Guerra perdida.

Vivemos o período entre o planeta ser grande demais e o universo ser grande demais. Uma era curiosa onde temos alguma esperança de unificar e/ou controlar a humanidade. Salvo alguma catástrofe, essa ideia de poder global deve ser apenas uma nota de canto de página na nossa história.

Considerando o número de no máximo uns 100.000 anos de ser humano moderno, a parte da nossa história definida por grandes impérios e conquistadores é minúscula. Pudera, o planeta é enorme, e em mais de 99% da nossa história, era muito difícil sequer viajar para lugares distantes, quem dirá projetar poder militar.

Se você for calcular o espaço ocupado por civilizações famosas como egípcios e gregos, vai perceber que até países modernos pobres tem mais capacidade de controle sobre territórios. E mesmo no caso dos romanos, há muito o que se discutir sobre o quanto eles realmente dominavam as áreas que diziam dominar. Em tese era território romano, mas na prática precisava ter uma legião de soldados bem próxima para a coisa ir além de alguns cobradores de impostos, mantidos vivos por comodidade de não ter que se preocupar com uma campanha militar aleatória na sua região.

Esforços militares da antiguidade eram muito custosos. Tanto que viviam quebrando os cofres até mesmo dos mais poderosos impérios. Soldados se sustentavam saqueando as regiões pelas quais passavam. Mesmo aqueles considerados profissionais, como as legiões romanas. Sim, eu sei que em um dia o exército americano deve gastar mais (comparativamente) que qualquer um do passado antigo em um ano, mas desde o século XX, o que nós temos de recursos disponíveis é um absurdo em comparação com o passado.

Ainda sobre os romanos, cada incursão em território estrangeiro basicamente limpava os cofres do império, que precisava ser preenchido novamente com tudo o que pudesse ser roubado dos adversários. Projetar força à distância era uma aposta assustadora, que poderia quebrar de vez o império caso desse errado. Hoje vivemos com uma abundância tão incrível que países podem errar a mão e tomar prejuízos enormes numa guerra sem se tornarem inviáveis. Os americanos gastam sozinhos mais que o mundo todo somado com seu exército e ainda sim tem condições de manter a estratégia de “polícia do mundo”.

Isso acontece por uma soma de fatores que pode ser única na nossa história: a tecnologia que temos permite muita movimentação ao redor do globo, e existe uma cadeia de suprimentos global que faz com que nos percebamos muito próximos uns dos outros. Nosso planeta, que parecia infinito, agora pode ser cruzado de forma confortável em poucas horas. Sem contar a velocidade da luz na transmissão de informações. A Terra encolheu com a globalização.

Mas se minhas previsões estão corretas, isso não vai durar muito tempo. Estamos a algumas inovações de começar a ocupar o espaço virtualmente infinito ao redor da nossa casa. E o interessante é que em vários aspectos, vai ser uma volta ao passado desconectado de nossos ancestrais. Não só distâncias absurdas de meses para chegar em planetas próximos, como até a velocidade da luz começa a ficar meio… lenta.

Se tivermos uma colônia em Marte, ninguém vai conseguir conversar em tempo real com quem estiver por lá. Tem uma demora entre mandar uma mensagem e receber uma resposta que começa a nos desconectar. Se acontecer algum problema na relação entre Terra e planeta vermelho, não vai ter um igualmente vermelho telefone para os líderes resolverem o problema na hora. Mesmo com toda nossa tecnologia, voltaremos à era do telégrafo, onde os dois lados precisam se comunicar em turnos.

E se expandirmos para além do Sistema Solar, as coisas começam a ficar ainda mais estranhas. Uma colônia na estrela mais próxima demoraria quatro anos para receber uma mensagem, e mais quatro para responder. Não sobra nem a ilusão de controle. A população humana vivendo em Proxima Centauri estaria até mais distante da população humana na Terra do que gregos e indígenas brasileiros estavam há milhares de anos atrás.

Avanços tecnológicos e sociais ficariam isolados tempo demais para serem coordenados entre os povos. E quanto mais distantes ficarem nossas colônias, mais inútil vai ser a ideia de poder centralizado. Vai ser basicamente impossível existir Estados Unidos ameaçando todo mundo com seu poderia militar. Imagine só um povo vivendo ao redor de uma estrela cem anos-luz distante da Terra? Um século para mandar uma mensagem, um para ler a resposta. E provavelmente uns mil anos para mandar uma nave até lá.

É muito improvável que nós ou qualquer outra espécie consiga quebrar a barreira da velocidade da luz sequer na transmissão de informação. Nesse ponto, toda nossa ideia de globalização da humanidade vai ruir. Primeiro porque o termo globo não vai fazer mais sentido, e segundo porque em distâncias cósmicas, é cada um por si obrigatoriamente. Ninguém pode esperar décadas ou séculos por uma ordem.

