Bolhas?

Muita gente fala sobre como os algoritmos da internet criam uma bolha de confirmação nas pessoas. É a teoria mais aceita sobre como a era da informação criou um ambiente polarizado que se repete em várias culturas diferentes ao redor do globo. Eu mesmo já falei disso várias vezes aqui, mas tem algo que podemos estar deixando passar nessa análise…

O quanto a internet realmente impactou na criação dessas bolhas? Sim, a rede mundial de computadores permite um influxo interminável de informações, e os sistemas de entrega dessas informações já são dominados por inteligências artificiais que selecionam conteúdo para você com base em coisas que você se interessou anteriormente. Mas, isso pode não ser toda essa mudança de paradigma que imaginamos.

Até mesmo pessoas como eu que pegaram um pouco do mundo desconectado podem ter dificuldade de imaginar como as coisas eram antes desse tsunami de informação 24 horas por dia. O passar do tempo nos deixa acostumados com as coisas como são, e a memória pode pregar peças enquanto tenta ver o passado pela lente do presente.

Se eu me esforçar um pouco, consigo me lembrar de um mundo com mais bolhas de confirmação, não menos. Durante toda minha infância e quase toda adolescência, eu não fui exposto a pensamentos muito diferentes dos que já tinha em casa e na escola. Lembro que aos 14 anos de idade, fiquei olhando chocado duas mulheres se beijando num show de música eletrônica: em tese eu sabia que isso existia, mas simplesmente não acontecia ao meu redor na vida de jovem do interior.

Não tinha malícia, julgamento, nenhuma reação emocional sobre as moças, era só uma pequena cabeça explodindo vendo o que nunca tinha visto. Tanto que eu lembro até hoje, não delas nem de nada visual da cena, só da situação. Era minha bolha sendo furada pelo mundo real.

Eu só via e ouvia informações totalmente condizentes com a minha vida cotidiana, só convivia com pessoas mais ou menos parecidas comigo da minha idade e mais ou menos parecidas com meus pais entre os adultos. A mídia que consumia (TV, revistas, jornais e rádio) não tinha quase nada que quebrasse essa ilusão de que o mundo era só aquilo que eu já entendia. Os anos 80 e 90 tinham suas doses de mídia apelativa, mas na prática era só uma mulher pelada ou uma cena sangrenta. Não era uma surpresa que as pessoas fizessem sexo ou que se matassem. Era uma apelação conservadora, por assim dizer.

Quem cresceu numa cidade muito grande provavelmente teve mais contato com o “mundo diferente” do que eu, que estava numa cidade grande do interior. Quem viveu numa daquelas cidades bem pequenas provavelmente foi ainda mais fechado na bolha de confirmação da sua comunidade. O que eu tiro dessa análise é que se viver num mundo onde todos concordam com você e que as notícias chegam mais ou menos dentro da lógica de mundo que você já conhece, era para a polarização ter começado muito, mas muito antes do que começou.

A bolha com a qual eu lido hoje na internet é imensamente maior do que com a qual eu convivia antes dela. Chegam em mim informações e ideias impensáveis para a minha realidade algumas décadas atrás. E se não for a bolha de confirmação criando a polarização? E se for o contato com o diferente? Se você prestar atenção na parte da população mais miserável, vai perceber que as pessoas sem acesso à cultura compartilhada do século XXI não são exatamente o público que está brigando por causa de Lula e Bolsonaro por aí.

Até porque, sem tempo, irmão. Mesmo que 90% das pessoas do Brasil tenham algum acesso à internet, algum é diferente de viver conectado. E muito diferente de ser bombardeado por informações. Pessoas mais simples mal sabem ler, então provavelmente estão trocando áudios sobre coisas da vida cotidiana entre si, o plano de internet ou Wi-Fi grátis permitindo. O pobre brasileiro votou um pouco mais Bolsonaro em 2018 e um pouco mais no Lula em 2022, não é como se as comunidades mais carentes fossem um campo de batalha ideológico.

E se você prestar atenção de novo, vai perceber que esses lugares menos impactados pela cultura online estão muito mais dentro de bolhas de confirmação que nós com um pouco mais de recursos. São massas de pessoas que pensam mais ou menos parecido, vão em igrejas parecidas e tem valores (ou falta de) parecidos; sim, vemos elementos diferenciados nessas comunidades, mas gente “diferente” sempre existiu nesse mundo e sempre chamou mais atenção.

Para cada coletivo de mulheres trans ecoterroristas da favela de matéria de site lacrador, um milhão de pessoas que fazem o que o pastor disse para fazer. O Brasil e diversos países parecidos têm bolhas de culturas diferentes em grandes cidades, especialmente em locais mais abastados. Um passeio pela Av. Paulista vai te colocar em contato com mais diversidade cultural do que seis meses de vivência numa favela nordestina, por exemplo.

A ideia aqui é uma bem simples: o diferente nos assusta. Causa reações mais viscerais e nos deixa com a sensação de perigo iminente. Quanto mais você tem contato com informações sobre gente muito diferente de você, maior o esforço que o cérebro faz para tentar entender o que acontece e maior o risco de você se sentir ameaçado.

Não é uma conversa que corrobora com a mensagem da lacração, porque coloca em xeque a ideia de que diversidade é sempre a solução; até por isso eu acho que tem um exagero na ideia de que estamos sofrendo por causa de bolhas de confirmação. O cidadão mais propenso a radicalizar dentro do ambiente político tende a ser aquele que está sendo bombardeado por informações sobre o “outro lado”.

