse que contratar modelo e fotógrafo para cada postagem na internet, não teríamos tempo ou dinheiro suficiente para dar conta do recado. O mercado trabalha com volume: a pessoa monta uma foto que acha que profissionais de publicidade e produtores de conteúdo vão usar e ganha um pouco de dinheiro a cada pessoa que usa. Fácil e barato para quem usa, e lucrativo para quem vende.

Com razão, você pode estar se perguntando o que diabos aconteceu com esse texto sobre a guerra… pois bem, russos e ucranianos têm muito a ver com essa história de bancos de imagens. Quem já trabalha com esse tipo de material faz tempo começa a perceber um padrão: a quantidade de fotógrafos com nomes russos ou aparentemente russos é muito maior do que se esperaria considerando o tamanho dessa população. Em muitos desses bancos de imagens, às vezes parece que metade dos fotógrafos mais populares são de descendência russa.

Mas, os russos são famosos por serem grandes fotógrafos? Não necessariamente. Claro, o material costuma ser de alta qualidade, fotos muito bem tiradas e bem tratadas, mas não é exatamente um meio artístico. Lembrem-se: são fotos utilizadas para vender celular, pizza e remédio para gases. São vídeos que acabam como plano de fundo no YouTube. Não estamos falando de projetos artísticos complexos.

Na verdade, o grande diferencial desses fotógrafos são as pessoas fotografadas. O russo ou ucraniano médio não é muito miscigenado, tende a ser bem branco e pelo o que já vimos das reportagens que chegam daquela região, também tende a ser mais magro que seus similares ocidentais. Hoje em dia apontar esses elementos como sinônimo de beleza é pedir para ser cancelado, mas não ligamos pra isso aqui: é sinônimo de beleza no mundo. Está mudando aos poucos, mas não é da noite para o dia. Com raras exceções, publicitários e produtores de conteúdo em geral querem colocar gente bonita nas suas artes para torná-las mais atrativas. E antes da cultura moderna começar a se preocupar com padrões de beleza tradicionais, formou-se um mercado gigante para quem tivesse ao seu dispor vários modelos com essa cara “russa”.

“Mas tem gente branca e magra na Escandinávia, na Alemanha…”

Sim, tem, mas não tem o combo de pobreza. Veja bem, o sistema só funciona se o fotógrafo puder pagar muito pouco para o modelo, afinal, vende suas fotos por centavos. É economia de escala. Em países mais ricos, além das pessoas cobrarem mais pelo trabalho, ainda existem regras mais sólidas sobre direito de imagem e de trabalho em geral. Russos, ucranianos e afins tinham todas as condições para tomar esse mercado.

E assim o fizeram. Como o padrão de beleza mundialmente aceito vinha da cultura europeia e posteriormente americana, o loiro de olhos claros era receita infalível de beleza em quase todo país do mundo. Muitos povos foram cooptados por esse padrão e rejeitavam a própria aparência em prol desse padrão de beleza europeu e americano. Quase todo mundo com mais de 20 anos cresceu vendo russos em todos os lados da publicidade, televisão e até mesmo internet. O rosto russo era o “rosto padrão” da humanidade.

Mas ninguém sabia que eram russos, achavam que eram americanos, franceses, ingleses, alemães… o visual europeu médio era baseado em estrelas desses países ricos, mas aqui em baixo, pra vender porcaria e comunicar informações simples, eram os russos aparecendo por todos os lados. O ser humano médio conectou essa imagem de russo com imagem de gente.

E uma das características mais importantes da empatia é a capacidade de enxergar o outro como ser humano. Se você não consegue imaginar aquela pessoa como uma igual, é muito difícil que você se abra para sentir o que ela sente. A empatia mais básica é aquela baseada no tipo de pessoa com a qual você conviveu mais. É normal que dentro de um mesmo grupo étnico, as pessoas tenham muito mais empatia, mas quando o outro começa a ficar muito diferente do que você está acostumado, há uma tendência de reduzir o status de “humano” do outro.

