Ciências e ciências…

É comum você ler aqui no Desfavor que acreditamos na ciência. Mas é importante explicar melhor essa frase: nós acreditamos na ciência ao invés de acreditar em religião, superstição ou conspiração. Não é fé, é uma escolha consciente que pode ter limites. Porque a ciência tem sim seus problemas, como qualquer mecanismo com o objetivo de explicar a imensa complexidade do mundo ao nosso redor. O principal deles é achar que todas as ciências são iguais…

Mas não são. Cada uma está estudando um aspecto da nossa realidade, e o quanto isso pode ser testado e confirmado muda bastante. Vamos começar com uma divisão bem simples: é relativamente fácil dizer que uma substância química faz mal para o fígado. Você compara pessoas que ingeriram essa substância com pessoas que não ingeriram e olha como ficou o fígado de cada uma delas. Se você olhar muita gente, vai começar a ter dados bem seguros sobre o resultado médio.

Agora, não é nem um pouco fácil dizer o quanto uma ideia pode fazer mal para a saúde mental de uma pessoa. É complicado saber o quanto dessa ideia entrou na cabeça dela, o quanto ela entendeu ou mesmo o que ela entendeu, e depois é virtualmente impossível ter um parâmetro do que aconteceu com a saúde mental dela depois disso. Pessoas podem reagir de formas muito diferentes, e o que é estar mal da cabeça ainda depende de como a pessoa se enxerga em relação às pessoas com as quais convive.

Não estou dizendo que medicina é mais ou menos ciência que psicologia, estou apenas dizendo que as duas tem diferenças fundamentais no quanto podem ser transformadas em informações simples de digerir ou mesmo, reproduzir. Quando a medicina disse que beber muito álcool destrói o seu fígado, ela mostrou como os fígados dos alcoólatras estavam visivelmente destruídos. Quando a psicologia diz que viver com culpa por tudo trava sua vida, falta uma prova tão clara.

Em ambos os casos, especialistas se debruçaram sobre um problema e gastaram milhares de horas estudando e pensando, mas só num deles o resultado foi simples o suficiente de transformar numa regra. Quer ter um fígado saudável? Evite álcool e você já vai fazer algo muito eficiente. Quer ter uma mente saudável? Bom, você tem uma hora por semana pelos próximos cinco anos para tentar resolver isso?

Não é que ciência seja boa ou ruim, é que ela é muito dependente do que se estuda. Quando eu vejo uma geração inteira de “jovens rebeldes” começando a brigar com a ciência, eu vejo gente que não entendeu esse elemento básico. Ciência não é religião, não é o objetivo dela dar respostas imutáveis e absolutas, é tirar as melhores conclusões possíveis em cima dos dados coletados.

E aí é muito importante perceber a diferença entre os inúmeros campos de conhecimento que utilizam o método científico. Se você colocar tudo no mesmo balaio, vai achar que a confusão da física de partículas tem algo a ver com a ciência das vacinas, por exemplo. Sim, os cientistas que estudam a composição do universo tiveram que colocar coisas como matéria e energia escura nas suas equações para fazer algum senso do que observavam, mas isso é um elemento específico do campo de estudo deles. Inclusive, muitos cientistas contemporâneos discutem esses conceitos e têm outras ideias de como analisar o universo sem nada “escuro”.

É tudo ciência, mas não é a mesma ciência. O pessoal que desenvolve pontes usa vários cálculos baseados na física para definir se uma delas vai cair ou não. Se der errado, a ponte cai e sabemos o que deu errado. Já o pessoal que desenvolve modelos sobre a economia usa vários cálculos também, mas se a economia cair não podemos ter certeza do que aconteceu de verdade. Foi um erro na taxa de juros ou foi a economia de outro país influindo? Quanto mais fatores externos envolvidos, menor o grau de confiança das observações.

E isso não quer dizer que algumas ciências são mais fáceis de estudar que outras, todas exigem muito esforço para chegar num resultado minimamente decente. É que algumas coisas podemos verificar de forma mais simples que outras. Vacinas, por exemplo: o número de infectados com uma doença diminuiu muito além do que era esperado se não fizéssemos nada? Então a vacina está no caminho certo. Você pode olhar os números e tirar conclusões muito mais seguras sobre causa e resultado.

Não podemos olhar para um elemento específico da ciência sendo feita ao redor do mundo e definir que isso é a definição de ciência em geral. Até porque, salvo algum avanço considerável nas inteligências artificiais, ciência é feita por seres humanos. E seres humanos têm muita variação. Existem médicos formados que se especializam em neurologia ou em homeopatia… a pessoa que faz a ciência não define o que é ciência.