A pessoa fica com a sensação de que não só existem pessoas que enxergam o mundo diferente, como essas pessoas estão agindo de forma cada vez mais agressiva para impor suas crenças sobre ela. O animal acuado é o animal mais perigoso.

Eu tentei fazer um exercício de imaginação: e se eu ignorasse toda informação sobre o mundo que não impactasse diretamente na minha “bolha de pessoas”? Quanto de pensamento diferente eu tenho que lidar diariamente? Para a minha surpresa, quase nenhum. Como eu moro no interior eu escuto muito papo bolsonarista, mas na prática… não tem nenhuma consequência direta. Eu não tenho que discutir ou lutar contra racismo, misoginia ou homofobia na vida real. As pessoas com as quais eu convivo no máximo falam algumas besteiras preconceituosas, mas eu também deixo escapar algumas.

Na verdade, boa parte das notícias e ideias chocantes para a minha visão das coisas vem de longe. Não estou dizendo que está tudo bem e que não tenhamos do que reclamar, é claro que temos, mas essa ideia de que é a bolha de informação que já concordamos da internet que nos radicaliza tem algo de mal resolvido quando você compara com a vida fora da internet.

Fora da internet, quanto menos você é confrontado com o diferente, mais tranquilo você parece ficar. Sociedades homogêneas costumam ser menos propensas a grandes confrontos, óbvio, com menos capacidade de evoluir; mas bem mais tranquilas no dia a dia, pelo menos se você for parte da homogeneidade.

A internet nos colocou diante do diferente, e os algoritmos, intencionalmente ou não, tendem a nos passar informações que temos mais potencial de prestar atenção. Isso não quer dizer necessariamente coisas com as quais você já concorda, mas coisas que tem mais potencial de ativar seus neurônios. Medo e desgraça funcionam bem nesse sentido. Mesmo que todos seus curadores de conteúdo tenham uma visão política parecida com a sua, é natural que eles chamem atenção para a parte ruim do mundo. A parte que demonstra como os que pensam diferente podem ser perigosos.

E é verdade, pessoas que pensam muito diferente de você podem ser bem perigosas. Podem, mas não são a maioria, afinal, estamos vivos ainda, não? Fico pensando que se talvez a internet fosse melhor nisso de nos colocar em bolhas de confirmação, a polarização política diminuiria. Passaríamos menos tempo recebendo informações sobre como nossa visão das coisas é contestada e como tem gente querendo fazer tudo diferente do que você acredita.

E isso geraria menos medo. Menos medo geraria menos reações agressivas. E menos reações agressivas gerariam maior possibilidade de conversa e negociação. Uma das melhores táticas para lidar com alguém indo contra você é achar um ponto em comum. Na bolha da vida real é meio que inescapável encontrar um ponto em comum se você quiser, a outra pessoa é uma pessoa real e não uma voz perdida na internet.

Então, pelos próximos dias e semanas, eu vou prestar um pouco mais de atenção no que meus algoritmos estão tentando me empurrar. Talvez seja mesmo uma ilusão que o problema seja muita confirmação, um problema que combina muito bem com a ideia do politicamente correto de diversidade a qualquer custo, e talvez por isso tenha sido empurrado como a resposta para tudo.

E se quiser fazer esse experimento também, conte os resultados aqui. Estou curioso como nossas bolhas da vida real se comparam com as da internet.

Para dizer que não dá para confiar em quem é capaz de mudar de ideia, para dizer que o Desfavor é a sua bolha, ou mesmo para dizer que o que importa é estar certo: somir@desfavor.com

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Comments (4)

  • cara, não sei porquê, mas esse texto me deixou com uma outra interrogação: o que significa “estar conectado com a realidade”?

    por um lado, quem não é bombardeado de informações acaba por estar limitado, por assim dizer, àquilo que vive fora da internet, sem nada conhecer a realidade de outros ligares do planeta, por exemplo. por isso pode acabar encontrando, talvez, dificuldade para lidar com o lhe é completamente diferente, novo

    por outro lado, quem é bombardeado de informações consome toda uma avalanche de conteúdos sobre realidades que não viveu, de tal forma que a sua realidade pode acabar significando “consumir conteúdos de outras realidades sem vivê-las de fato”. e nisso pode acabar vivendo uma fantasia ou se estressar com polarização

    existe, por assim dizer, um ‘ponto de equilíbrio’ aí?

    • É complicado achar esse equilíbrio mesmo. Tem muita gente nesse mundo que vive “desligada” e bem, tendo alguma fonte de renda que lhe sirva e não exija estar conectada com o resto do mundo da forma como muitos de nós estamos. Essas pessoas vão viver suas vidas numa boa, na maioria dos casos.

      Até porque, essa é a base: na maior parte da nossa história as pessoas só tinham noção de um microcosmo familiar e dos vizinhos mais próximos. Nosso cérebro parece planejado para isso.

      Mas não acho que valha a pena trabalhar com isso como regra, eu mesmo gosto de ter fontes de informação intermináveis, mesmo considerando a quantidade de lixo que vem com elas. No final das contas é sobre olhar para dentro e saber se as coisas estão indo bem com você mesmo. Parece que muita gente está se forçando a lidar com informação demais e está fritando a parte do cérebro que lida com o diferente, se voltando para a polarização para tentar controlar alguma coisa.

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