Tragédia de 2023.

2023 foi um ano marcado por guerras bem midiáticas. Sally e Somir concordam que guerras são tragédias por definição, mas discutem qual a pior delas. Os impopulares lutam.

Tema de hoje: entre todas as tragédias de 2023, qual foi a que recebeu menos atenção que deveria?

SOMIR

A continuação da invasão da Ucrânia pela Rússia. Já era uma agressão covarde e injustificável no começo, mas com o passar do tempo foi ficando cada vez mais inaceitável. Não só porque um país está roubando território de outro na cara dura, como também porque com o passar do tempo o mundo foi perdendo o interesse na luta ucraniana.

E o grande exemplo desse abandono da opinião pública foi o ano de 2023. Com um novo conflito armado no Oriente Médio, a mídia tradicional e as redes sociais decidiram mudar o foco e polarizar entre Israel e Palestina. Não estou dizendo que era para ter ignorado, mas a situação ucraniana não deveria ter sido esquecida de tal forma.

O mundo parece ter enjoado do povo defendendo seu território. O governo americano tem cada vez mais dificuldades de aprovar pacotes de ajuda para a Ucrânia por causa do fim da popularidade da causa. Até surgiram algumas acusações de corrupção do lado ucraniano, mas eu duvido que o cidadão médio tenha sequer ficado sabendo.

É claramente uma questão de assunto perdendo a graça no ciclo de notícias. A corajosa defesa ucraniana acabou sendo punitiva: o que dava para fazer mesmo era enroscar os russos em batalhas de atrição e posições fortemente defendidas. Para quem enfrenta um dos exércitos mais poderosos do mundo, porque em números é mesmo, não deixa de ser um feito memorável.

Mas aí aparece o marasmo de uma guerra travada em trincheiras, a coisa não avança o suficiente para virar notícia, ou até pior: as notícias que chegam são parecidas demais com as anteriores. Botar os russos com os dois pés na lama, impossibilitados de avançar e com medo da vergonha de recuar, faz com que os ucranianos ganhem tempo para fazer uma economia de guerra funcional e tirem o máximo de proveito das ajudas do Ocidente.

Infelizmente, o algoritmo da rede social é um adversário para o qual ninguém estava preparado. A tragédia é que faltou um pouco mais de engajamento nos conteúdos ucranianos para manter a atenção do resto do mundo e por tabela, incentivar políticos a ajudar na causa.

É mais do que a tragédia de gente morrendo nas batalhas e toda a população civil que perdeu seu modo de viver na guerra, é o microfoco de atenção do cidadão médio impactando as coisas desse jeito. Será que se os soldados ucranianos fizessem dancinhas para o TikTok conseguiriam se manter populares o suficiente para garantir apoio financeiro para o exército de defesa?

Talvez o povo da faixa de Gaza padeça do mesmo mal em 2024, com a redução do interesse do cidadão médio e a liberação para Israel fazer o que bem entender. Ou até pior, com o Hamas conseguindo fazer todo tipo de atrocidade sem repercussão séria por falta de interesse nas notícias sobre Israel.

Em 2023, os punidos por essa versão cruel de concurso de popularidade foram os ucranianos. O mundo se acostumou com a ideia de eles estarem sendo invadidos pelos russos e muita gente já está discutindo se não seria melhor a Ucrânia desistir logo dos territórios ocupados para acabar com a guerra.

O que é estúpido: se a Ucrânia ceder agora, em alguns anos os russos invadem de novo e pegam mais território. Mas considerando que Trump ganhe a eleição e volte a ser o cãozinho fiel de Putin, talvez seja menos sofrido aceitar a derrota agora, ter mais alguns anos de liberdade e ceder o resto quando os russos voltarem para tomar o resto.

E como não me sai da cabeça que os russos poderiam ser rechaçados com um apoio mais direto da OTAN, não me sai da cabeça também como o futuro do país acabou definido pela popularidade do tema nas redes sociais.

Talvez o americano médio fosse mais propenso a manter o Biden se quisesse ver a Ucrânia chutando a Rússia para fora do seu território. Não que eu defenda Biden nem nada, mas no caso da invasão russa, ele é de longe a melhor opção.

