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O incidente de Ohio.

O incidente de Ohio.

| Somir | | 4 comentários em O incidente de Ohio.

No dia 3 de fevereiro, um trem carregando substâncias químicas inflamáveis descarrilou na cidade de East Palestine, no estado de Ohio, nos EUA. Dos 150 vagões do trem, 38 saíram dos trilhos e começaram a pegar fogo. Uma gigantesca nuvem negra de fumaça se formou, forçando a evacuação da população numa área de uns quatro quilômetros. No dia 8, as autoridades permitiram a volta das pessoas às suas casas. Mas ao contrário da fumaça tóxica, a atenção sobre o tema não diminuiu com o passar do tempo… será que foi tão grave assim?

Não. Mas nem de longe.

Teve gente dizendo que era comparável com o acidente de Chernobyl, teve gente dizendo que foi o pior acidente ambiental da história dos EUA. Teve até gente chorando achando que a “nuvem assassina” chegaria no Brasil. Então… não, não é nem uma fração do drama que estão fazendo. Como a gente aqui está pouco se lixando para cliques, podemos tratar o tema com a gravidade real, mesmo que ela seja meio… chata.

Vamos lá: não se pode negar que trens carregando substâncias como as que o trem americano carregava não são perigosos. Eles são. Esses produtos químicos são levados em tanques pressurizados, então qualquer pancada mais séria pode causar um vazamento violento, inclusive com alta probabilidade de explosão. Some-se a isso o fato de muitas dessas substâncias serem altamente inflamáveis, um descarrilamento tende a terminar em uma bola de fogo altamente tóxica.

O que aconteceu em East Palestine foi um perigo. Assim que os tanques desabaram, alguns começaram a vazar e pegar fogo. A foto da nuvem negra é resultado dessa queima inicial, descontrolada. E como estamos falando de um vagão de trem, é uma quantidade enorme das substâncias. O fogo não apaga rápido, muitas vezes reage com água de formas perigosas, tornando muito difícil apagar o incêndio. Quando isso acontece em indústrias com tanques pressurizados, não é incomum esperar o fogo acabar sozinho, porque intervir só piora a situação.

O time que veio lidar com a crise tomou a decisão de fazer uma queima controlada das substâncias, para acabar logo com o combustível do incêndio e diminuir a chance dele chegar em outros vagões (igualmente pressurizados). Nuvem de fumaça preta é ruim, mas tanque pressurizado explodindo é ainda pior: não só espalha muito mais o material tóxico, como ainda envia estilhaços de metal afiado para tudo quanto é lado.

Com o fogo controlado, as equipes já estavam monitorando a qualidade do ar, para descobrir quanto daquelas substâncias tóxicas estavam na região. Cinco dias depois do acidente, os números estavam baixos o suficiente para liberar o retorno da população às suas casas. Outra preocupação era a contaminação da água, não só a dos rios próximos quanto do lençol freático, porque houve vazamento de líquidos que entraram no solo.

O método de trabalho foi identificar quais eram as estações de tratamento no caminho das águas locais e instalar sistemas de filtragem em todas elas para pegar exatamente os produtos químicos vazados. A contaminação das águas subterrâneas não está bem definida ainda, talvez precisem de algumas regras mais duras sobre poços artesianos por alguns anos, mas como ainda vamos ver, temos muita desinformação e exagero sobre os materiais que vazaram.

Estou tentando passar o máximo de informação antes de entrar na parte de opinião, mas aqui é importante estabelecer uma coisa: por mais que os americanos tenham muitos problemas, recursos para fazer ações de contenção de danos como essa não é um deles. Não precisa nem pensar se o povo de lá é melhor ou pior, no final do dia os sistemas de proteção deles tem mais funcionários, equipamentos e treinamento que a maioria dos outros lugares desse mundo. Se precisa de vinte especialistas, eles têm, se precisa de uma máquina caríssima, eles têm. Não fica muito melhor do que isso. Americanos tem planos de contenção para virtualmente qualquer desastre que você imagina, e um trem vazando produtos perigosos é uma das coisas mais básicas para se ter um plano de contenção. Trens e tanques pressurizados não são lá uma tecnologia muito nova, não?

