O cérebro de Teseu – Parte 2

Semana passada eu falei sobre um paradoxo filosófico antigo, o Navio de Teseu: se você trocar todas as partes de uma coisa, uma por vez, a coisa ainda é a original ou se tornou algo novo? Hoje vamos seguir em frente com as implicações dessa ideia na nossa mente. Com a quantidade absurda de informação que consumimos atualmente, será que ainda somos… nós?

Se você está achando tudo muito maluco, acalme-se: nem eu tenho certeza se essa ideia é razoável ainda. Apresentarei meus argumentos e talvez cheguemos a alguma conclusão. Talvez.

Seres que se comunicam não são ilhas mentais. Sempre estamos trocando informação com nossos similares, modificando nossas ideias de acordo com o que absorvemos do ambiente. E isso é bem simples de exemplificar: desde crianças, usamos o outro como espelho. Se vemos alguém encostar no fogo e expressar dor, tem uma parte do nosso cérebro que nos coloca no lugar daquele alguém e nos diz que vamos sentir dor também se fizermos a mesma coisa.

Muito do nosso aprendizado básico vem de relações muito próximas com outras pessoas. Você está vendo a reação da pessoa, você tem a resposta imediata para suas ações e a percepção igualmente imediata de como ela reage quando faz alguma coisa. Não é à toa que é sempre uma péssima ideia deixar uma criança muito sozinha. Somos seres sociais que se entendem no universo pelas relações que temos com outras pessoas.

Quando eu era criança e até mesmo adolescente, eu tive muita experiência com reações de outras pessoas. Quando eu fazia algo bacana para um amigo, parente ou pretendente, eu via a pessoa sorrindo. Quando eu era um merdinha com outra pessoa, eu podia ver a expressão dela ficando ruim. Tristeza, raiva ou mesmo decepção… eu via aquilo. E meus neurônios espelho – a parte do cérebro responsável por te colocar na pele do outro – disparavam de acordo.

Mas algo mudou nesse meio tempo, um bom tempo, aliás. Aqui eu poderia cair na armadilha de criticar as “crianças de hoje”, mas eu vou ser mais esperto que isso: eu mudei também nesse meio tempo. Com tantas relações virtuais se entrepondo na minha vida, meus neurônios espelho estão um pouco… confusos. Isso acontece mais comigo do que com o cidadão médio da minha idade porque eu trabalho basicamente pela internet, por isso eu acredito que tenha um ponto de vista mais compreensivo dessas novas gerações e sua falta de olho no olho.

Quando você percebe, passou dias seguidos sem interações significativas com pessoas que não conhece muito bem. Sim, tem algumas pessoas próximas que me fazem ter noção de contato humano real, mas é um grupo limitado de gente que já está na minha vida faz tempo. Não são pessoas que podem te surpreender tanto assim. Os “músculos da empatia” acabam ficando flácidos, trabalhando relaxados com gente que você entende como pensa, faz tempo.

É bem possível que você lendo o texto tenha mais contato humano direto com gente “mais distante” todos os dias, e por isso não entenda muito bem sobre o que eu estou falando, por isso que eu achei importante pegar esse longo desvio do tema central. Os seres humanos mais novos – que só viveram na era da internet – provavelmente têm a mesma noção de mundo que eu tenho agora: uma divisão forte entre pessoas muito próximas e os “seres da internet”.

O meio termo que abarcava conhecidos, colegas de trabalho, vizinhos e coisas do tipo vai se esvaziando. De repente, o mundo parece dividido entre pessoas que você entende bem e “fantasmas na máquina”. Pessoas que só existem quando você as observa por uma tela. Pessoas que não ativam seus neurônios espelho, porque você dificilmente consegue ver o que elas estão sentindo no momento que se comunicam.

E mais, são pessoas que não reagem instantaneamente ao que você diz ou faz. Uma coisa é ofender alguém olhando a pessoa reagir em tempo real com sua expressão corporal, outra coisa é dar um tapa virtual desconectado do tempo. Não vai vir um punho pela sua tela para te punir por ser uma pessoa ruim. E outra: você fala o que quiser e pode ir embora. Seu cérebro não tem mais a noção clara de ação e reação. As coisas se perdem no tempo.