A Ucrânia tirou leite de pedra até aqui, fez o que precisava com os recursos que tinha, manteve boa parte da integridade nacional e conseguiu algumas vitórias dolorosas para o Kremlin. Com um suporte um pouco mais longo do público ao redor do mundo, quem sabe até onde poderiam ir? A Rússia teria que gastar muitos recursos (que já está gastando além da taxa de reposição hoje, mas eles têm um estoque enorme) e ficaria fraca para mais aventuras imperialistas nos próximos anos, talvez o suficiente para Putin bater as botas e o país ter uma chance de recomeçar.

Do jeito que a coisa andou, a causa ucraniana caiu muito na ordem de prioridades do resto do mundo, e agora pode ser que percam boa parte do suporte que ainda tem e não consigam mais segurar um novo avanço russo. Putin tem tempo para esperar Trump ser eleito. A grande janela de oportunidade era entre ano passado e esse, depois disso tudo pode mudar e o país perder o maior apoiador que tinha.

E aí, o bandido ganha porque a vítima não conseguiu curtidas suficientes na rede social. Isso é uma tragédia moderna. Não bastasse a guerra, agora tem que ter uma boa estratégia de divulgação da guerra para ter uma chance…

Para dizer que eu sou pago para defender a Ucrânia (em loiras, mandam uma por mês para mim), para dizer que o Lula vai resolver tudo na conversa, ou mesmo para dizer que tragédia é o seu contracheque: comente.

SALLY

Entre todas as tragédias de 2023, qual foi a que recebeu menos atenção do que merecia?

O que fizeram com Israel. Não me importa de que lado você esteja ou as ressalvas que tenha com Israel, acreditar que invadir o país, matar, mutilar, sequestrar, torturar e estuprar civil inocente é de alguma forma válido, justificável, compreensível ou relativizável não é uma opção para quem tem um mínimo de caráter e humanidade.

Sim, o que está acontecendo na Ucrânia é igualmente grave, não tem como tolerar campo de concentração para crianças, crianças sequestradas, morte, tortura, estupros. Porém, a Ucrânia, apesar de já ter se tornado um conflito “velho” que não desperta tanto interesse, tem a maior parte do mundo a seu favor e toneladas de ajuda de países importantes.

Justamente por ser um conflito que já dura anos, deu tempo de as falsas narrativas caírem. Ninguém em sã consciência acredita que Putin está invadindo a Ucrânia para “desnazificar” o país, inclusive o próprio Putin admitiu sua ligação com o Grupo Wagner, composto por nazistas declarados. O mundo já viu que Putin está de mãos dadas com nazismo e que está fazendo muita cagada. Nada como ver os erros do Chefe de Estado para ruir com a imagem de liderança dele.

Israel e Palestina ainda está fresquinho. Ainda tem retardado mental acreditando que Israel bombardeou aquela porra daquele hospital, quando até a porcaria do Hamas admitiu (quando não tinha mais jeito) que não. Ainda tem muita narrativa falsa que não teve tempo de cair e, por isso, quem está vulnerável está muito mais vulnerável.

Além disso, tem uma enorme diferença: se a Ucrânia é o lado mais fraco, neste caso, Israel é o lado mais forte e as pessoas têm sérias ressalvas em torcer para o lado mais forte, já que o lado mais forte bate mais forte, o que pode soar como uma covardia. Se uma formiga ataca um leão, não pode esperar que a reação do leão seja proporcional à sua força. É por isso que sempre se deve pensar muito bem antes de atacar alguém mais forte do que você.

Não que isso justifique a morte de civis inocentes, nada justifica. Nunca. Mas nem é sobre isso, pois a maioria não está defendendo civis inocentes, estão defendendo a porra do Hamas mesmo.

E o Hamas bate, depois esconde a mão grita “covardia”. É uma questão de tempo para que o mundo descubra de quem é a covardia após os ataques a Israel. Vai demorar para que os vídeos do próprio Hamas proibindo a entrada de comboio humanitário sejam vistos, analisados e tenham sua veracidade atestada. Vai demorar para que vídeos do Hamas botando fogo em remédios e comida enviados por Israel sejam vistos, analisados e tenham sua veracidade atestada.

Por hora, Israel é o país malvado que está provocando uma crise humanitária, não importa que quem esteja causando isso seja o Hamas, impedindo ajuda. Então, acredito que esse conflito não está recebendo a atenção que deveria. A mídia, em vez de apurar de forma imparcial, dá notícia errada, por exemplo, confirmando que Israel explodiu aquela porcaria de hospital. A fonte? Segundo a própria mídia, a fonte seria o Hamas. Mas quem poderia imaginar que grupo terrorista mente? Mente. E como mente. O próprio Hamas depois admitiu que não foi Israel. Mas aí a pós-verdade já estava criada.

Esse conflito deveria ter sido investigado muito mais fundo em 2023. Por qual motivo a população palestina não está recebendo ajuda humanitária? Ela está sendo enviada, não apenas por Israel, mas por muitos outros países, mas está sendo interceptada e não está chegando em quem precisa. Vocês viram alguém fazendo uma investigação séria a esse respeito na grande mídia e isso sendo massivamente divulgado?

O mundo já entendeu o que está acontecendo na Ucrânia: Putin surtou e não está conseguindo manter o surto que teve. Já vimos muito general morrer, barco afundar e até os próprios mercenários russos dele marchando para Moscou (e matando todo mundo no caminho) para depor o Putin. Já se sabe que ele não é esse líder supremos, fodástico e infalível que aparece em montagem matando urso com as mãos. A versão já caiu, agora predominam os fatos.

No caso de Israel, a versão ainda não caiu. Homem branco rico ganancioso que oprime os coisatos pobres da fronteira. Ainda estamos nesse patamar de simplificação. Ainda tem pessoas públicas como a mongoloide da Greta Thunberg dizendo “Form de river to the sea” sem saber que é um slogan que declaradamente busca o extermínio de um povo. Ainda tem uns emocionados com pouco conhecimento histórico que não sabem que o Hamas sempre declarou abertamente como objetivo o total extermínio de Israel e defendendo um grupo cuja meta é genocídio.

E vai demorar para furar essa bolha, pois há cada vez mais resistência em torcer para “o lado mais forte”, para homem branco, para país com uma boa economia. Exala uma aura muito mais legal, descolada, moderna e lacradora torcer para o pessoal pobre com pele cor de papelão. Aí sim você é bondoso, tem consciência social, é aplaudido. “Nós, o povo soviético”.

Quando você vê grupos que seriam trucidados pelo Hamas (como os gays) defendendo o Hamas, você percebe que está faltando informação, debate e conhecimento. São pessoas que seriam consideradas inferiores e dignas de punição com pena de morte pelo grupo que estão aplaudindo. É tipo um “galinhas pelo KFC”. A pessoas abraçaram um lado que, aos ditames da sua bolha, é o mais legal e estão fechando os olhos para tudo que ele faz de ruim.

Olha, eu nem entro no mérito do que seria um mundo ideal, um mundo no qual todos estariam muito putos pelos inocentes mortos de ambos os lados e por governos não saberem conversar, negociar e se entender até chegar nesse ponto. Isso está anos luz de distância. Eu me contentaria com um mínimo de percepção de que mandar mercenários drogadíssimos para degolar bebê, estuprar mulheres e sequestrar famílias não é uma reação aceitável a nada que um país possa fazer.

“Ain mas Israel…” ESSE É O PROBLEMA. Tentar justificar o injustificável. Na Segunda Guerra Mundial, ambos os lados cometeram crimes de guerra, mas tem UM que foi muito mais reprovável, pois declarava abertamente o desejo de exterminar por completo um povo. Não é tão difícil, é? Não é tão difícil dois lados estarem errados, mas existir um que cruzou uma linha que é muito mais nociva para a humanidade.

Eu tenho medo de gente “Mas Israel”. Eu fico pensando: se o vizinho da pessoa começasse a empurrar a cerca, invadir seu quintal, se comportar de forma escrota, será que essa pessoa um dia invadiria a casa do vizinho, degolaria seu bebê, estupraria sua esposa e sequestraria seus filhos? Pelo visto sim, pois é isso que a pessoa está aplaudindo. Realmente esse conflito não recebeu a atenção que merecia: se iluminaram os erros de Israel e se ofuscaram os erros do Hamas.

Mas é questão de tempo. Os anos mostrarão claramete a parcela de barbárie de cada lado, e dessa vez, o posicionamento de todo mundo está muito bem registrado para a posteridade. Isso que aconteceu vai entrar para a história e, graças à internet, será possível rastrear quem estava de que lado. Parece que muita gente vai ter que fugir para a Argentina novamente, sugiro que parem de falar tão mal do país, se não nem isso vão conseguir.

Para se exaltar, ficar agressivo e distorcer fatos, para atribuir a um blog desmonetizado algum interesse em defender um ponto de vista ou ainda para dizer que a melhor forma de se posicionar é olhar para o jovem e tomar o lado contrário: comente.

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Comments (14)

    • Triste, porém, contextos diferentes. Sudão teve golpe de estado, teve acusações gravíssimas de violações a direitos humanos, teve os últimos anos extremamente tumultuados e questionáveis em diversos pontos. Não que justifique guerra ou violência, mas, em termos de danos globais, é muito mais nocivo quando se invade um país democrático, soberano, com líder eleito pelo povo.

  • Se o Trump ganhar (o que eu considero impossível), a guerra da Ucrânia acaba na hora pelo simples motivo de que ele não vai continuar sustentando a Ucrânia.

    • Não sei se é tão simples… Não sei se o Trump quer ou pode se indispor com toda a OTAN. Eu acho que a Ucrânia sai prejudicada sim, mas não acho que o Trump possa se dar ao luxo de correr o risco de perder tantos parceiros comerciais.

  • Somir,

    Sei que ainda sou novato aqui no blog, mas queria saber mais sobre “considerando que Trump ganhe a eleição e volte a ser o cãozinho fiel de Putin”. Eu não enxergo desta forma. Tem alguns posts antigos aqui que eu posso ler sobre isso?

    Obrigado!

  • Em suma, as duas tragédias são agravadas pela mentalidade de relativizar um grau absurdo de violência por simpatizar com um dos lados ou antipatizar mais com o outro. Ao invés de tentar resolver os problemas existentes, a atenção midiática se volta para discutir quem pode bater e quem tem que apanhar calado. O grau de violência do Hamas contra Israel simplesmente não é aceitável, nem o grau de violência da Rússia contra a Ucrânia. Tentativas de justificar isso só mostram o quanto a humanidade falhou.

    Em termos puramente geopolíticos, uma vitória russa na guerra russo-ucraniana tende a ser pior que o prolongamento do conflito no Oriente Médio, ainda mais quando levamos a questão taiwanesa em consideração. Tanto Rússia quanto China têm interesses, relevância e poder para causar problemas no resto do mundo. Talvez não no sentido de guerra militar ou econômica, mas essa instabilidade não é boa para ninguém, agrava tudo o que já está ruim e alimenta inclusive extremismos políticos, já que o Ocidente está sem líderes fortes de maneira geral.
    A questão de Israel e Palestina é mais localizada e tem menos probabilidade de escalar, é mais distante e os impactos são mais fáceis de conter.

    • A impressão que me dá é que uma vitória Russa seria um recado muito errado: “vai lá, invade outro país, não pega nada não, daqui pra frente isso será tolerado em algumas circunstâncias”

    • “Em suma, as duas tragédias são agravadas pela mentalidade de relativizar um grau absurdo de violência por simpatizar com um dos lados ou antipatizar mais com o outro. Ao invés de tentar resolver os problemas existentes, a atenção midiática se volta para discutir quem pode bater e quem tem que apanhar calado.”

      Não poderia ter resumido melhor, Paula.

  • Badalhocas Perdidas

    Assunto complicado e pedregoso esse, hein? Posso ficar em cima do muro desta vez? Porque eu concordo com os dois e acho que nenhuma guerra deveria ser ignorada por ter virado “notícia velha”, assim como também acho que imbecis não deveriam tomar lados sem entender direito o que realmente está acontecendo.

  • “Podemos perdoar os árabes por matarem nossos filhos. Não podemos perdoá-los por nos forçarem a matar os filhos deles. Só teremos paz com os árabes quando eles tiverem mais amor por seus filhos do que ódio por nós”

    Essa frase atribuída a Golda Meir, ex-primeira ministra de Israel, sempre vem à mente quando leio ou assisto qualquer notícia ou documentário sobre o Oriente Médio. Pessoalmente, é um bom resumo dessa loucura.

  • É o ciclo sem fim, daqui a pouco a modinha é Taiwan e esquecem Israel.
    Parece aquele meme da piscina. Na superfície estão os conflitos que mais falam nas notícias e redes sociais, lá embaixo estão Afeganistão, Yemen, Somália, Nigéria, Eritreia, Myanmar…

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