Digo isso porque existem protocolos muito bem definidos sobre o que fazer, e até segunda ordem, as equipes trabalhando em Ohio estão os seguindo sem inventar nada. Repito: não estou dizendo que não existe perigo no vazamentos desses produtos químicos, estou só dizendo que foi muito menos grave e muito mais controlado do que foi dito nas redes sociais por conspiradores contumazes.

Especialmente quando fazem a asneira de comparar com Chernobyl. O acidente nuclear ocorrido na antiga União Soviética na atual Ucrânia em 1986 não só foi absurdamente maior em escala como totalmente diferente no tipo de poluente. Foram alguns vagões de trem pegando fogo, uma queima controlada logo depois… e as substâncias liberadas, por mais que sejam cancerígenas e inflamáveis, são compostos orgânicos voláteis. E isso muda completamente a análise da situação.

Muita gente parece estar achando que o Cloreto de Vinila – o material base do tubo de PVC que estava em grandes quantidades no vazamento – é algo parecido com urânio… não, não tem nada a ver com isso. Ele é um composto orgânico, baseado em carbono, que é muito volátil: ou seja, ele não gosta de ser Cloreto de Vinila, ele quer virar outra coisa o mais rápido possível. Se você não o guardar muito bem ou não fizer nenhum processo químico para torná-lo estável, ele vai se desmontar em questão de horas ou poucos dias para virar outra substância.

Imagine que é o oposto da água, por exemplo. A água não é volátil, ela adora ser água e se deixada quieta ela continua sendo água por bilhões e bilhões de anos. Por isso que a água faz todo o seu ciclo de virar nuvem, chover, entrar no solo e voltar como rio desde que o mundo é mundo. Já o Cloreto de Vinila e basicamente todas as outras substâncias presentes naquele trem não perdem a chance de virar outras coisas quando soltas na natureza.

Não é à toa que os equipamentos usados pelas equipes de contenção não estão mostrando quantidades perigosas de nenhuma substância: não só nem tinha tanta coisa assim (foram alguns vagões de trem), como boa parte das substâncias “mortais” que foram expelidas mal conseguiram escapar do fogo inicial. Não sei o quanto vocês lembram das aulas de química, mas fogo é uma coisa que não costuma deixar molécula sobre molécula… o que escapou do fogo provavelmente já se transformou em outras coisas. Quem estava esperando a nuvem da morte chegar no Brasil vai se decepcionar. Ela provavelmente já tinha mudado antes mesmo das primeiras notícias chegarem aqui.

E precisamos falar sobre a parte do cancerígeno… não existem dúvidas que inalar Cloreto de Vinila é um perigo para o pulmão. A questão é que esse perigo foi descoberto em funcionários de fábricas que lidavam com essa substância todos os dias, cheirando o material por anos. Não tem nada a ver com radiação, que pode te matar rápido em grandes concentrações e que fatalmente vai te pegar se você passar vários dias perto de uma fonte considerável.

É completamente insana a ideia de que tem uma nuvem assassina nos céus dos EUA, não porque eu confio no governo americano, mas porque a ciência simplesmente não bate. Não dá para confiar pela metade: aceita a ciência quando diz que a substância pode causar câncer, mas rejeita quando ela te diz que isso só depois de uma certa concentração por um certo período. Você pode continuar achando que nenhum governo presta e ainda sim não entrar em pânico aleatório empurrado por gente que não sabe nada sobre química, né?

Eu também não sabia os detalhes antes de fazer a pesquisa. Mas aqui pode entrar uma parte bem polêmica do meu texto (não deveria, mas 2023 é um ano de gente louca): a mídia tradicional não pulou nessa notícia. O que se viu, e isso me incomodou bastante, foram matérias curtas repetindo tecniquês sem aprofundar em nada, tentando arrancar uns cliques de curiosos. Quem se enfiou na notícia de verdade foram os conspiradores, que aproveitaram a confusão para empurrar uma quantidade colossal de ignorância goela abaixo do americano médio e o próximo link da centopeia humana da estupidez: o brasileiro médio.

