Design malicioso.

Existem várias formas de tirar vantagens do cidadão médio, e vários profissionais cuja carreira se baseia nisso. Enquanto funcionários públicos, vendedores e golpistas de todos os tipos costumam levar a fama, tem uma outra classe de possíveis especialistas em te enganar: os designers. Hoje vamos falar sobre o design malicioso.

Quem nunca passou por perrengue na hora de cancelar um serviço, devolver um produto ou se descadastrar de uma lista de e-mails? Quem nunca ficou puto da vida por não achar uma função num site ou num aplicativo, xingando os “imbecis que fizeram isso” por não ter a menor ideia de como achar o que precisa?

Bom, nunca se pode descartar incompetência nesse mundo, mas saiba que muitas das suas frustrações foram planejadas numa reunião entre marketing, publicidade e programadores. O design malicioso é o desenvolvimento intencional de interfaces de sites, aplicativos ou até mesmo espaços físicos com o objetivo de desencorajar pessoas de realizar ações específicas.

A empresa quer que você contrate seu plano de serviços e pague mensalmente, então os botões de comprar e colocar em débito automático sempre são grandes, chamativos e em posições óbvias nas telas. Ao mesmo tempo, a empresa não quer ninguém mudando de ideia depois. Então, a empresa manda alguém colocar a opção de cancelamento no site, porque é obrigada por lei, mas a lei não tem como dizer exatamente onde colocar esse botão…

E aí, você tem um dos estilos mais básicos de design malicioso: esconder opções desagradáveis para a empresa. Se o juiz perguntar, a empresa pode dizer que o botão de cancelar o serviço está no site sim, mesmo que você precise entrar em oito páginas diferentes com opções confusas e acertar uma ordem exata de ações que mais parece um labirinto digital. O botão está lá, e a empresa tem uma desculpa técnica para cada muro que ergueu entre o usuário e a opção indesejada.

“Mas e daí? A pessoa vai cancelar de qualquer jeito!”

É aí que você se engana, pessoas tem uma espécie de timer interno com suas decisões. Na hora que você escolher fazer uma coisa, a ideia está muito forte na sua cabeça, mas quanto mais passa o tempo, maior a chance de você começar a duvidar se era a melhor escolha mesmo. Mesmo um minuto de enrolação entre a sua vontade de clicar no botão de cancelar e a chance de clicar nele podem fazer alguém mudar de ideia.

O ser humano é impulsivo, as vontades vêm rápido e com muita força, mas é só esperar um pouco que o ânimo vai se esvaindo. O designer de interface tem que entregar um produto final que faça suas decisões de gastar dinheiro muito fáceis e as de economizar dinheiro mais complicadas. Só nessa manipulação de segundos de atenção e interesse, uma empresa consegue aumentar e muito sua lucratividade.

É mais ou menos como ficar sofrendo com atendente para cancelar sua internet ou TV por assinatura: eles contam com o seu saco enchendo de tal forma até desistir daquela ação, ou mesmo aceitar uma nova proposta só para acabar logo com a ligação. Na internet é mais complicado segurar a pessoa, porque códigos do consumidor ao redor do mundo exigem opções de cancelamento em todos os sites, mas como já disse antes: não são específicos sobre onde essa opção tem que estar.

Design malicioso pode se materializar com um link minúsculo em cor apagada, num menu enorme cheio de opções que não fazem sentido para um leigo, ou até mesmo em palavreado confuso. É uma corrida contra o tempo da sua certeza, ou mesmo sua paciência. A não ser que o valor que você esteja gastando esteja realmente te apertando no final do mês, existe uma chance, mesmo que pequena, que você fique sem saco e “deixe para depois”.

As empresas, especialmente as maiores, sabem muito bem como funciona o seu mecanismo de tomada de decisões. Pessoas gostam de padrões fáceis de seguir e ficam frustradas quando são obrigadas a prestar atenção no que não queriam. E se você nunca pensou em design malicioso antes, é muito provável que tenha caído em algum desses golpes.

Quando você tem que realizar alguma ação que tire dinheiro da empresa, saiba que pode encontrar uma série de obstáculos. Não é que você “não estava com vontade mesmo”, é que estavam tentando te colocar nesse estado mental. Ficar de saco cheio é parte do processo e não tem muito o que possamos fazer para impedir design malicioso. Ele está lá pra te manipular, se você souber disso, já vence a maior parte dos obstáculos.

Como eu conheço o conceito faz tempo, na minha cabeça é um jogo: eu sei que a empresa vai tentar me impedir de cancelar ou devolver, por isso eu já entro num estado mental de desafio. Como vencer o design malicioso deles no menor tempo possível? Parece bobagem, mas é muito eficiente: você encontra um prazer no processo e ao invés de ficar pensando se vale mesmo a pena continuar, está tentando passar de fase e vencer o chefe daquele jogo. “Ok, Amazon, você não quer que eu cancele meu Prime? Vamos ver quem ganha!”

