No meu tempo…

Recentemente o comediante Jerry Seinfeld (que dependendo da sua idade pode ser um dos mais famosos de todos os tempos ou um aleatório) se enfiou em uma polêmica ao dizer que a comédia na TV estava morrendo por excesso de lacração e patrulhamento. Não faltou histeria contra a opinião, mas também tivemos alguns argumentos interessantes: isso tem mais a ver com a TV morrendo do que com o humor “perdendo a graça”.

Em tempos de polarização, é muito fácil enfiar os dois pés na lama de uma discussão política, não importa para qual lado você penda. Ou os jovens/esquerdistas são uns ofendidos profissionais ou os velhos/direitista são literalmente o Hitler. Então, até mesmo nós olhando isso um pouco mais de fora podemos cair nessa armadilha.

Explico: evidente que eu e você temos uma opinião sobre o estado do humor “mainstream”, cada um de nós tem seu próprio senso de humor. E esse senso de humor é altamente influenciado pelas nossas crenças e experiências, afinal, tem que mexer com a gente de alguma forma para ter graça. Tem coisa que eu acho engraçada que eu sei que quase ninguém acha, inclusive gente próxima que é muito compatível em outros aspectos.

O que você acha engraçado não é necessariamente o que você tem como visão política ou senso de moralidade e ética. O senso de humor até pode ser um bom guia de quanta inteligência e cultura tem na pessoa, afinal, piadas dependem de algum conhecimento prévio para ser subvertido, mas no final das contas é algo muito próprio seu. As combinações que tornam algo engraçado são baseadas na vida que você vive.

E esse tipo de humor personalíssimo tem uma característica temporal inescapável: seu pacote de ideias e referências é formado dentro de uma cultura geral que reflete bastante os anos nos quais você viveu. Quem vem dos anos 80 viu um mundo muito diferente de quem vem dos anos 2000. É normal que alguém como eu ache algumas coisas engraçadas que pessoas mais novas não entendem como humor, e vice-versa.

Quando eu vejo humor dos anos 60 e 70 do século passado, eu percebo claramente que algo não encaixa. Alguns expoentes ainda funcionam, é claro, mas a média do que passava por sitcom ou programa de esquetes naquele tempo não é “afiada” o suficiente para o que eu aprendi como engraçado. Mas isso não quer dizer que o povo não estava rindo muito com aquilo que eu mal registro como piada. Para a realidade deles, aquilo era humor eficiente.

Já viu programas do Chico Anysio ou do Jô Soares dos anos 70 e 80? Eram pessoas extremamente populares como comediantes, e pelo menos eu mal entendo aquelas cenas como comédia. Tem toda a parte das referências datadas, mas é mais profundo: o que é engraçado muda. Jô Soares fez sucesso com uma personagem chamada Capitão Gay, que era um herói… gay. Mesmo sem ser do tipo que se ofende, a ideia de um herói gay já não me serve como premissa. Não deixa de ser engraçado porque eu estou bravo com os estereótipos, deixa de ser engraçado porque eu já sou de uma geração (que com proteína na infância e cercado de adultos inteligentes) simplesmente não liga mais para essa coisa de gay ou hetero como definidor de caráter.

Imagina só os zoomers, que chegam ao ponto de transformar homossexualidade em fantasia para vestir na rede social e ganhar biscoito? Qual o impacto do Capitão Gay para eles? Zero. Não mexe com nada. Às vezes não é uma questão política, é apenas que o assunto não funciona mais como algo inusitado que ativa o senso de humor da pessoa.

Nem tudo é política. Referências caducam, e caducam rápido. Se você for assistir os filmes do Charlie Chaplin, eu desconfio que você vai ficar entediado. Ele misturava críticas sociais no meio do seu humor pastelão, só que o mundo dele fazia sentido no começo do século passado. Agora, se você tentar ver um filme do Buster Keaton, por exemplo, muito mais focado em cenas de humor físico (extremamente perigosas), você vai ver que prende muito mais a atenção. O humor de Keaton é mais resistente à passagem do tempo porque é menos dependente de um período para fazer sentido.

Uma coisa é defender humor contra cancelamento e censura, outra completamente diferente é discutir o que as pessoas acham engraçado ou não. Eu já tentei ver humoristas mais conservadores, e francamente, apesar de acreditar no direito deles de fazer piadas sem serem presos, eu achei uma chatice. São ruins pra diabo, quase que no padrão de comediante lacrador (mas nem tão ruins porque os conservadores pelo menos tentam fazer piadas).

É muito por isso que a gente sempre diz aqui que você achar engraçado ou não não é parâmetro para o direito da pessoa fazer a piada. Liberdade de expressão humorística não é julgamento de qualidade da piada, é apenas conseguir manter uma distância na mente entre o que é dito de forma séria e o que é dito para fazer humor. E é por esse ângulo que eu começo a enxergar algo extra na discussão sobre os limites do humor: gerações misturando a ideia de que acham coisas diferentes engraçadas com política.

Eu entendo o que Seinfeld fala sobre humoristas terem medo de serem cancelados e perdendo muito da sua graça, mas também existe o sagrado direito de novos tempos simplesmente não acharem mais graça em algumas piadas. Eu gostava muito de Seinfeld, mas para rever não é um programa que me interesse em 2024. Não tira nada do valor do que eles fizeram nos anos 90, é só o tempo sendo tempo.

