FAQ Desfavor – Guerra

Lembra que a gente combinou que este ano, ao menos uma vez por mês faríamos um texto com sugestão dos leitores? Pois é, eu resolvi levar a sério a proposta e estou inaugurando não apenas um texto, mas uma modalidade nova de coluna.

FAQ teve filhotes e agora não fala apenas de covid, fala do que vocês quiserem e for relevante no momento. Aquilo que for meu ponto forte eu respondo, aquilo que for o ponto forte do Somir será respondido por ele. Se vocês gostarem a gente pode continuar, se não, fingimos que nada aconteceu. Vamos a algumas dúvidas.


Por que tanta comoção por destruir um avião ucraniano?

Não é “um” avião ucraniano. É “o” avião ucraniano. É o único da sua espécie, não apenas na Ucrânia, mas no mundo.

Estamos falando do maior avião do mundo, um Antonov An-225 chamado de “Mriya” (que significa algo como “sonho”), destruído em 27 de fevereiro pela Rússia no aeroporto Antonov, em Hostomel, próximo de Kiev, capital da Ucrânia.

Ele media 84 metros e pesava 175 toneladas, e, ao que tudo indica, ficou completamente destruído. É uma perda para toda a humanidade, como vamos explicar mais para frente, que dificilmente possa ser reposta, pois se for possível reconstruí-lo ou recuperá-lo, estima-se que o gasto fique em torno de 3 bilhões de dólares (mais de 15 bilhões de reais).

O avião foi produzido durante a década de 1980 por Antonov Design Bureau (daí seu nome). Ele foi criado para transportar um ônibus espacial, mas, após o fim da guerra fria, passou a ser utilizado para carregar objetos grandes demais ou pesados demais para serem levados por outros aviões de carga convencionais.

“Mas Sally, tem tanta demanda assim de carregar objetos pesados na Ucrânia para precisarem fazer esse avião?”. Não, na Ucrânia não. Mas no mundo todo sim. Esse avião era utilizado por diversos países do mundo para fazer “frete” de objetos grandes, inclusive tinha agenda lotada, com fila de espera de meses e, em alguns momentos, até anos para fazer esse tipo de transporte.

Ele inclusive esteve no Brasil. Em 2016 ele aterrissou no aeroporto de Viracopos, que era o único capaz de suportar o impacto do seu pouso, para transportar uma peça de 150 toneladas que seria utilizada em um gerador. Famílias de diversas partes do Brasil viajaram até Campinas para ver o avião de perto.

A destruição desse avião foi simbólica, pois ele era quase que uma representação física da parceria Rússia e Ucrânia. Os cargueiros Antonov eram construídos em conjunto pelos dois países e esse, em especial, o Mriya, teve papel importante na história Russa, foi criado para transportar o Buran, ônibus espacial soviético, em um evento que marcou a história.

Na real, é provável que boa parte da comoção seja pelo fato de que a destruição do Antonov An-225 Mriya afeta, indiretamente, o mundo todo. Quem quiser transportar algo muito pesado de forma rápida não pode mais fazê-lo. Agora a única opção é o transporte marítimo, que pode ser muito mais caro e demorado. Também tem o fator “extinção”: quando algo que era único desaparece por ato do ser humano sempre levanta algum tipo de reflexão de “olha o que estamos fazendo”.

Não é possível afirmar se o Antonov An-225 Mriya vai ser reconstruído, pois é improvável que algum país esteja disposto a gastar 3 bilhões de dólares ou mais em um avião. Quando ele foi construído, o mundo estava em Guerra Fria, era aceitável gastar milhões em corrida espacial. Ele foi criado com esse “aval”. Hoje, gastar essa quantia em um avião seria bem mais difícil. Salvo que vários países se unam e ajudem a Ucrânia a reconstruí-lo, ele deve continuar extinto.


O que é shibboleth?

No português é Xibolete, por isso, vamos usar essa grafia, ok? O Xibolete é um recurso para reconhecer a origem de uma pessoa.

Está de fato sendo usado por soldados nesta guerra, mas não é uma arma. É a identificação da nacionalidade, grupo ou etnia verificada pela pronúncia de uma palavra. O termo tem origem bíblica, aparentemente esse recurso já era usado naqueles tempos.

Russos e ucranianos são povos “irmãos”, são muito parecidos fisicamente e muitos ucranianos falam russo (e vice-versa). Por isso, é muito provável que, nesse cenário, um lado de faça passar pelo outro para espionar ou até manipular as ações militares do “inimigo”.