Mesmo que armas de destruição em massa possam ser assustadoras no futuro, usando velocidades altíssimas para transformar um monte de pedaços de metal em explosões piores que qualquer bomba atômica, praticamente impossíveis de identificar e impedir enquanto não estiverem basicamente caindo no seu planeta, a escala da humanidade pode ficar tão grande que nem ameaça de armas de destruição em massa vão fazer muita diferença. Civilizações espaciais futuras podem ter bilhões de pessoas num planeta ou em habitats em órbita, praticamente impossíveis de acertar à distância.

Se você conseguir o feito de matar 10 bilhões de pessoas do “país” inimigo, ainda sobram mais 50 bilhões para se vingar de você. E quando você ficar sabendo se seu tiro pegou mesmo neles, já vão ter disparado outros mil em retaliação. A maioria das histórias de ficção científica gostam de descrever grandes guerras entre planetas diferentes, mas é muito mais provável que guerras se tornem inúteis.

Não tem muito o que disputar de recursos, porque não existe nenhuma indicação que os elementos básicos são diferentes em outros locais da galáxia, os que já temos aqui só em asteroides fáceis de chegar deve durar milênios. Não tem muita utilidade conquistar outros territórios, por causa do tempo imenso de comunicação e viagem entre as partes do seu império. Se a gente usar como exemplo o nosso planeta: em um século mudam todos os líderes e até mesmo os países. Você mandaria naves para matar o Hitler e daria de cara com Israel bombardeando a Palestina.

E nem mesmo diplomacia faz tanta diferença. Você manda mensagem pressionando um adversário política e recebe a resposta de alguém que nem sabe quem você é. A humanidade tende a se desconectar muito no futuro, e se a evolução continuar a cargo da natureza nesse meio tempo, não se assustem com a ideia de que humanos em outros lugares da galáxia sejam completos alienígenas com outra aparência, cultura e costumes quando você tiver contato com eles novamente. Corre o risco nem de saberem que vieram da Terra.

Já adianto que não é muito provável, mas é possível que sejamos um experimento biológico de outra civilização inteligente. A mensagem perguntando se já desenvolvemos matemática e linguagem pode estar vindo para nós nesse exato momento. Distâncias gigantescas tornam a realidade humana muito mais parecida com a da era das descobertas (dos europeus) do que com o que imaginamos através da ficção.

O período em que o ser humano ficava disputando territórios pequenos foi se modificando para interesses globais, e tem toda a cara de que vai voltar a funcionar desse jeito. Formação de impérios galácticos é impossível sem uma forma de viajar mais rápido que a luz (porque mesmo que dê para se comunicar, grandes coisas dizer algo que só pode cumprir em alguns séculos). A humanidade unida de qualquer forma é apenas um momento rápido da história (ou, se tudo der errado, o último).

Acredito que não fomos feitos para ficarmos tão grudados. Guerras por pedaços de terra minúsculos e até mesmo a epidemia de problemas mentais causados pela internet indicam esse caminho. Talvez faça mais sentido para o ser humano se espalhar e viver em pequenas comunidades protegidas por distâncias enormes.

Sei que muitos de vocês são do time pessimismo puro sobre o futuro da humanidade, mas eu nem considero minha análise otimista: com a pulverização da humanidade pelas estrelas e a impossibilidade de controlar todo mundo ao mesmo tempo, é bem provável que voltemos a uma fase basicamente feudal de poderes absolutos de reis locais. Então fica tranquilo(a), as coisas provavelmente vão mudar, mas não vai ser uma utopia de liberdade e compreensão.

Não somos assim e ainda vamos mudar muito com o passar dos séculos e milênios. Tudo o que pensamos agora sobre unidade e proximidade dos seres humanos deve ser apenas uma conversa rápida do futuro sobre um período interessante que vivemos. Tudo passará, até a ideia de que estamos vivendo em conjunto.

Para dizer que não entendeu o ponto do texto, para dizer que entendeu o ponto do texto mas não concordou, ou mesmo para dizer que vai se congelar até lá: somir@desfavor.com

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Comments (2)

  • O ruim dos textos do Somir é não ter muito o que comentar, mesmo gostando.
    Ficaria estranho comentar “muito bom, gostei” várias vezes.
    Mas muito bom, gostei :D

    • Nessa altura do campeonato, eu já sei que alguns dos temas que eu escolho são complicados de comentar. Eu consumo muito conteúdo do tipo: quando leio um artigo sobre ciência, por exemplo. Não tem muito o que conversar, é só interessante.

      Mas sempre bom saber que agradou!

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