Mas nem só de pedágios para cancelamento vive o design malicioso: em 2020 o Facebook mudou a interface de visualização de stories para colocar o botão de comprar no lugar onde estava o botão de curtir. Estavam abusando da memória mecânica das pessoas: sem pensar, muitas clicavam em comprar. “Mas adianta se a pessoa não quer comprar?” – perguntaria uma pessoa mais esperta. A resposta é: sim, adianta.

Não necessariamente para quem vende, mas adianta muito para quem ganha dinheiro vendendo anúncios, como o Facebook faz. No final do mês, o Facebook manda um relatório para o anunciante dizendo que um milhão de pessoas clicaram no botão comprar. Se a empresa não vendeu um milhão de produtos, o problema não é deles. Aí toca o anunciante coçar a cabeça tentando entender por que tanta gente se interessa, mas quase ninguém compra. O Facebook diz que seus anúncios fazem muito sucesso, e que não é culpa dele se a pessoa não compra depois…

Tempos atrás, tinha outra sacanagem dessas nos anúncios em vídeo de praticamente todas as redes sociais: já percebeu que enquanto você rola o feed de atualizações, muitos vídeos começam a tocar mesmo sem você dar play neles? Pois é, isso foi feito para enganar anunciante também: cada vez que um vídeo passava pela sua tela, as redes sociais diziam para o anunciante que era uma pessoa vendo o vídeo. Precisou muito cliente e agência grande descobrir e tocar o terror nas redes sociais para mudarem essa forma de contar.

E às vezes, o design malicioso pode vir do pessoal da programação: quem nunca fez uma pesquisa no Google, tentou clicar num link e acabou em outro completamente diferente? Percebam o golpe: existem resultados de pesquisa normais e resultados de pesquisa patrocinados. Esses patrocinados vêm de empresas que compram os primeiros lugares, mas “espertamente” o Google fez com que os resultados pagos demorassem um pouquinho a mais para carregar na tela. O resultado? Você está certo de que está clicando ou tocando num link, mas a página se move rapidamente e entra outro no lugar. Um que, veja só, o Google recebe dinheiro a cada vez que é clicado.

Falando em propagandas, quem nunca jogou “encontre o X” com uma propaganda em sites ou aplicativos? Aquela porcaria toma a tela toda e você só tem opção de “comprar agora” ou “saber mais”. O botão de fechar está praticamente invisível, e agora eles pararam de colocar ele no topo à direita, que era o padrão que todo mundo se acostumou. Às vezes fica na parte de baixo, às vezes fica à esquerda… tudo para você não conseguir seguir seu instinto de fechar a desgraça que está na frente do que você quer fazer.

“Mas isso não faz a pessoa ficar com raiva e fechar tudo?”

Não. Se fizesse, já teriam parado. A ideia é que você vai clicar ou tocar num botão que te leva ao que querem vender, mesmo que sem querer. E publicidade tem dessas: às vezes a gente clica sem querer numa coisa, mas quando está lá, acaba gostando. Não tem mais bobo nesse mercado: se não aumentasse as vendas, seria descartado que nem fralda suja. E só de você ter que ficar procurando o Wally para fechar a propaganda, sua chance de ler o que está nela aumenta. Estão lutando contra os seus reflexos.

Mas isso chega na nossa “vida real”, o design malicioso não foi inventado com a internet. Sabe aquele caixa rápido do supermercado, com 40 caixas e só duas pessoas trabalhando? É claro que a empresa pode ter mais gente ali, mas eles colocam um monte de produtos de compra por impulso ao seu redor enquanto você espera. E quase ninguém desiste depois que já entrou na fila. Alguns até criam labirintos perto do caixa, para te deixar totalmente sem graça de desistir e ter que trombar um monte de gente pra sair.

Design malicioso não é tática de venda, é manipulação pura. É criar um ambiente onde você é forçado a tomar decisões que não tomaria normalmente, ou mesmo para te fazer mudar de ideia por pura frustração. E por mais que tenha recebido mais atenção de consumidores enfurecidos nas últimas décadas, a internet é um ambiente em constante renovação, onde um aplicativo pode ser atualizado para colocar uma função escrota, ganhar dinheiro com isso e desligar assim que reclamarem. É só continuar bolando novas formas de enrolar o consumidor, para que ninguém tenha tempo de se adaptar, ou mesmo para tomar um processo por isso.

Por isso, é muito importante que você saiba da existência do design malicioso: quando algo estiver muito difícil de fazer ou confuso no seu processo de consumo, pode considerar que é de propósito sim. Pode e deve teimar e lutar contra ele, porque não é erro ou azar, é feito para tal. Aquele chat de atendimento que começa com um robô imbecil que não responde nada é para manter menos funcionários atendendo. Você pode e deve ficar puta(a), xingar e chamar um atendente real.

Especialmente se você for brasileiro e estiver lidando com empresas brasileiras: esse povo é muito compreensivo com incompetência, talvez por autoproteção, mas tem um quilômetro de diferença entre lidar com uma empresa burra e uma empresa que está te sacaneando de propósito. As empresas estão te sacaneando de propósito. Não é para aceitar, não é para se adaptar, é para teimar até o fim e sempre que possível, denunciar esse tipo de design malicioso.