Eu dei o exemplo de fazer algo ruim como ofender alguém por causa de uma postagem de rede social, mas isso também vale para as coisas boas: a sensação de elogiar alguém e ver a pessoa se iluminando na hora é muito boa. A felicidade dela reflete em você ao vivo. Mas quando tem uma demora nesse processo, quando você não consegue ver o que o seu cérebro foi projetado para ver… até isso perde a graça.

Existe uma lógica de recompensas cerebrais por ser uma pessoa querida no seu grupo social. Quando você projeta coisas boas, elas refletem de volta em você. Não é papo místico, é química. Formar boas relações com as pessoas ao seu redor é um diferencial evolutivo poderoso e somos descendentes de quem tinha maior inclinação a fazer isso. Seus neurônios não precisam saber o que é bom ou ruim em linhas gerais, eles foram moldados por milhares de anos para recompensar alguns comportamentos.

A questão aqui é que empatia foi projetada para trabalhar com reações físicas em tempo real. Os neurônios continuam não sabendo o que estão fazendo, mas a cada geração da era digital, eles têm menos estímulos das fontes tradicionais. A tela é maravilhosa pelas possibilidades que apresenta, mas coloca esse problema no caminho. A redução da empatia direta com outros seres humanos.

Não é à toa que muito do conteúdo da rede social está mudando para vídeos, mesmo que curtos: são doses de reações humanas de “estranhos” para uma população cada vez mais carente delas. Ainda estamos buscando os mesmos sorrisos que nossos antepassados buscavam, mas a tela entrou no meio do caminho e eu duvido que ela vá embora num futuro próximo.

Aqui que as coisas começam a se conectar no texto: o Navio de Teseu ainda é o Navio de Teseu se todas as peças forem trocadas aos poucos? O ser humano ainda é humano se todas suas interações forem virtualizadas aos poucos?

Quando você tem interações ao vivo com pessoas reais, o que sai da sua mente bate nela e volta para você. Volta com uma resposta, uma reação, seja lá o que for: é ação e reação imediata. O cérebro é planejado para manter uma memória de curto prazo para suas interações com o ambiente: causa e consequência estão claras nesse momento. A consequência está no mesmo momento da causa.

Agora, quando a interação acontece desconectada desse imediatismo, ela sai de você e “some” na tela. A pessoa real é um espelho, a pessoa virtual só absorve aquela informação. Se ela quiser devolver alguma coisa, por mais rápido que ela aja, é uma outra situação. O contato em tempo real com imagem é um espelho, o contato virtual com um ser humano virtual não reflete nada: um sinal parte, é absorvido, fim da interação. A resposta, se vier, é uma nova interação.

O cérebro sabe resolver essa situação, afinal, as pessoas trocavam cartas e mandavam recados muitos e muitos séculos antes do computador e da internet; mas uma coisa é viver uma vida de relações espelhadas em tempo real com pedaços de relações desconectadas, outra coisa completamente diferente é viver uma vida de relações desconectadas com relações espelhadas eventuais.

No cenário tradicional das relações ao vivo com pessoas e informação, você monta uma realidade baseada em interações. Nesse novo cenário de relações virtuais, seu senso de realidade é baseado no material que vem de fora da sua mente. Cada dia que passa, seu cérebro é ocupado com mais e mais conteúdo que não fez o caminho clássico de refletir em outras pessoas.

Também não é à toa que vivemos na era das Fake News. O boato não tem um rosto, ele é informação desconectada de outros humanos que você precisa lidar sozinho(a). Ele entra na sua cabeça sem ver a reação de outras pessoas. E sem essa reflexão (trocadilho intencional), como saber o que essa informação significa? Você tem uma informação que veio totalmente de fora da sua mente, sem qualquer âncora nas suas relações pessoais e pior: desconectada de tempo.

Com o passar das décadas e gerações, com pessoas cada vez mais acostumadas a consumir conteúdo e se informar sem ter os reflexos de outras pessoas reais ao seu redor… será que dá pra confiar que tem um ser humano único ali?

