Vestígios.

Vamos imaginar que por algum motivo bizarro, todos os seres humanos do planeta desapareçam ao mesmo tempo. Num passe de mágica, a Terra seria herdada por todos os outros seres vivos que não o homo sapiens sapiens. Por quanto tempo algum observador externo poderia reconhecer que estivemos aqui um dia?

O ser humano com certeza tem um impacto enorme sobre o mundo. Nossa relação com a natureza é de controle e modificação sempre que possível. De pequenas populações praticamente indiferenciáveis dos outros símios, nos tornamos bilhões, acinzentando as imagens aéreas com nosso concreto e iluminando a noite com o poder da eletricidade.

Porém, o planeta Terra ainda é muito grande. Mesmo no século XXI, existem milhares de quilômetros quadrados de áreas relativamente intocadas. Temos nossas cidades e plantações, mas boa parte do mundo é floresta, deserto e oceano. Lugares onde alguém ainda pode se perder sem chance de encontrar outro ser humano por dias, quiçá meses ou anos.

E isso é importante nessa análise: somos uma espécie poderosa e extremamente invasiva, mas a escala da realidade deveria ensinar humildade a cada um de nós. O planeta é tão grande que a maioria absoluta da sua massa nunca foi tocada, ou sequer vista por um ser humano. Vivemos na casca resfriada de incontáveis toneladas de rochas e metais derretidos, e quando nos aventuramos a espetá-la em busca de recursos, mal arranhamos a superfície.

Já deveria ser óbvio para todos nós, mas não custa repetir: se a humanidade acabar, o planeta continua. Mesmo se decidirmos nos aniquilar com todo arsenal nuclear ao nosso dispor, dado tempo suficiente, a vida dá seu jeito de continuar. Porque esse também é um jogo baseado em tempo: o nosso turno de dominância pode ser o mais impressionante de uma espécie até hoje, mas mal registra como algo notável na escala geológica das coisas. A vida dá passos de milhões de anos, nós é que estamos apressados.

Se o ser humano desaparece, o planeta continuaria como se nada. Todo o espaço que teimamos tomar da natureza ela pega de volta, mais cedo ou mais tarde. Em poucas décadas, a vegetação começaria a ocupar o espaço que usávamos para nossas tarefas diárias. A água, solvente natural, começaria a se infiltrar em todas as construções, e pouco a pouco, sem nenhuma pressa, dissolver muros, telhados, ruas e estradas.

Em Chernobyl, que fora evacuada em 1986, a natureza já ocupa muito do espaço da cidade que havia ali. Não só as plantas como animais selvagens, insetos, bactérias, fungos… todos adaptados à radiação que consideramos perigosa demais. Pode ter sido difícil no começo, mas a natureza não tem pressa. 2022 e já há um ecossistema no lugar.

Em menos de 50 anos, a maior parte das cidades humanas já estaria infiltrada pela fauna e flora locais. Talvez em cidades menores já fosse complicado de perceber que havia uma civilização ali olhando do alto. Não costumamos pensar na quantidade de manutenção que precisamos fazer para manter as coisas funcionando. Em grandes cidades, o sistema de esgoto começaria a entupir, criando novos rios e erodindo o solo que tantos humanos pisaram, certos de sua estabilidade.

A nossa poluição desapareceria, salvo por alguns acidentes em grandes indústrias e usinas de energia causados pelo abandono, mas mesmo esses acidentes durariam horas, dias no máximo. Em menos de um século, bateríamos todas as metas contra o aquecimento global, com louvor. A regeneração começaria, com mais e mais gás carbônico absorvido pelas plantas e algas, agora livres para se multiplicar.

Digamos que em um século, mesmo civilizações alienígenas com tecnologia comparável à nossa atual já não conseguiriam saber se a Terra tinha alguma forma de vida inteligente. E dê mais alguns séculos, até mesmo se os aliens tivessem telescópios poderosos ao ponto de enxergar o planeta como as fotos de satélite que temos agora, poderiam deixar passar batido nossa presença anterior.

Mas, é claro, existem coisas que duram vários milênios, tanto existem que continuamos achando rastros de nossos antepassados até hoje. Monumentos criados há milhares de anos são atrações turísticas, como as pirâmides do Egito. Eu apostaria que cinco mil anos depois do desaparecimento dos seres humanos, elas ainda estariam por lá. Talvez um pouco mais cobertas de areia, mas claramente visíveis por qualquer visitante curioso.

E nesse meio tempo também, qualquer coisa que tivermos colocado em órbita já vai ter caído de volta no planeta, consumida pelo fogo da queda ou transformada em cacos minúsculos pelo impacto. Satélites precisam de manobras constantes para se manter em órbita. Está tudo sempre caindo, mesmo que caindo devagar.

Mas como eu disse antes, tempo não é problema para o planeta. Temos mais milhões de anos para continuar nessa jornada. Tempo suficiente para até mesmo nossas construções mais resilientes serem erodidas pela água, pelo vento ou mesmo consumidas pelo planeta: vivemos sobre placas tectônicas, boiando sobre rocha derretida. Essas placas descem para ser derretidas e sobem para se solidificar do outro lado.

