Skip to main content

Colunas

Fast Food

Ontem eu comi em uma famosa rede de fast food, aquela do palhaço. Não foi legal. Não foi bacana. E a pior parte é: de uns anos para cá, nunca é legal o que acontece depois, mas passa um tempo, eu esqueço, e como novamente. O lado bom é que, como dizia Ariano Suassuna, “tudo que é ruim de passar, é bom de contar”, então, ao menos, meu desgraçamento talvez te divirta no dia de hoje ou até te sirva como aprendizado para não cometer o mesmo erro.

Se você é jovem (e para fins digestivos eu considero jovem a pessoa com menos de 30 anos), provavelmente você vai achar estranho o que vai ler. Mas, não se engane, seu dia vai chegar. Considere este texto como uma distração, mas também como um alerta: coma feito um animal hoje, aproveite, pois um dia essa fácil digestão vai acabar.

Normalmente eu não como fast food. Para que eu cometa esse descalabro é preciso que uma série de fatores se alinhem, criando uma “tempestade perfeita”. Foi o que aconteceu ontem.

Fui ao médico para meu checkup anual. O médico demorou a me atender. Comecei a sentir fome. Ao lado do médico estava o fast food e o cheiro de comida estava chegando até mim, o que me fez mentalizar o que estariam preparando. Eu sabia que tinha bacon, eu sentia claramente o cheiro de bacon e eu amo bacon.

Entediada na sala de espera, abri o site do fast food no celular, curiosa para saber que cheiro maravilhoso era aquele.

As fotos… ah as fotos… Eu sei que não são fotos de comida real e que quando você pede chega um hamburguer mais murcho que peito de orangotango amamentando, mas meu cérebro começou a surtar. O médico demorou muito para me atender, mas quando finalmente me atendeu, me disse que estava tudo bem. Saí do consultório feliz.

Pude observar que havia um certo trânsito para voltar para casa, algo bem incomum na cidade onde vivo. Fome + certeza de saúde em dia + previsão de demora para chegar em casa + estímulos visuais e olfativos que fisgaram o cérebro. Obviamente entrei na porra da lanchonete.

O que não seria um problema, por si só. Para uma pessoa centrada, decente e de posse de suas faculdades mentais, seria só um almoço. Mas não para mim. Nãããããão. Mal entrei começou uma pane mental, que leva a uma sequência de péssimas escolhas.

Meu primeiro pensamento foi: “não preciso de um combo, até porque, não bebo refrigerante, seria um desperdício”. Entrei determinada a comer só o hamburguer. Mas uma pessoa com fome acaba com seu discernimento muito afetado para se agarrar a boas decisões.

Quando vi que o preço do combo era quase o mesmo do sanduiche puro, a gula falou mais alto, travestida de economista: “se é para pagar o mesmo, então pede o combo, porra”. Aquela mentalidade muito errada de querer tudo que “se tem direito”. É gula pura, disfarçada de custo/benefício, que, diga-se de passagem, não compensa: teria sido melhor para mim permitir que eles tenham um pouco mais de lucro e ter pedido só o sanduíche.

“Se eu não aguentar a batata, não como, simples assim”, pensei eu, idiota que sou. Quem é o ser humano que gosta de batata frita e consegue deixar batata frita no prato? Batata frita, assim como pipoca, é um alimento traiçoeiro, pois vem parcelada.

Se viesse uma única batata gigante no prato, a gente olharia, dimensionaria o real tamanho e diria “não dá, é muita coisa”. Mas não. A batata frita vem em pedacinhos, o que te permite atentar contra o seu organismo comendo uma e, mesmo cheio, continuar, no esquema de esperar vagar um milésimo de espaço para enfiar outra goela abaixo. Alimentos parcelados são traiçoeiros, são um convite para excessos.

Outra escolha errada foi o sanduíche. O hamburguer que eu queria já era uma má escolha, por ser basicamente o menos saudável do local. Em minha defesa, começo dizendo que esse hamburguer é uma novidade, portanto, algo que eu nunca tinha provado, a gula recebeu mais uma oportunidade de se apresentar, travestida de ineditismo: me auto enganei com a justificativa de “experimentar algo novo”.