Você não é burro nem preguiçoso por não achar o botão que quer ou mesmo por cair em uma página que não queria. O golpista de internet E as gigantes de tecnologia querem que você clique no lugar errado. Vai ser muito difícil combater todas as instâncias de design malicioso que infestam a internet, mas você pode ter isso em plena consciência agora. É um jogo, e um que você não precisa perder sempre.

Se não pode vencê-los, jogue melhor que eles.

Para dizer que não acha o botão de cancelar sua assinatura do Desfavor, para dizer que se sente menos imbecil agora, ou mesmo para dizer que o capitalismo nunca tira férias: somir@desfavor.com

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Comments (14)

  • Esta informação é boa… mas tbm n posso deixar de pensar em como pode fomentar ou incentivar mais ainda teorias da conspiração kkk…

  • Tem como o criador do site deixar a parte que aparece o anuncio mais sensível ao toque?
    Porque no celular tem página que você mal passa o dedo proximo da publicidade e o anuncio já abre.

    Já falei aqui antes e vou falar sempre que o contexto permitir: para tretas bancárias abram chamado no Bacen. É a unica coisa que resolve.

    • Se tem como fazer, eu não sei. Sensibilidade de toque é uma configuração do próprio celular, que não deveria ser modificável por nenhum sistema externo.

      O que dá pra fazer é sacanear o usuário colocando o verdadeiro botão de fechar próximo, mas não exatamente em cima do X. Então qualquer vacilada te leva a clicar no banner ao invés de fechar.

  • Por isso tenham um ou dois e-mails reservados pra se cadastrar em besteiras. Fiz isso na época da faculdade, quando precisava entrar em sites de artigos científicos e pediam pra criar uma conta. Pelo menos a maioria dos sites davam um limite de N dias ou N artigos antes de começar a pedir o cartão de crédito. Mas quando o site pede pra dar o cartão de crédito já de cara, eu vou embora e tento encontrar o que preciso em outro lugar. Até hoje tem dado certo, triste vai ser o dia em que não será possível fugir dessa “ditadura do cadastro”.

    Ah, e o mesmo vale pra “sites de emprego” que exigem CPF e uma pá de outras informações pessoais. A maioria desses sites e vagas são falsos ou simples perda de tempo, tipo aquela merda de Gupy e suas 300 etapas de testes idiotas (o contratado será um indicado que nunca fez um curso na vida e fala “largatixa”). É mais fácil e eficaz investir esse tempo saindo de casa e conhecendo pessoas que podem te recomendar pra alguma vaga. Ou nascer rico.

    • Fugindo um pouco do tema da discussão, mas esses testes do Gupy são bizarros. A gota d’água pra eu deletar minha conta foi um processo seletivo que uma etapa pedia pra postar um vídeo no Tiktok, pena que não tirei print… parece até coisa de troll pra ver quão longe as pessoas vão por emprego. Meu emprego atual é num lugar onde entreguei currículo pessoalmente, e ainda dizem que a vida dos zoomers (sou de 2001) se resume a computador :S

    • Gupy não é falso. Já fiz processos seletivos por lá e passei, tô trabalhando agora por vaga que peguei lá. Só passa pra etapa da entrevista se teu perfil bater com o que eles querem. O robô que analisa. Se tu não passou é pq tava fora do perfil.

    • “Por isso tenham um ou dois e-mails reservados pra se cadastrar em besteiras”. Boa ideia. Vou passar a fazer isso também.

  • O remédio pra isso é ser mão de vaca. Passam o dia me enviando email, sms, telefonema e banner mas kd que eu compro? Quando tenho que cancelar um serviço já vou logo dizendo que o motivo é meu direito pra evitar argumentos e que anotei o protocolo pra jogar na Anatel, Procon, Reclame Aqui ou Ouvidoria. Ontem falaram dos mendigos de buceta e hoje dos mendigos de vendas.

    • Sempre que preciso me cadastrar pra qualquer coisa, eu antes checo a política de cancelamento, pesquiso como excluir a conta (e geralmente encontro posts de gente reclamando que não consegue excluir). O mundo é dos mãos de vaca e dos paranoicos.

  • Além do design malicioso, tem o marketing de retrovisor.
    Ex.: Você entra no site do Magazine Luiza para ver um eletrodoméstico, o Google Ads enche de anúncios principalmente do Magazine Luiza, pra você clicar e voltar a loja… E o Google sair lucrando com um cliente que pode ter ido inicialmente para a página do Magazine Luiza sem o anúncio do Google. É uma forma desonesta das big techs tirarem dinheiro de empresas de varejo tradicionais.

    • Na verdade, a empresa sabe disso e paga para te infernizar onde quer que você vá. Uma treta grande no mundo da publicidade é saber se os cliques que os anúncios recebem são de verdade ou não: o dono do site pode entrar como “parceiro” do Google e pegar uma porcentagem dos cliques (pagos pelo anunciante). Aí, já viu, né? É fazenda de clique comendo solta para inflar o número e gerar mais dinheiro para o dono do site. O Google se faz de sonso, porque ele ganha muito mais ainda…

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