É algo muito mais sutil do que racismo, é um condicionamento de longo prazo sobre o que significa ser humano. O racional de uma pessoa minimamente decente sabe que não importa a cor do outro, é um humano; mas o irracional tende a relativizar muito mais as coisas. Macaco pelado entende que macaco pelado parecido é da tribo, macaco pelado diferente é da outra tribo. Macaco pelado precisa proteger a sua tribo.

E aqui, o “pulo do russo”: por causa da forma como a cultura dos brancos europeus e americanos se espalhou pelo mundo, o cidadão com cara de russo entrou no pacote instintivo de quase todos os povos do mundo como ser humano também. A pessoa negra enxerga o outro negro como sua tribo, mas foi cooptada a enxergar o branco também. O que não é uma coisa ruim: quanto mais abrangente for nossa empatia, melhor para o mundo. Mas, o que aconteceu é que os brancos entraram na empatia do resto do mundo, mas as outras cores não tiveram a mesma chance.

Não é à toa que quase todo mundo entrou na pilha da guerra na Ucrânia, mas não deu a mesma bola para as guerras no Oriente Médio e África nesse meio tempo. Sim, eu sei que tem muito mais coisa envolvida, mas estou me concentrando nesse aspecto de empatia por exposição. O mundo todo tem codificado no cérebro o visual desse branco russo como pessoa. Não é o mundo todo que tem a mesma visão sobre o árabe ou o negro.

Por isso, eu sou bem cuidadoso ao criticar a ideia de diversidade: diversidade como imagem, ter mais gente de outras cores que não o branco é positivo para a humanidade sim. O universo dos tipos de seres humanos que contam como seres humanos vai aumentando, e não vejo como isso pode ser uma coisa ruim. Quando bato em diversidade, bato nas versões bizarras que ignoram capacidade de realizar tarefas ou mesmo em promoção de ideias danosas como glorificação à obesidade. A ideia básica de fazer com que vejamos mais exemplos de seres humanos na mídia é excelente. A imagem do ser humano médio deve ser complementada para aumentar o nível de empatia ao redor do globo.

Quando começa a guerra na Ucrânia, o mundo todo começa a ver violência acontecendo entre pessoas que todo mundo reconhece como pessoas de forma muito mais instintiva. E até numa vibe “Mamãe Falei”, eu posso dizer que muita gente enxerga os soldados e refugiados como pessoas muito bonitas. E nada contra, tem muita gente bonita por aquelas bandas sim. Pessoas sentem mais empatia por quem acham atraente. Não é nobre, mas é verdade.

Então, quando perguntam sobre o porquê do mundo estar muito mais preocupado com a guerra na Ucrânia do que esteve com tantas outras guerras, essa é uma parte da resposta. O visual daquele povo foi colocado na nossa mídia por décadas por uma combinação de redução de custos e padrões de beleza ocidentais alcançando todos os cantos do mundo. Eles são mais “humanos” que os pobres coitados sofrendo na Síria, por exemplo.

Isso não está certo, mas é importante entender qual é o problema antes de tentar resolvê-lo. O problema não é que estamos mais atentos à guerra na Ucrânia, o problema é que estávamos menos atentos às outras. Eu compreendo totalmente quem aponta a hipocrisia do mundo, mas me preocupa que estejamos tirando a lição errada dessa história: o que se deve fazer quando um país é oprimido assim é o que estamos fazendo. Esse é o padrão, os erros estão nas outras guerras que são largamente ignoradas ou tratadas como mais do mesmo.

E não sou inocente de achar que esse erro se corrija rapidamente, foram décadas e décadas de mídia de massa empurrando o visual do russo médio como arquétipo de ser humano. Vai demorar bastante para a diversidade fazer um efeito parecido na humanidade e humanizar outros povos, o caminho é longo e não pode ser sabotado por igualdade na base do desinteresse. Que tal tirar o melhor da situação? O povo da Ucrânia e da Rússia prova que representatividade tem seu valor, que seja o mínimo que sintamos com cada guerra, com cada crise de refugiados.

Muitos vão tentar te demover de qualquer comoção com aquele povo como forma de tratar a humanidade de forma mais igualitária, mas esse é o caminho preguiçoso, esse é o caminho que valida o erro histórico de considerar pessoas brancas mais valiosas que pessoas de outras cores.