A probabilidade é que não importa onde você esteja nesse momento, o chão abaixo dos seus pés vai acabar sendo empurrado para baixo da crosta, sendo derretido e reciclado em ciclos de milhões de anos. O curioso é que por pura probabilidade, algumas áreas podem escapar desse destino: no Canadá e na Austrália existem pedaços de rocha que parecem estar fixos na superfície há bilhões de anos. Talvez alguma coisa feita nessas rochas ainda seja reconhecível daqui a algumas eras geológicas. Mas dado o nosso conhecimento atual do movimento dessas placas tectônicas, quase tudo o que construímos vai acabar derretido debaixo do solo eventualmente.

Se uma nave de arqueólogos vindos de outro planeta pousar aqui daqui a cinquenta milhões de anos, não vai ser muito fácil saber que uma espécie de macacos pelados pensou de forma abstrata naquele lugar. A natureza vai ter consumido e reciclado quase tudo o que fizemos, com exceção de algumas substâncias mais teimosas como o plástico. Mesmo assim, você precisa saber o que está procurando. Será que aliens que nunca tiveram petróleo no seu planeta saberiam reconhecer que microplásticos só podem ser feitos por seres vivos inteligentes? E mesmo o plástico eventualmente é degradado de volta a formas mais naturais. A concentração não seria tão imensa como é atualmente.

Eu até poderia começar a considerar o que veriam na Terra em centenas de milhões de anos ou mesmo bilhões, mas não podemos nos esquecer que o Sol também vai ver o tempo passar. E quanto mais velha se torna nossa estrela, mais quente e perigosa também. Em mais ou menos meio bilhão de anos a partir de hoje, a tendência é que o Sol esteja tão quente ao ponto de ferver os nossos oceanos e tornar qualquer forma de vida impossível na Terra. Nossa atmosfera seria um pouco mais teimosa, mas o “vento solar” se tornaria cada vez mais poderoso, ao ponto de vencer até mesmo a resistência do campo magnético terrestre, que a essa altura do campeonato vai estar mais fraco, com o resfriamento do núcleo metálico do planeta.

Muito se fala sobre o Sol engolir a Terra daqui a 5 bilhões de anos, mas a verdade é que ele vai acabar com qualquer chance de vida (não inteligente) muito antes disso. As coisas não acontecem do nada, é um longo processo. Quando o Sol estiver do tamanho para consumir Vênus, por exemplo, o planeta Terra já vai estar pra lá de bem passado. A nossa janela de sobrevivência “natural” na Terra se fecha em algumas centenas de milhões de anos.

Se outra forma de vida inteligente só encontrar o planeta 1 bilhão de anos depois do sumiço dos seres humanos, vai encontrar algo parecido com Marte. E só se forem muito teimosos possam achar evidências de vida no planeta. Vida inteligente então? Virtualmente impossível. A natureza do universo é de transformação, o que fica parado acaba sendo reciclado.

Agora, se os aliens resolverem dar um pulinho em Marte ou mesmo na Lua, aí sim podem acabar encontrando provas irrefutáveis de vida inteligente. Quem sabe até uma bandeira branca colocada pelos americanos em 1969. As cores vão ter sumido, mas como não te muita coisa para deteriorar o que deixamos em outras superfícies, é possível que sobrevivam. Mas não é certeza absoluta nem disso: um impacto certeiro de um asteroide pode enterrar ou jogar nossos objetos em trajetórias distantes, rumo ao espaço sideral.

E falando nisso, aí sim, lá pela faixa dos cinco bilhões de anos a partir de agora, é bem provável que a Terra seja queimada inteira pelo Sol, que vai crescer de forma absurda, levando a Lua junto, ou que a bagunça das órbitas causadas por essa expansão expulse os restos queimados da nossa casa para o vazio interestelar. E aí fica impossível achar qualquer coisa que tenhamos feito. Mesmo os trambolhos que deixamos em Marte vão acabar derretidos pelo calor absurdo de um Sol do tamanho da órbita da Terra ou expulsos do Sistema Solar junto com o planeta vermelho.

E aí… a chance de encontrarem alguma coisa humana passa a ser um disco dourado com direções para um planeta que não existe mais, a bordo de uma sonda espacial lançada décadas atrás, que vai estar sabe-se lá onde. Se ela der azar de ir na direção de uma estrela, aí… nem isso.

Para dizer que adora esses textos felizes, para dizer que nem sabe se vai estar vivo amanhã, ou mesmo para dizer que nada de valor foi perdido: somir@desfavor.com

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Comments (4)

  • “Do pó viestes e ao pó retornarás”. Isso é bem mais do que uma citação bíblica; é um destino verdadeiramente inescapável de todos nós e de tudo o que construímos. Por mais que tenhamos a ilusão de poder deixar um legado, uma obra, ou qualquer outro rastro de nossa breve passagem por este mundo como forma de atingir uma suposta “eternidade” como indivíduos ou como espécie, no fim das contas, dado tempo suficiente, a tendência é que até o próprio planeta Terra suma. Estamos aqui por nada mais do que uma ínfima fração de tempo – menos que um piscar de olhos na grande escala geral das coisas – e, fatalmente, chegará o momento em que vai parecer que jamais sequer existimos.

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