Lentidão da luz.

Muitas das nossas histórias sobre como imaginamos o futuro passa por alguma forma de homogeneização da humanidade: mesma língua, mesma moeda, mesmo sistema de crenças… alguns fazem isso pelo ângulo utópico, com todos nós muito felizes e harmônicos; outros focam no ângulo distópico, numa sociedade extremamente opressora ou mesmo sem lei. Mas, é isso o que o futuro nos espera?

Muitos já falharam na previsão de como a tecnologia humana avançaria, o que não falta é história do passado onde a partir do ano 2000 já estaríamos todos andando em carros voadores e sendo servidos por mordomos robóticos. Claramente o interesse e as possibilidades reais da humanidade estavam no campo da comunicação. Nem o mais otimista futurólogo do passado previu tamanha capacidade de trocar ideias e informações como temos atualmente.

Então, eu sei que existe um risco considerável em tentar prever para que lado a humanidade vai seguir nas próximas décadas e séculos, mas vou fazer mesmo assim. Tem algo na forma como nossa sociedade está evoluindo atualmente que me faz acreditar que a união não é nosso grande objetivo. O ser humano é um ser social, mas nossas mentes não são grandes o suficiente para lidar com tanta gente assim. Funcionamos melhor com pequenos grupos de pessoas mais ou menos parecidas com a gente.

A humanidade raramente se une em prol de um objetivo, no máximo alguns grupos maiores competem para gerar algum avanço, como por exemplo na época da corrida espacial entre EUA e URSS. E mesmo dentro desses grupos, existem várias subdivisões de grupos menores competindo para chegar no objetivo primeiro. A minha impressão é que essa característica não vai mudar muito no futuro. Tem jeito de ser mais uma limitação do que uma escolha: funcionamos melhor quando conhecemos bem as pessoas com as quais convivemos.

Juntando essa ideia com a de que nosso futuro está na colonização espacial, afinal, a característica definidora da humanidade moderna é a expansão territorial e a ocupação de novos espaços produtivos, eu consigo prever que mesmo sem uma grande união do povo da Terra, mais e mais grupos vão se concentrar em sair do planeta e explorar primeiro o sistema solar, e depois a galáxia.

Tem gente que acha que é impossível, ou que é coisa para daqui a milhares de anos, mas é importante ressaltar que já temos tecnologia para começar a explorar o espaço, mas ainda não chegou num ponto onde o custo faz sentido para a maioria absoluta dos países e empresas. O conhecimento vai se acumulando, alguns testes vão sendo feitos, e planos com certeza não faltam. Pra começarmos hoje, só se a humanidade fosse forçada a pensar nisso e só nisso.

Mas eventualmente, as tecnologias vão baratear e vai começar a ter incentivo econômico para buscar os recursos fora do planeta. Daí pra frente, eu prevejo que a humanidade vai começar uma nova fase de divisões. Explico: uma boa parte da variedade entre povos que temos hoje em dia é baseada justamente na capacidade de alguns grupos saírem de onde nasceram e começarem novos assentamentos permanentes. Países como o Brasil e tantas outras colônias só existem porque tinha gente disposta a sair de onde estava para montar um negócio fora de casa, ou mesmo porque não se sentia bem na sua cidade natal.

Agora, imagine isso com o espaço praticamente interminável disponível num futuro onde pegar uma nave e se bandear para outro planeta ou mesmo um asteroide for possível. Pioneiros vão montar estruturas para trazer mais gente, e mais gente vai seguir. Da mesma forma como o cidadão médio não faz a menor ideia de como funciona um celular hoje em dia, vai continuar não sabendo como funciona viagem espacial, nem mesmo os habitats onde vão viver, mas vão fazer uso disso constantemente.

E aí, países começam a ficar um pouco menos relevantes. Mesmo que ainda existam raízes terrestres, bastam algumas gerações para alguém se sentir mais marciano que terrestre. Mais asteroide 6711-C do que latino… subdivisões são inevitáveis, e quanto mais a humanidade expande seu território, menor a chance de mantermos qualquer tipo de unidade coerente.

Imaginemos uma colônia próxima, em Marte mesmo: um sinal na velocidade da luz chega lá em 13 minutos. Salvo alguma quebra nas leis da física, não vai ter conversa em tempo real entre alguém daqui e alguém de lá. 13 minutos parecem toleráveis, mas quando você comparar ser amigo de alguém na Terra com quem cada troca de mensagens demora meia hora e ser amigo de alguém em Marte que fala com você em tempo real… tem diferença, né? A tendência é que os locais sejam mais próximos, inclusive no aspecto humano.

Essa é a demora da velocidade da luz. Quanto mais longe formos, maior ela vai ser. Se eventualmente colonizarmos alguma região na estrela mais próxima de nós, Proxima Centauri, estamos falando de uma mensagem de WhatsApp, que se chegar, chega quatro anos depois do envio. E sem nenhum tipo de viagem mais rápida que a luz, o que eu estou ignorando por motivos de aparente impossibilidade, é quase impossível que um ser humano da Terra que viva em média 100 anos jamais conheça ao vivo qualquer pessoa da estrela mais próxima. Só a viagem já levaria uma geração de pessoas, só os filhos dos viajantes chegariam lá.