Tinha coisa nova menos nociva? Tinha. Um monte. Mas vem aquele diabinho na orelha e fala “vai comer em fast food e se preocupar em pedir um que tenha carne branca, hipócrita?”. Esse raciocínio equivocadíssimo de “quem tá na chuva é para se molhar” escalou e me fez tomar a terceira má decisão da escolha.

Além de escolher algo que tinha basicamente pão, carne, queijo, bacon e toneladas de gordura, eu precisava optar pelo tamanho. Tinha a versão com um andar (uma carne) e ia crescendo, até chegar na versão de quatro andares (quatro carnes, quatro queijos, quatro bacons). Vocês sabem onde eu quero chegar, certo?

Não é lógico ou proporcional uma pessoa de um metro e meio fazer uma refeição que alimentaria a jaula de um felino no zoológico, mas na hora me veio aquele raciocínio falacioso de tirar o máximo de proveito da experiência: “você nunca come fast food, provavelmente só vai comer uma vez este ano, então aproveita e pede o maior, para não passar vontade”. Querido leitor, eu não teria passado vontade nem se pedisse o de uma carne. Gula é uma merda. Nunca decida uma refeição quando está faminto.

Paguei, com aquela falsa sensação de não estar sendo passada para trás pois estava levando a batata frita e a bebida de que tinha direito por aquele valor, sendo que a bebida, no caso era água, olha que deprimente, e fui para a fila para retirar o sanduíche.

Uma coisa interessante sobre as más decisões que eu sinto (não sei se é universal) é que, depois de tomadas, meu cérebro dá uns flashes de aviso, umas red flags, uns alertas no estilo “será que essa foi realmente uma boa escolha?” e eu os silencio com um “agora está feito”, como se fosse uma coisa irreversível, quando na verdade, não é.

Não tinha nada “feito”. Eu poderia cancelar o pedido. Eu poderia pegar o pedido e não comê-lo. Eu poderia fazer embaixadinhas com o hamburguer ou botar um tutu rosa nele e dizer que é meu filho. O céu é o limite para o que eu poderia ter feito, não tinha “agora está feito”. Só tem “agora está feito” quando você mata alguém, todo o resto pode ser contornado. Mas eu calei a boca do meu cérebro, como se estivéssemos diante de uma situação irreversível; “já pagou, já pediu, agora está feito”. Otária.

Chegou o meu pedido. Imediatamente me auto enganei com aquele patético mantra do “você merece”, que é a gula travestida de autoestima. Olha o pensamento torto: “você não bebe, não fuma, não usa drogas, dorme direitinho, se alimenta bem, se exercita… dá um desconto, você merece o direito de comer um fast food, uma vez ao ano”. No fantástico mundo de Sally Faminta, querido leitor, comer até passar mal é mérito.

Como agravante, eu trabalho com publicidade tempo suficiente para saber que o “você merece” é coringa para qualquer cagada que uma pessoa queira fazer. Quando se parte da premissa de que consumir determinado produto é mérito, fica muito difícil deixar de comprar, pois está implícito que se você não se permite aquilo, é por não ter merecido.

Encher o cu de hamburguer não tem absolutamente nada a ver com mérito, espero que um dia estas palavras reverberem na sua alma se você cair na mesma armadilha que eu. Mérito é não dilatar seu estômago a ponto de empurrar o pulmão e não conseguir respirar. Mérito é não se fazer mal. Mérito é ter autocontrole.

Peguei minha bandeja com meu enorme sanduiche e fui para uma mesa. Já no caminho olhava temerosa para o vulto: “Essa porra é grande”. E era. Já vi bebês prematuros menores que meu hambúrguer. Mas me agarrei a uma utopia: “tá tudo bem, você não é obrigada a comer tudo”. Eu tinha como saber melhor.