Se eu conseguisse trocar todas suas ideias pelas minhas, você seria você ou você seria… eu? As minhas ideias têm contexto dentro da vida que eu vivi, das pessoas que eu conheço, das relações que formei. Hoje em dia eu imagino que não dê para te transformar numa cópia minha apenas com minhas ideias, porque você tem seu contexto, sua vida, suas relações. Elas simplesmente não encaixariam na sua visão de mundo. Podemos até concordar em muitas coisas, mas nem sempre pelos mesmos motivos ou com a mesma intensidade.

Mas e com o passar dos anos e pessoas cada vez menos acostumadas com relações baseadas em neurônios espelho? Não acho que tenhamos ferramentas para lidar com essa substituição aos poucos das peças da nossa visão de realidade. A informação sempre vem de fora, a informação é cada vez menos tratada de acordo com as relações que temos com outras pessoas e cada vez mais comparada com informações internas da mente. Coisas que a pessoa pode nunca ter verbalizado antes.

De novo, não me parece coincidência que estejamos vendo pessoas tão radicalizadas. Quando suas ideias refletem nos outros, elas vão “perdendo as pontas”, ficando menos exageradas e agressivas. O outro reagindo em tempo real ao que você pensa liga milhares de processos instintivos de correção de curso. Uga Buga que deixa todo mundo irritado é Uga Buga que é expulso da tribo. Uga Buga deve se esforçar para achar meios termos.

Mas e se vem tudo de fora sem esse processo? E se uma informação chega em cima da outra que não foi testada num ambiente social? Isso começa a acumular… e de repente, o Navio de Teseu está formado apenas por peças novas. A sua mente é refeita de acordo com a soma das informações inconsequentes que viajam livres pela internet.

E depois de um tempo, como saber se você pensa o que pensa ou se pensa o que outros pensam? Como você faz se não tem a jornada de adaptar sua visão de mundo ao… mundo? Você ainda é você? Ou você é um substituto realista repetindo as opiniões da bolha na qual se enfiou? Dá para trocar as informações da sua cabeça pelas informações da internet mantendo a sua individualidade?

Porque a natureza não fica esperando, ela age: se você está faminto por relações humanas e muitas delas vem nesse formato desconexo, o cérebro vai se adaptar para te colocar numa bolha e não ficar sozinho. Novamente: o neurônio não sabe se está certo ou se está errado, o neurônio é incentivado a percorrer os caminhos que geram mais prazer. Se abrir mão da sua individualidade para virar um papagaio de opiniões da internet é a forma mais prática de conseguir aquelas sensações agradáveis de pertencimento, pode ter certeza de que o processo vai acontecer.

O meio termo que servia para o Uga Buga (no caso, quem nasceu no século passado) não está mais disponível no mercado das relações modernas. Elas estão primeiro numa tela, sem reflexão. E aí, ou você se adapta ao que vem da tela para simular pertencimento, ou você começa a ficar sem ter com quem conversar. E tem outra “vantagem”: sem ver o reflexo do que você pensa, diz e faz no outro, você não precisa se enxergar.

E pouco a pouco, parte a parte, neurônio espelho a neurônio espelho, será que você é o mesmo navio das lendas do passado ou uma reconstrução muito parecida?

Para dizer que pergunta você faz sozinho(a), para dizer quase me levou a sério, ou mesmo para dizer que Uga Buga não liga: somir@desfavor.com

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Comments (10)

  • Agora lendo os comentários percebi q falam do decaimento da Net (bem, mas como ela é formada por pessoas então n deixa de ser um reflexo do comportamento humano… é q pelo fato de ter bem pouco controle aí vira baderna pois se vc n pode ser punido ou atingido pode tentar abusar… o pior de tdo msmo é q na realidade tá ficando assim tbm, e nem por causa da net, isto começou com o comodismo e assim as pessoas vão ficando mais preguiçosas e deixam de querer fazer até as regras de comportamento social… e quase ngm faz diferente, a tendencia é voltarmos a selvageria… e isto n está restrito só ao menos desenvolvidos, acontece q neles como a desorganização costuma ser maior a degringolação é mais rapida e os efeitos mais severos, diferença social cria mto sensação de injustiça e pra violencia basta é um pulo)… gosto de observar e lembro q até ali por inicio 2018 a net ainda era confiavel, nunca tinha me deparado com fake… ai veio estes apps wats, snap e tdo era trocar nuds, realmente ai a net se perdeu!