Custava falar sobre as substâncias? Que sim, eram tóxicas, mas que precisava tomar um copo delas para passar mal? Ou que elas não duravam quase nada soltas na natureza? Ou que o risco de câncer era para pessoas que trabalhavam com isso diariamente sem proteção? Precisava deixar rolar a cretinice sobre ser de alguma forma comparável com Chernobyl?

Voltando ao foco: eu desconfiei que não tinha nada demais porque as notícias não vieram com esse tom dramático. E isso acontece por um simples motivo, o jornalista médio (profissional, com reputação) pega o telefone ou o WhatsApp e chama um especialista para saber se tem algo para aproveitar da notícia. Escutaram que não, que era ruim, mas nada que fosse causar um problema gigante. É do interesse da mídia de massa fazer o maior drama possível, se não conseguiram tirar nada desse acidente de trem em Ohio, estava na cara que não tinha mesmo nada para tirar.

Mesmo assim, sempre válido ir procurar umas fontes bacanas de informação e estudar a parte técnica antes de se posicionar. Foi o que fizemos na pandemia, por exemplo. A mídia estava meio preguiçosa, a gente viu que tinha algo mais sério quando nossas fontes especializadas começaram a avisar que tinha algo a mais ali. O resto é história: o tema tinha suporte da realidade e começou a chamar atenção sozinho.

As conspirações sobre o vazamento químico de Ohio, até onde as informações verificáveis e os especialistas de verdade nos fazem crer, estão no mesmo nível de papo de antivacina e conspirações de bolsonaristas. Quando você vai pesquisar mesmo, não tem nada com nada. Eu não preciso confiar no governo americano nem na boa vontade das empresas envolvidas: os dados contam uma história bem menos dramática.

E eu já vou me adiantar: muitos dos moradores locais vão começar a dizer que estão ficando doentes. Essas notícias provavelmente ganharão mais atenção nas próximas semanas e meses, mas como a parte química e biológica não corrobora com doenças imediatas com essas doses de contaminação (vulgo abaixo de qualquer nível considerado perigoso), isso provavelmente vai ser um fenômeno psicológico conhecido em populações que vivem próximas de locais de contaminação. As doenças são reais, mas não tem nenhuma relação obrigatória com o incidente.

Isso já aconteceu nos EUA, no acidente da usina nuclear Three Mile Island: trabalhadores e moradores próximos passaram anos dizendo que tinham sido contaminados e relacionando cada doença que tinham com um suposto vazamento de radiação (que não podia ser comprovado por instrumentos). Muita gente morreu jurando que suas doenças não eram algo normal da vida humana, e sim culpa da usina. Vai ser complicado lidar com isso, vamos ter processos enormes contra todos os envolvidos, mas é importante não entrar na pilha: o que parece nem sempre é. E eu nem estou criticando essas pessoas, eu provavelmente nunca mais teria paz se acontecesse comigo. Mas acontece das pessoas forçarem a barra para ligar os pontos.

Novamente: os dados, como nós os temos agora, não sugerem que vai ter alguma consequência na saúde das populações que vivem próximas do vazamento. O que é certeza agora é que não aconteceu nada que possa causar problemas de saúde para o povo americano inteiro ou mesmo outros países. Foi algo pequeno e de curta duração. Ao contrário da histeria conspiratória usada para falar sobre ele. Não beba Cloreto de Vinila ou deixe crianças manusearem, é claro, mas não é como se fosse Césio 137…

A verdade é sempre muito mais chata que a conspiração. Isso eu costumo admitir.

Para dizer que eu estou sendo pago… por alguém, para dizer que é isso que querem que a gente pense, ou mesmo para dizer que se fosse tão perigoso estaríamos todos mortos (sim, os canos são feitos disso): somir@desfavor.com


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