O maluco desenvolvendo modelos de terra plana está fazendo ciência, mas está fazendo de um jeito maluco ignorando premissas muito bem estabelecidas. Ele não responde por ninguém além dele. Numa analogia: sabemos que exercícios físicos ajudam a perder peso, mas se uma pessoa decidir que vai flexionar o dedo mindinho 500 vezes por dia e não vir nenhuma redução no seu peso, não quer dizer que a lógica original está errada, só quer dizer que a pessoa seguiu por um caminho bizarro.

E é aí que começam a entrar críticas muito válidas ao campo científico moderno como a crise da reprodutibilidade. Muitos estudos seguem por esses caminhos bizarros para gerar recursos para os cientistas ou para as instituições que representam. A necessidade de publicar materiais novos passa por cima da utilidade desses materiais. No campo da física de partículas, por exemplo, vivem aparecendo novas propostas de partículas fundamentais, e boa parte delas nem eram necessárias para expandir o conhecimento na área. Fazem a proposta, analisam resultados de experimentos, não acham nada e inventam outra…

Então quer dizer que toda ciência é um embuste?

Não, da mesma forma que um bêbado batendo um carro não quer dizer que devamos proibir o uso de carros, cientistas fazendo coisas erradas por burrice, teimosia ou interesses financeiros nada tem a ver com a ideia de ciência em geral. Faz parte do jogo que algumas pessoas façam as coisas do jeito errado. Bons modelos científicos da realidade que geram previsões confiáveis são difíceis de fazer, e eu até acho que para um bando de macacos pelados vindos das cavernas, nossos resultados até aqui são excelentes.

Os cientistas antigos que acreditam em miasma – basicamente a ideia de que “ar ruim” faz mal para a saúde – não estavam corretos, mas estavam seguindo por uma linha que nos fez perceber as inúmeras ameaças invisíveis em vírus, bactérias e afins. A conclusão sobre o miasma não foi boa, mas em linhas gerais tinha algo evoluindo ali. Isso já aconteceu inúmeras vezes e vai acontecer inúmeras mais.

Alguns campos vão bater cabeça por mais tempo, outros já estão bem mais próximos de um bom modelo de realidade, e tudo isso é normal. Tudo isso é ciência. Acreditar na ciência é acreditar que é possível extrair informações do ambiente e apresentar ideias coerentes sobre elas. É entender que não existe nada tão escuro que não possa ser iluminado (talvez buracos negros).

Não é à toa que consenso é tão importante no campo científico: quanto mais gente estuda uma coisa e chega na mesma conclusão, mais segura é a informação extraída. Nunca podemos depender de só um campo de estudos ou de um grupo específico de pessoas. Um médico formado falando de homeopatia não é a medicina. Um físico picareta forjando resultados para ganhar dinheiro não é a física. E nem mesmo a boa vontade de uma pessoa fazendo ciência resolve o problema, quantas vezes na vida não nos esforçamos muito para fazer algo errado e/ou inútil?

Os resultados importam. A capacidade de um modelo prever resultados importa. O grau de complexidade da ciência importa. É difícil mesmo, e justamente por ser difícil que a ciência ganha de goleada de outras formas de entender a realidade. Se tivesse alguma coisa fácil na compreensão da realidade e na capacidade de fazer previsões confiáveis sobre o futuro, já teríamos feito. O único mecanismo que temos atualmente para desbravar a complexidade do universo é a ciência, mesmo que ela tenha muitas partes confusas e mal resolvidas.

E sim, alguns campos de conhecimento vão parecer mais naturais e lógicos para você do que outros. Física quântica é cem vezes pior de entender quando você se aprofunda: sim, fica mais confusa e começa a bater de frente com tudo o que os leigos no tema dizem. Psicologia é um inferno de padronizar, porque o cérebro é um emaranhado de bilhões de neurônios que são influenciados até pelo intestino. Algumas ciências são osso duro de roer, mas isso não é sobre a ideia de ciência em geral, é sobre aquele tema, naquele contexto.

Se for para tratar ciência de forma unificada, que se trate como o que a unifica: estudos de informações coletadas da realidade, estudos que às vezes dão certo, às vezes dão errado. Nisso podemos acreditar. Não num cientista ou numa hipótese específica.

É difícil mesmo. Não quer dizer que tenha algo errado se for difícil.

Para dizer que agora não vai acreditar em mais nada, para dizer que agora se sente livre por não entender nada, ou mesmo para dizer que é continuação do texto de criatividade inteligente (de certa forma é: estude antes de inventar): somir@desfavor.com

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Comments (2)

  • A ciência existe pra fazer pesar e pra ajudar a explicar e entender o mundo; e não pra substituir a religião com suas próprias respostas prontas, imutáveis e dogmáticas. Quanto mais se estuda sobre algum assunto, mais e mais se descobre que aínda há muito mais a aprender.

  • Tem essa piada que eu adoro:
    O clínico geral sabe tudo e não resolve nada.
    O cirurgião não sabe nada e resolve tudo.
    O psiquiatra não sabe nada e não resolve nada.

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