Olhe para a guerra da Ucrânia e balize seu pensamento: esse é o mínimo que eu deveria sentir sobre seres humanos sofrendo. Vamos arrumar o resto, não estragar o que deu certo.

Para dizer que foi uma montanha-russa de texto, para dizer que agora vai enxergar russo em todos os cantos, ou mesmo para dizer que nunca se importou e está sendo coerente: somir@desfavor.com

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Comments (14)

  • Hosmar Weber Júnior

    A merda que eu vejo acontecer em minhas redes sociais, são os “stalinoides” que para passar pano para o Putin, usam o argumento de que não damos atenção para as outras guerras, mas além de todos esses motivos citados no texto, tem a questão da mídia, a mídia tradicional e até mesmo o YouTube ignora os conflitos na África e no oriente médio, o resultado é esse aí…

    • Stalinoide são os gremlins da esquerda hipster simpatizante ou ativista do partido ao qual Marcelo Frouxo era filiado.
      Só tem gente boa, tipo aquele cara que meteu aquela facada no Bolsonaro.

      • Hosmar Weber Júnior

        por mim esses merdas poderiam fazer as merdas que eles quisessem, mas o problema é que eles acabam fodendo com a imagem da esquerda de uma maneira geral, e sobre a facada, nem pra isso eles foram competentes.
        OBS: não sou obrigado a ter empatia com genocida

  • Brasileiro precisa entender que não é branco e isso não é o fim do mundo. Nossa auto-imagem é muito distorcida.

    • Cada um se identifica como quer, ué. Se acham lindo um pedreiro de peruca se identificar como mulher e uma pessoa marrom clara com cabelo ondulado se identificar negra, por que uma pessoa mais clara (mesmo que não seja cor de papel) não pode se identificar branca?

      • Cada um pode pensar o que quiser de si mesmo, não significa que os demais vão pensar a mesma coisa.
        O problema é o “moreninho claro” BR se achar branco, quando chega lá fora sofre preconceito e fica sem chão.
        Isso sem nem entrar no mérito de que a maioria dos europeus e os americanos que enxergam algo além do pais deles, nem considera que America do sul e central sejam ocidente, porque aí a gente seria não branco também culturalmente.
        Faz pouco tempo um jornal americano se envolveu numa polemica por chamar de não branca aquela atriz que fez a série O gambito da rainha. Ela é transparente de branca, mas viveu a maior parte da vida na Argentina, logo… não branca.

        • Por um tempo nem finlandeses e irlandeses eram considerados brancos por esses doentes da Europa e dos EUA, e lá tem um monte de loiro e ruivo de olhos claros. A real é que essas definições raciais, como bem disseram a Daniele e o Anônimo, tem mais a ver com a localização do que a aparência.
          E hoje em dia, com imigração e miscigenação sendo muito mais fácil e comum, a localização tende a se tornar ainda mais importante.

  • Eu acho que é mais questão geográfica mesmo, porque tem muita gente na Ásia e na África, até na própria América do sul, que passa como europeu fácil. Os árabes e afegãos por exemplo, grande proporção de brancos de olhos claros, mas agora estão esquecidos.
    É que as pessoas são condicionadas a pensar em Europa = civilização, uma utopia de pessoas bem educadas que passam os dias lendo livros e ouvindo música clássica, enquanto o resto do mundo é lixo, mal educado, sexualizado, estuprador, violento, sem cultura. Aí se acontece algo na Europa é como se o mundo inteiro fosse acabar, como se a civilização dependesse apenas dos europeus.
    O irônico é que o berço dessa “civilização europeia” foi a região mais misturada e diversa possível: Mediterrâneo.

    • Assino embaixo!
      Creio que todo mundo está ligando pra essa guerra pela visão eurocêntrica que costumamos ter, ou seja, a familiaridade (aí sim pegando um fator do Somir) que temos em ver a Europa como parte mais importante do mundo, logo tudo que ocorre por lá é mais relevante do que em outras partes do globo.
      Quando essa guerra eclodiu, por exemplo, já me veio à cabeça como os vizinhos mais ocidentais (Alemanha, França e Inglaterra) reagiriam, o que reforça a relevância do fator geográfico que o Anônimo trouxe.

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