  • Gostei mto do site, até fico meio triste de ñ ter encontrado ele antes… e apesar de ler algum conteúdo já me vem a curiosidade de saber sobre como surge a ideia dos assuntos… qntos participam da criação de conteúdo e o q os leva a fazer isto?

    • O Desfavor nasceu em 2008 e tem postagens diárias divididas em colunas (algumas técnicas, outras opinativas). Temos colunas fixas (segunda, sábado e domingo) e temas livres nos demais dias. Somos apenas dois: Somir e eu. Fazemos tudo sozinhos.

  • “Agora, quando a interação acontece desconectada desse imediatismo, ela sai de você e “some” na tela.”

    Nossa mas o virtual é apenas uma extensão da conexão real neste caso, pois equivale a falar no telefone, n é só pq é gravado… entao assim qlqr video ou gravação equivaleria ao q está se referindo… mas acontece q vai depender do objetivo do autor, e apesar da teoria da atenção ser mto apontada acho q tlvz possa n ser bem isto tbm, pq se fosse este o caso quase n teria qm n fizesse pois a qntidade de pessoas (msmo numa população tão grande) ñ carentes é diminuta (e atenção nd mais é q um dos tipos de carencia)… o q eu vejo mto é tbm mta gente usando isto com objetivo de ganhar a vida…

    “E depois de um tempo, como saber se você pensa o que pensa ou se pensa o que outros pensam?”

    Pra isto tem algo chamado memória… mas dificilmente acabamos pensando coisas mto diferentes de nós, a msma coisa agressividade, existem niveis e predisposição a eles… então a primeiro a se fazer é tentar se observar e analisar como se é, claro q assim como existem niveis pra algumas coisas acaba existindo pra outras como: percepção, racionalidade, paciencia, raciocinio (o curioso é q tdo isto pode ser influenciado pelas nossas definições e por isto uma pessoa incrivelmente racional possa ser tão limitada em alguns conceitos)!

    • Como por exemplo Einstein, q sucumbiu a religião e era contra a teoria quantica… alias é mto curioso um cientista ser tão ligado à religião… até entendo o pq de se acreditar, só o q ñ me entra é a pessoa ser racional e n ter a capacidade de se desvencilhar disto… acredito q é algo de sentir de cada um, eenqnto ñ mudar nisto ñ faz sentido algum qlqr outro a pessoa!

  • Ainda é a msma só q feita com outras partes… num objeto ñ dá pra notar mta diferença pq ele n tem uma personalidade dinâmica, já num organismo vivo mesmo só se pode trocar certas partes… alem disto a gente depende de ciclos então acabamos usando atomos em comum com nossos antepassados!

  • Ninguém com mais de dois neurônios é channer neonazi, ancap, hippie, radfem, MGTOW, etc. fora da internet, quando precisa ter vida fora de casa. Até crente fanático abre suas concessões no x1 da vida “real”.

    E eu não acredito que seja questão de empatia não, em nenhum momento. Brasileiro bestializado só funciona para procriar e preservar sua vida. Então é mais medo de rejeição e retaliação (levar porrada ou ser desprezado em tempo real e ficar sem saber onde enfiar a cara).

    Mas claro, sempre tem o retardado com menos de dois neurônios, que considero uma minoria.

  • Eu acredito cada vez mais na “teoria da internet morta”, muita coisa aparentemente orgânica tem um monte de bots por trás e a tendência é aumentar. Lá em 2010 já tinha gente comprando seguidores pro Twitter e Youtube, mas hoje é algo além de pagar pra fakes de asiáticos curtirem seus posts.

    Já pararam pra pensar em como as pessoas ficam famosas hoje em dia? Ninguém procura o conteúdo desse tipo de criador, um dia eles simplesmente começam a aparecer na tela de todo mundo e pronto, 1 trilhão de views e seguidores. Não é talento, carisma, aparência, nepotismo. É literalmente uma loteria do algoritmo. Em algum lugar tem um computador fazendo cálculos e decidindo que tipo de conteúdo vamos consumir. Que pessoa vai ficar estampada em todas as telas, que músicas vão tocar sem parar, qual zé ninguém vai ser o próximo “influenciador”. O nosso entretenimento é decidido por linhas de código, nossa cultura está sendo moldada por máquinas.

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