A gente envelhece, e depois de ver muitas vezes a mesma coisa, ela não funciona mais como funcionava das primeiras vezes. Quando eu tinha meus 20 e poucos anos, eu via um monte de sitcoms americanas, até porque com a TV a cabo tínhamos acesso a todas elas pela primeira vez. Hoje em dia eu não tenho vontade de ver nenhuma, não porque acho necessariamente ruins, mas porque não tem mais a graça da novidade. O meu senso de humor nem precisou mudar, foi só o hábito de consumo de mídia.

O que é mais um argumento forte contra a ideia de que o grande problema da comédia moderna é a mordaça dos lacradores. Se você quer ver gente falando coisas incorretas por diversão, o stand-up ainda tem tudo isso. Algumas séries bacanas ainda estão vivas. Mas os hábitos de consumo são diferentes. Quem pegou o hábito de ver conteúdo sem comerciais quando quiser não tem mais paciência para TV.

Não tem mais sitcoms como havia antigamente por que é um saco ver TV. E o dinheiro disponível em produtos de streaming ainda é meio difícil de entender. Hollywood está super confusa até agora com o que diabos está acontecendo com o povão. Filmes que custaram centenas de milhões de dólares fracassando para todos os lados… sim, os lacradores atrapalharam querendo fazer de tudo uma plataforma de propaganda política, mas a mídia de massa sempre foi plataforma de propaganda política.

Tem que saber separar as coisas: lacração atrapalha, mas ela não é a única coisa acontecendo. As gerações estão mudando, o que eu acho engraçado já não é exatamente o que o jovem adulto atual acha engraçado. É bem possível que eu tenha meu “Capitão Gay” na memória afetiva de humor que simplesmente não funciona mais com quem tem vinte e poucos anos de idade. O humor das gerações muda, e isso nem quer dizer que fica melhor ou pior, só quer dizer que o conjunto de referências e experiências das pessoas vai mudando com o passar do tempo.

Seinfeld diz algo razoável sobre como excesso de patrulha politizada pode interferir com a graça das coisas, mas não podemos achar que é só isso. A piada do seu avô não tem mais tanta graça para você, porque o mundo deu muitas voltas desde então. Os formatos de entrega do humor também mudam, vídeos curtos estão substituindo muita coisa, gostemos deles ou não.

Eu acho uma burrice gente dizendo que o humor piorou porque atacamos coisas que suas gerações consideravam sagradas, e também acho que é burrice achar que o humor piora porque o conceito de sagrado muda. Eu até acredito que no longo prazo toda a histeria punitiva do politicamente correto dos anos 20 deste século vai se tornar motivo de piada para os humoristas dos anos 30. Humor não melhora ou piora, ele simplesmente se adapta ao seu tempo.

O que temos que tomar muito cuidado é com avanços autoritários sobre liberdade de expressão, e isso independe de você achar graça na piada. Quem começa censurando piada rapidamente percebe que não tem nenhuma barreira para começar a censurar discurso político sério. Você abre a porta para uma pessoa que acha razoável e logo depois passa um monte de gente maluca junto.

Politicamente correto é uma parte da equação de liberdades pessoais, mas não de qualidade do humor. Quem quiser fazer lacração e usar um especial de comédia stand-up para falar sério sobre ter sido abusada (aconteceu de verdade) que faça e seja julgada pelo retorno financeiro. Igualmente para quem enfia o máximo de piadas ofensivas nos seus shows. Não existe jeito certo de fazer humor ou jeito ideal de entregar esse conteúdo. Cada um faz o que achar melhor sem essa chatice de dizer que no seu tempo era melhor.

No seu tempo era melhor se você escolher pensar assim. A luta coletiva é para não deixar autocratas nos calarem, e infelizmente é nisso que muita gente está falhando: ficam felizes com a ideia de censura se for do outro lado, sem perceber que estão cavando a própria cova.

Ser sommelier de piada só ajuda quem quer decidir o que podemos ou não falar. E considerando a média dos governantes do mundo, eu jamais deixaria isso na mão deles. Eu só gostaria de mais união na parte da liberdade e menos discussão sobre o que tem graça ou não. Porque para isso não tem regra, e é assim que tem que ser.

Para dizer que não sabe de que lado eu estou, para dizer que não gostava de Seinfeld, ou mesmo para dizer que as piadas que você não gosta são objetivamente ruins: comente.

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Comments (4)

  • Hoje em dia confunde-se muito gosto com liberdade. Se é algo que não gosto, não deve existir, portanto, censure. Se é algo que eu sinto que justifica meu ódio ou minhas causas, que seja estimulado e vire norma, caso contrário, você é (insira aqui adjetivo pejorativo).

    Politicamente correto e censura só vão aumentar polarizações e conteúdos cada vez mais extremos. É tentar apagar um incêndio elétrico com água: vai explodir na sua cara.

    Piadas se adaptam com o tempo tanto que, o que não é engraçado ou simplesmente for ofensivo, por si só desaparece, inclusive se as pessoas não se escandalizarem a ponto de divulgar por todos os cantos possíveis.

  • Li o texto e só consegui pensar na saudade que sinto do Hermes e Renato de quando o Fausto Fanti ainda estava vivo… Não tem comediante no Brasil que me faça rir que nem eles

    • Tá aí, muito provavelmente, o que eu deveria (também) ter assistido da MTV Brasil (SP) e atualmente sigo sem algo do tipo para ter interesse na atual MTV (no Brasil, tão apequenada).

      Aliás, acho que para criticar o não-datado stand up quase todo…quase sugiro parte 2 de tipos “Engrassadaum(ona)”.

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