Como não dá para ter certeza de quem é quem pela aparência ou pelas declarações, estão usando o recurso do Xibolete, ou, em bom português, fazendo o teste da pronúncia: pedem para a pessoa pronunciar uma palavra e, dependendo da pronúncia, se sabe de onde essa pessoa é, pois ucranianos pronunciam de uma forma, russos de outra.

“Mas Sally, a pessoa não pode simular uma pronúncia?”. Não. As palavras escolhidas geralmente incluem pronúncias ou fonemas que o idioma original da pessoa não tem. Quando seu idioma materno não tem certa pronúncia, é bastante difícil que você consiga desenvolvê-la na vida adulta.

Um exemplo simples: desafio qualquer brasileiro a pronunciar “traje rojo” (terno vermelho) em espanhol. O “j” correto é praticamente impossível ao brasileiro, por mais que ele jure que está pronunciando direito (grave sua fala e escute). E a recíproca também funciona: peça para alguém de fala hispânica pronunciar a letra “Jota” em português. Provavelmente vai sair “Xota” (maturidade, gente, maturidade).

Então, por mais que um argentino se camufle no Brasil, aprenda a falar português e se esforce para se passar por um brasileiro, ele provavelmente acabaria desmascarado se fosse confrontado com um Xibolete. O mesmo vale para um brasileiro que tente se camuflar na Argentina.

O Xibolete não é novidade, ele já foi usado em outras guerras no passado. Por exemplo, a palavra “perejil” (que significa “salsinha” em espanhol) foi usada pelos dominicanos para identificar os haitianos (e matá-los), que não conseguiam pronunciar o maldito J em espanhol. Durante a II Guerra Mundial soldados dos EUA usavam a expressão “lollapalooza” para detectar pessoas cuja fala original era japonesa (ainda que não tivesse olhos puxados). Disfarçar pronúncia e sotaque é uma das coisas mais difíceis que tem.

Então, o Xibolete é uma forma rápida, barata, segura, que pode ser executada por qualquer um e muito difícil de driblar para se descobrir as origens de alguém. Tanto é que vem sendo usado desde os tempos bíblicos até hoje.

Os ucranianos estão utilizando uma palavra específica como Xibolete que eu acredito que se escreva assim: “palyanitsa” (me corrijam se estiver errada). Palyanitsa significa um tipo de pão na Ucrânia (e também significa “morango” em russo), mas a pronúncia é completamente diferente.

Então, caso um estanho se aproxime pedindo abrigo, ajuda ou se oferecendo para lutar, eles pedem para que a pessoa pronuncie “palyanitsa”. Com a simples pronúncia dessa palavra se pode saber se a pessoa é de origem russa ou ucraniana.


O que é considerado crime de guerra?

Vamos partir de uma premissa básica: só é crime aquilo definido por lei como crime. Todo mundo pode fazer tudo que a lei não proíba. Então, não gostar de alguma coisa, ou considerar alguma coisa ofensiva, imoral ou errada, não a torna crime. O crime não é feito para classificar o que é certo e o que é errado, o crime é uma punição extrema para aquelas condutas reprováveis mais graves que podem colocar em risco a sociedade.

Então dito isso, saiba que nem sempre tudo que é errado é crime e não deixa se der errado por não ser crime.

É muito comum ver confusão entre crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Crimes contra a humanidade são atos deliberadamente cometidos como parte de um ataque generalizado ou sistemático contra qualquer população civil. Um exemplo seria o Holocausto. O que o motivou? Alguém achar que outra raça era “inferior” ou “perigosa”. Não foi contra um país, não foi para conquistar território. Poderia ser cometido em períodos de paz ou de guerra e sua motivação não está relacionada com belicismo.

Um crime de guerra é uma violação do direito internacional ocorrida em guerras, principalmente com violação dos direitos humanos. Depois da II Guerra Mundial, a humanidade se reuniu e decidiu que ok, se quiser trocar umas porradas pode, se quiser matar o exército vizinho pode, mas pega leve, certas coisas não têm necessidade. Coisas como estupro, tortura, assassinato de civis e outras violações aos direitos humanos motivadas por rivalidade em uma guerra passaram a ser consideradas crimes.

Os crimes de guerra estão previstos na Convenção de Genebra e, de forma mais detalhada no Estatuto de Roma, do qual eu recomendo a leitura.

Em um grande resumo simplificado, as restrições costumam ser sobre a forma aceitável de tratar diferentes grupos de pessoas durante a guerra, em especial: 1) prisioneiros; 2) doentes e feridos; 3) civis e 4) armas

Tratamento de prisioneiros. Resumo Express: Não podem ser mortos, mutilados, torturados (física ou psicologicamente), serem objetos de experiências médicas ou pesquisas científicas. Não pode matar ou ferir militares que tenham se rendido ou não estejam em condições de se defender.