Dá pra esperar muita coerência entre dois povos divididos por quase um século de viagem e quatro anos entre uma mensagem e outra? A Terra vai ter algum poder real sobre eles? Se fizerem algo errado e precisarem ser punidos pelos terrestres, a ordem de prisão demora 8 anos pra chegar do fato e o filho do policial que sair daqui que vai cumprir a ordem. E será que vale a pena avisar com antecedência? Em uns 80 anos que demoraria para chegar alguém da Terra lá, a sociedade pode ter mudado inteira. Ou mesmo se preparado muito bem para explodir a nave da polícia…

Quando a demora da luz começa a tomar conta das relações, estamos falando de divisões entre povos tão grandes que um não pode controlar o outro. Não se pode confiar em quem você não pode enxergar em tempo real. Os EUA têm satélites vigiando os russos e os chineses, russos e chineses vice-versa. Eles têm noção do que está acontecendo e conseguem reagir de acordo com o que enxergam. Em distâncias espaciais, não só você está completamente cego sobre as ações de um possível adversário, como as opções de guerra de civilizações nesse estágio tecnológico são assustadoras. Dá pra travar uma guerra de estilhaços metálicos acelerados a velocidades de 10, 20% da velocidade da luz: invisíveis para basicamente qualquer tecnologia conhecida e com potencial de destruição maior que o arsenal nuclear humano atual.

Não só seria uma humanidade desconectada entre seus grupos colonizatórios, como seria uma guerra fria com quase todo mundo certo de que um maluco pode explodir tudo o que tem sem quase nenhum aviso. Como viajar fisicamente entre colônias poderia ser efetivamente impossível com a duração média da vida humana, e mesmo que exista uma tecnologia de manter pessoas suspensas/congeladas, isso ainda quer dizer que você pode sair de casa mirando num planeta que está na Idade Média e só chegar lá quando tiverem internet de alta velocidade em todos os cantos.

O tempo começa a nos separar, e a culpa é da velocidade da luz. Não é à toa que quase todo mundo de ficção científica famoso tem sistema de viagem mais rápidas que a luz: tire isso e fica tudo muito incompreensível para um cidadão médio. Agora, pra ser realista, é importante considerar que o limite de velocidade do universo pode ser inescapável mesmo. Isso não evita que a humanidade colonize toda a galáxia em alguns milhões de anos, mas evita que sejamos uma unidade coerente.

O morador de uma colônia numa estrela a mil anos luz de distância pode estar numa era completamente diferente de um morador da Terra. Quando a nave dos ancestrais dele saiu daqui, estávamos dez mil anos atrás em tecnologia do que estamos agora. Quanto mais longe da base terrena, maior a chance dos povos evoluírem de formas completamente diferentes, basta algumas pequenas variações nos humores dos habitantes originais para tudo sair diferente de outras colônias.

Mesmo que não encontremos outras espécies inteligentes na nossa galáxia, vamos ter alienígenas sim: pessoas que se dividiram há mais tempo que nossa civilização existe agora. E quanto mais subdivisões, maior a chance de encontramos colônias cada vez mais insanas para nossos padrões. Alguém que nasceu a cem anos luz de distância de você, por mais que venha de um DNA idêntico, não vai ser parecido quando seus descendentes se encontrarem. Eu digo até fisicamente: viver no espaço é o tipo da coisa que pode selecionar naturalmente algumas características físicas, e sabe-se lá que tipo de modificação física seremos capazes de fazer em alguns séculos?

O curioso é que eu sempre falo que ir para o espaço é a única forma de manter a humanidade viva, mas o espaço é tão grande e tudo demora tanto que a influência da humanidade original vai estar mais ou menos próxima do sistema solar, e ir desaparecendo com a distância. O futuro da humanidade é ser alien. As diferenças que estamos vendo hoje apenas com a internet são o começo. E não estou tocando o terror: o problema é que precisamos ficar juntos com essas diferenças, a tendência é que vamos nos separando para criar novas humanidades, a partir de qualquer ideia estúpida que um grupo grande o suficiente tiver.

Um futuro espacial com viagens abaixo da velocidade da luz é das coisas mais impossíveis de prever: é possível que numa faixa de uns 20 anos luz pra frente de distância, os povos sequer se interessem em falar sobre a Terra. Se… lembrarem dela. Eu nasci no tempo errado.

Para dizer que vai entrar no freezer para esperar por esse futuro, para dizer que vai ter mundo bolsonarista e lulista, ou mesmo para dizer que o futuro é a gente sufocando devagar aqui mesmo: somir@desfavor.com

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Comments (6)

  • Enredo fácil e muito versátil para uma ficção contemplativa acerca do futuro. Por exemplo:

    Fase 1: criar indivíduos específicos para exploração e colonização espacial.
    Fase 2: lidar com recursos extremamente escassos e/ou revolta dos seres “evoluídos” ainda na Terra.
    Fase 3: colonizar um exoplaneta próximo e repetir os mesmos passos de autodestruição da humanidade.
    Fase 4: Voltar pra casa, destruir seus ancestrais ou ser destruído por eles. Não duvidaria de um estado precário ou totalitário da Terra (ou de qualquer outro “lar”).

    Vale a pena pensar a respeito das possibilidades (além da que mencionei acima). Quem sabe não surjam histórias que inspirem progressos…

    • Imagina ser uma pessoa dessa era: você pega uma condução para visitar uma democracia liberal em outra estrela e quando chega, é uma teocracia pós-apocalíptica. E o lugar de onde você veio já mudou completamente a cultura, ninguém que você conhece está mais vivo…

  • (não precisa aprovar pra não atrapalhar a discussão)
    Não se usa “há” pra distâncias, o certo é “a”. A 10 quilômetros, a 6 metros daqui…

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