O tanto de texto que eu já escrevi aqui falando sobre mecanismo de saciedade, ultraprocessados e esse tipo de coisa me faz ter a certeza de que eu sabia melhor. A composição desse tipo de alimento é pensada especificamente para gerar compulsão, para que o cérebro ordene que o corpo coma o máximo possível. Mas a Sally Faminta não pensa.

No minuto em que você desembrulha a comida, começam várias fases da degradação que é deixar a gula tomar conta de você.

A primeira fase é a do deslumbramento. O cheiro, o sanduíche quentinho, os neurônios fazendo flash mob com pompons gritando “Ela merece! Ela merece!”. Você se sente confiante, feliz e está radiante por ter decidido se dar esse presente. Você olha para a comida como o Gollum olha para o anel. Você mataria se alguém se colocasse entre você e o alimento.

A segunda fase é o êxtase. A primeira mordida… o cérebro soltando fogos, as endorfinas dançando macarena. A primeira mordida de um hamburguer de fast food é simplesmente deliciosa. A segunda e a terceira também, mas a primeira é incomparável. Até mais ou menos o meio do sanduíche, é muito recompensador. Mas daí em diante, principalmente se for um sanduíche do tamanho de uma bola de futebol, a coisa vai ladeira abaixo.

Como eu mesma já expliquei em muitos textos aqui, o cérebro humano, por um mecanismo evolutivo, nos recompensa com um tremendo bem-estar quando consumimos comidas gordurosas, açucaradas ou qualquer coisa que permita que o corpo acumule energia. Isso vem da época na qual o ser humano caçava para comer e precisava botar para dentro o máximo de comida possível, pois não sabia quando seria sua próxima refeição.

Então, por este mecanismo evolutivo, quando comemos algo muito gorduroso ou açucarado, o cérebro dá uma travada no aviso de saciedade: “não avisa não, deixa ela comer, pois isso é bom para a gente, vamos estocar combustível, aumenta nossas chances de sobreviver”. Por isso é muito mais fácil comer fast food até passar mal do que comer brócolis até passar mal. Com brócolis, dá cinco minutos e seu cérebro levanta uma plaquinha de “chega dessa merda”.

Senso bem sincera aqui, se eu tivesse vergonha na cara, eu tinha parado no meio do sanduíche, pois já estava mais do que saciada. Mas dava para continuar, então, eu continuei.

E da metade para frente se entra na terceira fase, a da cogitação. A gente começa a ponderar, a ensaiar um olhar racional. “Esse troço é meio gorduroso, né?”. “Talvez não tenha sido uma boa ideia pedir essa versão maior”. Mas cabe, pois o cérebro desligou o alarme da saciedade. Como cabe, a gente vai comendo.

“Quando eu não aguentar mais eu paro”, pensou a idiota. O aviso de saciedade, nesse tipo de situação, demora em média 20 minutos para chegar, ou seja, quando a gente não aguenta mais é por já estar saciado faz tempo e ter comido por 20 minutos por cima de um estômago já cheio. E eu sabia disso. Mas me recusei a parar enquanto não estivesse completamente afrontada, enojada e entupida.

Aí vem a quarta fase, a repugnância, que geralmente aflora no último quarto do lanche. A gente percebe o quanto o troço é pesado. Não sente mais aquela alegria das primeiras mordidas. O botão da calça já experimenta alguma compressão. O suor tem uma oleosidade especial e um leve cheiro a carne. Mas cabe, pois o cérebro suprimiu o aviso de saciedade. Então, a maior parte das pessoas, inclusive esta idiota que vos fala, continua.

Eu cheguei a largar o pedaço e alguns palitos de batata frita decretando que não dava mais. Mas dá uma sensaçãozinha de fracasso. Não deveria, mas dá. “Mais tarde vou me arrepender, só venho aqui uma vez por ano e não vou comer? Ainda não me sinto completamente saciada, ainda dá”. As mãos trêmulas retomam o sanduíche, já meio frio e um pensamento intrusivo de “falta tão pouquinho, e se você colocasse tudo na boca?” começa a rondar.