Tratamento de doentes e feridos. Resumo Express: Todos os responsáveis pelo conflito são também responsáveis pelos feridos e doentes, isso quer dizer que não pode deixar uma pessoa sem assistência e sem socorro, ainda que ela seja do lado “inimigo”, pois se está cometendo um crime. Tem uma pessoa ferida que precisa de socorro? Tem que socorrer. Além disso tem que disponibilizar o tratamento que a pessoa precisa para ficar bem, e todas as demais condições para isso, como alimentação, hidratação, abrigo, etc.

Tratamento de civis. Resumo Express: Não pode fazer ofensivas contra civil desarmado em qualquer contexto. Não pode atacar instituições religiosas, monumentos históricos, hospitais ou outros locais com doentes e feridos. Não pode atacar pessoas e unidades participando de missões de paz ou assistência humanitária. Não pode colocar nenhum menor 15 anos para lutar na guerra. Estão proibidos quaisquer atos de violação, escravidão sexual, prostituição forçada, gravidez à força, esterilização à força, estupros sistemáticos em massa e qualquer outra forma de violência sexual. Nenhum civil pode ser feito de refém em hipótese alguma e é ilegal qualquer estratégia que priva um civil de bens indispensáveis à sobrevivência, como primeiros socorros, água ou comida.

Armas. Resumo Express: Não pode usar alguns tipos de armas, como as biológicas, nucleares, químicas, de armamentos capazes de causar ferimentos desumanos, armas incendiárias, armas com fragmentos indetectáveis e balas que se expandem ou se achatam facilmente no interior do corpo.

Então, meus queridos, nem no amor nem na guerra vale tudo.

Claro que as restrições são muito mais abrangentes do que isso, esta é apenas uma simplificação muito imprecisa para que vocês tenham uma ideia geral. Para quem quiser saber mais, recomendo a leitura do Estatuto de Roma com um lápis ao lado, para vocês iriem marcando os crimes de guerra cometidos pelo Putin até aqui, que não são poucos.

Para dizer que tudo que você não precisa é de mais FAQ estragando o seu dia, para dizer que quer um FAQ Alicate ou ainda para pedir um mix e perguntar se explosão nuclear mata covid: sally@desfavor.com

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Comments (6)

  • Ótimo texto, Sally!
    Uma das minhas maiores frustrações com o tema é que há pouquíssimos meios para fazer valer essas regras e raramente há punição para quem as quebra. Tribunal de Nuremberg foi uma exceção e duvido que vá acontecer novamente. É por isso que se diz que o Sistema Internacional tende a ser anárquico.
    Triste que a população civil, que nada tem a ver com os interesses de quem costuma declarar guerras, seja a parte mais vulnerável de todas.

    • É muito triste ler todos os dias que bombardearam maternidade, orfanato, hospital, corredor humanitário… e tudo continua impune. Não adianta nada punir isso 50 anos depois.

  • Sally, muito boa essa iniciativa de fazer um FAQ sobre a guerra Rússia x Ucrânia. Eu fiz uma pesquisa online rápida sobre o termo “Shibboleth”, que seria o nome em hebraico para a parte das plantas que contém grãos. A origem dessa palavra, pelo que vi, remonta à Bíblia. No capítulo n.º 12 do livro de Juízes, pertencente ao Antigo Testamento, é contada a história da briga entre Efraim, fundador da tribo israelita de mesmo nome, e Jeftá de Gilead, da tribo Manassé. Esses dois grupos combatiam os amonitas, que atiravam crianças recém-nascidas em fogueiras em sacrifício ao deus Moloch, um ser com corpo humano e cabeça de boi. Jeftá e seus seguidores conseguiram derrotar os tais amonitas mesmo sem o auxílio dos efraimitas, que os acusaram de deserção por não tê-los chamado para irem juntos à batalha. Em represália, Jeftá disse que teve seu pedido de ajuda não atendido e ordenou que a tribo de Efraim fosse massacrada. Ao mesmo tempo, os gileadistas também tomaram o controle de áreas junto ao rio Jordão por onde os poucos efraimitas que sobreviveram ainda tentavam fugir. Aos que buscavam passar, os homens de Gilead se interpunham e perguntavam: “Você é efraimita?” Se o inquirido respondesse que não, retrucavam: “Então diga: ‘shibboleth’”. Como os efraimitas pronunciavam esse “sh” do começo da palavra sem um “chiado” característico dos gileadistas, foi possível identificar todos os fugitivos, que acabaram sendo mortos um por um.

  • Com todos esses boicotes, vamos ver se a Rússia sucumbe ou mostra que é possível sobreviver sem o mercado das grandes multinacionais.

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