Mesmo que precise de um pequeno intervalo para abrir um milímetro de espaço no estômago, a gente acaba terminando essa merda. Mais ainda se você acompanha com refrigerante, que dá uma forcinha no processo. Porém, como eu disse, o meu lanche estava acompanhado por água.

Quando terminei o hamburguer e as batatas, em poucos minutos aquela bomba de sódio começou a desidratar as minhas entranhas. Olhei para a minha garrafa de água, intocada. A sede causada pela comida somada à sensação de “não vou largar o troço aqui, sem abrir, já que paguei por esta água, vou beber” me fez abrir a garrafa e beber seu conteúdo, talvez de forma meio rápida e abrupta, pois a comida realmente me deixou sedenta.

Não é legal a mistura água com pão. Minha avó sempre me contava que ela matava os coelhos que ela criava dando muita aveia para eles comerem e depois deixando livre acesso à água – e eles bebiam até suas entranhas explodirem. Eu nunca soube se isso era verdade ou não (provavelmente ela matava com uma porrada na nuca, como todo faziam, mas não queria relatar violência para uma criança), mas ontem eu me senti um dos coelhos da minha avó.

Quando você come um sanduíche maior que o seu pé e depois bebe meio litro de água, o pão vai inchar no seu estômago. E isso aconteceu concomitantemente quando o aviso tardio de saciedade chegou. O cérebro mandou um “foi mal, atrasei, mas aviso que você está saciada há 20 minutos” e eu, em resposta, bebi meio litro d’água, inchando o que já estava comprimido. O cérebro me respondeu com a quinta fase: o colapso.

O colapso… ele não é só físico. Claro, tem a sensação de inchaço, a náusea, a indigestão, o sono repentino fruto da maré alcalina. Mas também tem o aspecto moral. “Olha o que eu fiz, eu devo desgostar muito de mim mesma para fazer uma porra dessas, precisava comer feito um animal? Eu não tenho controle, que situação lamentável, que situação degradante, eu já tenho idade para fazer melhor” e por aí vai.

Eu precisava voltar para casa, pois isso foi no almoço e eu tinha um dia de trabalho pela frente. Mas minha única vontade era deitar a cabeça na mesa e dormir, em parte pela maré alcalina, em parte para não ter que vivenciar o desconforto que infligi a mim mesma.

Em um esforço enorme, levantei e comecei a andar em direção à porta com a mesma mobilidade do Stay-Puft dos Caça-fantasmas. Eu tinha a impressão que a cada passo que dava o copo das mesas vizinhas tremia, tipo T-Rex do Jurassic Park. O suor continuava. A ressaca física e a ressaca moral se fundiam em um misto de mal-estar e vergonha.

Transpirando como um chafariz, nauseada e com dificuldades para respirar, cheguei em casa e me sentei na frente do computador. Passei a tarde toda batendo cabeça e lendo o mesmo parágrafo dez vezes sem conseguir me concentrar. O suor com odor a carne se intensificou. A calça não fechava mais. Passei o resto do dia sem comer mais nada. À noite me arrastei até a cama, não sem antes tomar um omeprazol, pois a azia era certa, e dormi feito uma jiboia que comeu um carneiro.

Estou no dia 2 e ainda sem conseguir comer nada. Completamente saciada, 24h após o sanduíche. Isso não é saudável. Eu espero que ter escrito este texto me ajude a fixar a informação de que eu não devo comer em fast food, muito menos em quantidades industriais. E espero que de alguma forma te relembre isso também, se você, assim como eu, de tempos em tempos comete esses atentados contra si mesmo.

Se amem. Se respeitem. Se cuidem. Não comam até ficar nesse estado deplorável.

Para dizer que está rindo da minha desgraça, para dizer que se identifica ou ainda para dizer que agora meus exames de sangue não devem mais estar tão bons: comente.

Se você encontrou algum erro na postagem, selecione o pedaço e digite Ctrl+Enter para nos avisar.

comida, fast food, sofrimento

Comentários (42)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Relatório de erros de ortografia

O texto a seguir será enviado para nossos editores: