Matéria Escura e o deus das lacunas.

Se fizermos os cálculos sobre como a matéria visível no universo deveria se comportar, as previsões não batem com as medições. Galáxias giram muito mais rápido do que se esperaria pela quantidade de coisas visíveis nelas, por exemplo. Por isso, a física adotou a ideia da matéria escura, um material invisível que exerce força gravitacional e faz com que as contas voltem a bater com as observações. Mas isso não é meio… religioso?

O deus das lacunas é um conceito da lógica que descreve a falácia de dar explicações sobrenaturais para aquilo que ainda não é compreendido de forma científica. A ideia de um ser mágico com poderes incompreensíveis tapa qualquer buraco, se você tiver inclinação para pensar desse jeito. E, pessoas costumam ter essa inclinação.

Nossa história é recheada de fenômenos mágicos que eventualmente acabaram entendidos e tornados banais. Se você não sabe que existem vírus e bactérias, doenças podem ser pragas enviadas por deuses furiosos. Não à toa, a parte das lacunas no nome da falácia: o que não entendemos tem o péssimo hábito de ser explicado de forma sobrenatural.

E por mais que seres humanos estejam estudando sobre o mundo há milênios, muitos com algo próximo do método científico moderno, foi só há uns dois séculos que realmente começamos a desvendar mistérios da natureza e compartilhar esse conhecimento. O deus das lacunas se viu com cada vez menos lacunas para preencher. Na escala de tempo da humanidade, foi um avanço bem rápido, eu argumento que até rápido demais para o cidadão médio.

Esses deuses foram espremidos num espaço pequeno, considerando que as grandes questões do dia a dia humano foram sendo respondidas de forma confiável pela ciência, década após década. A parte mais mecânica da nossa vida está bem estudada e explicada, para você começar a encontrar dúvidas poderosas sobre a realidade, precisa começar a estudar física, química e biologia bem mais a fundo do que nossos antepassados.

Isso não quer dizer que o cidadão médio tenha todo esse conhecimento, mas se por um acaso se interessar, nunca foi tão fácil se aprofundar. Se bater uma dúvida na sua cabeça de como as suas células fazem oxigênio virar energia, vai descobrir que tem milhares de livros sobre o tema, com basicamente todos os níveis de profundidade que quiser. Para questões mais básicas sobre a vida, já temos muito o que oferecer para os interessados.

Antigamente, quando a resposta para basicamente todo conhecimento aprofundado era “não sabemos”, o deus das lacunas cabia confortável na vida de todo mundo. Uma hora ou outra você batia no limite da informação humana (pelo menos na sua região) e terminava o raciocínio com “Deus que quis assim”. E tudo bem, afinal, ninguém é obrigado a pesquisar a fundo sobre todo tema.

Hoje, o deus das lacunas não tem tanto o que fazer nas ciências. Ele ainda está lá antes do Big Bang, no momento da criação da vida, dentro de buracos negros… coisas que o conhecimento científico moderno honestamente não tem respostas para oferecer além de especulações impossíveis de testar. Se o mundo seguisse essa lógica, eu provavelmente não teria problemas com religião, seria mais ou menos como aquelas pessoas que se dizem “espirituais”, raramente o tipo que comete atentados ou tenta oprimir os outros.

Mas o deus das lacunas foi se concentrando em outros temas, cada vez mais focado em comportamento, pegando características conservadoras para fazer sua base. O deus do cidadão médio do século XXI não tem mais a característica de explicar o funcionamento do mundo, é mais um censor celestial que nos julga de acordo com a forma que convivemos com outros humanos. Mas nem sempre foi assim.

Não à toa, o passado nos presenteou com uma série de cientistas religiosos. Pensadores e experimentadores, que não viam conflito entre entender o funcionamento da natureza e adorar sua divindade escolhida. Aliás, durante boa parte da nossa história, sacerdotes eram tratados como acumuladores e disseminadores de conhecimento. E nem estamos tão longe assim dessa era, foi um literal padre que teorizou o Big Bang como a ciência entende hoje em dia.

Curioso como em poucas gerações essa característica desapareceu. Hoje padres, pastores e sacerdotes em geral vivem realidades muito diferentes, parece que os religiosos desistiram de vez de “entender a obra divina” e focaram todas suas energias em fiscalizar o comportamento sexual dos fiéis. Não estou dizendo que a maioria dos sacerdotes religiosos eram seres iluminados no passado, longe disso, mas a figura do padre cientista, algo historicamente relevante, não faz mais parte da realidade atual.

Eu entendo que isso aconteceu por causa do espaço muito limitado que o deus das lacunas teve depois da grande revolução científica dos últimos séculos. Ficou comprimido, talvez até inseguro do seu papel no mundo. Seus seguidores foram afastados do caminho do conhecimento sobre a natureza, porque cientistas treinados para isso ocuparam o lugar. Conhecimento era tão importante que criamos uma profissão só para desenvolver mais dele.

É bem provável que o grau de fanatismo religioso tenha aumentado nas últimas décadas por causa do buraco deixado na religião como fonte de conhecimento sobre a realidade. De uma certa forma, com o deus das lacunas reduzido ao ponto da insignificância na vida cotidiana das pessoas, ele precisou se transformar, junto com seus seguidores. Não é mais o deus das explicações, é o deus dos julgamentos. Sobrou isso: criticar e controlar o outro.

E honestamente, eu enxergo essa característica vazando até mesmo para a parcela mais progressiva da população. Mesmo aqueles que não seguem dogmas religiosos se viram tão alienados pelo sucesso da ciência moderna que acabaram criando sua própria lógica de funcionamento universal baseada em… criticar e controlar o outro. Muita da rejeição científica da dita esquerda moderna parece resultado da distância das linhas de frente do conhecimento acumulado da humanidade. Pessoas sem capacidade de seguir os padrões científicos modernos começam a ficar obcecadas por questões de comportamento. A subjetividade do tema é um dos últimos bastiões do deus das lacunas. Se você passa muito tempo pensando sobre como os outros devem ou não seguir suas vidas sexuais, você provavelmente se perdeu do caminho da ciência em algum lugar na jornada.

Tudo isso para voltar à pergunta do parágrafo inicial: quando cientistas sugerem a existência da Matéria Escura como complemento necessário para fazer as contas baterem, é um comportamento religioso? Isso é, não é justamente o que os religiosos do passado faziam com qualquer coisa que não entendiam? Chamaram de Matéria Escura, mas podia ser qualquer deus também. O deus do giro das galáxias…

E é aqui que eu amarro os pontos aparentemente desconectados deste texto: se estivermos pensando na lógica religiosa moderna, não, não tem nada de religioso em “criar” a Matéria Escura para explicar as observações feitas pela Astronomia. Esse elemento adicionado não é o fim da análise da realidade, é apenas um meio. Basta uma boa explicação com possibilidade de reprodução para a Matéria Escura desaparecer e virar outra coisa.

A religião moderna não tem mais padres cientistas, não está mais disposta a ceder um milímetro que seja dos seus dogmas. Sim, muitos “hereges” foram queimados por oferecer novas ideias para a visão religiosa da realidade, mas depois de algum tempo, o conhecimento comprovável ia sendo adicionado na visão de mundo dos religiosos. Isso aconteceu de forma constante até uma boa parte do século passado.

Mas aí, talvez pelo deus das lacunas ficar pequeno demais, a religião bateu o pé e não quis mais ceder. Eu tenho a impressão de que o que nós nascidos da metade do século XX até os dias atuais enxergamos como religião não é a mesma coisa que nossos antepassados enxergavam. Sim, historicamente foram muito opressivos e violentos, mas tinha tanta coisa em aberto no nosso conhecimento coletivo que não custava tão caro assim aceitar novidades científicas.

Nós já estamos vendo religião sem a ideia de deus das lacunas, porque acabou a tolerância dela com isso. Se continuarmos adaptando o discurso religioso ao conhecimento moderno, é muito provável que o deus da maioria das pessoas desapareça de vez. Isso seria péssimo para os negócios.

Pensando na religião mais antiga, talvez a ideia de colocar a Matéria Escura como um espaço livre para especulações seja mais compatível mesmo. Eles fizeram isso com seus deuses por milênios, se não sabiam algo, era um deus fazendo. E quando explicavam, achavam outro lugar para colocar esse deus. A ciência atual usa essa lógica, com uma visão menos arrogante da realidade: sabemos até onde sabemos, quando chegarem resultados experimentais decentes, atualizamos tudo. O que tem para hoje é Matéria Escura, mas se acharem outra explicação boa, ela toma o lugar, mesmo que alguns dos “sacerdotes cientistas” sejam teimosos no começo.

Do mesmo jeito que o religioso antigo tinha uma compreensão instintiva que seu deus sempre ia estar lá, o cientista moderno (com a cabeça no lugar) sabe que sempre vai ter mais coisa para descobrir. A visão religiosa antiga ainda permitia ciência, mesmo que de forma mais lenta, porque não havia o mesmo medo neles de ficar sem nada para se apoiar.

A religião foi ficando sem lacunas para preencher, e se adaptou a isso. A ciência moderna foi um passo na direção certa porque tirou o medo de se adaptar à realidade de vez daqueles que a praticam. Religião tinha um limite, que por milênios não foi um problema, até que um surto de conhecimento sem precedentes do século passado até aqui mostrou como o modelo tinha limites.

Não à toa, todos os movimentos anticientíficos do século XXI acabam se misturando com religião (ou comportamento religioso como no caso de lacradores de rede social) uma hora ou outra. Estamos vivendo uma era com um deus das lacunas sufocado, e as religiões sem saber como lidar com seu principal ativo se tornando irrelevante.

Ciência e religião provavelmente nasceram do mesmo ventre, até por isso podemos ver algumas coisas parecidas no comportamento delas de tempos em tempos (desde teimosia até deus das lacunas), mas a impressão é que desde que a irmã ciência saiu de casa, a irmã religião se tornou muito mais amarga e isolada.

O que é uma pena, quando ela era mais lúcida até que nos ajudou.

Para dizer que sua religião é a ciência, para dizer que sua ciência é a religião, ou mesmo para dizer que é tudo papo furado e as duas irmãs só ligam para dinheiro: somir@desfavor.com

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Comments (4)

  • Sheldon Cooper Tinho

    Somir, e sobre as novas observações por meio do hiper-mega-ultra telescópio, violando as expectativas da teoria do Big Bang, quais as suas considerações?

  • Guilherme Protzner

    O deus das lacunas foi vencido pelo novo deus. O deus dos presentes, o deus que tudo provê. Comprei um carro, foi presente dele. Consegui um emprego, era meu destino. Venci um câncer, graças a deus. Voltei são e salvo pra casa, amém. Esse não falha nunca porque mesmo que tudo tenha dado errado, esse deus escreve certo por linhas tortas e sua hora vai chegar. E se morreu, foi porque sua hora era essa e era hora de descansar.
    Ah! E não esqueça de que o paraíso é só questão de acreditar e esperar, porque o deus dos presentes vai te receber com tudo aquilo que vc deseja.
    O Deus Ex Machina dos presentes é infalível.

  • Ótimo texto, Somir. Mais dia menos dia, o cada vez mais irrelevante deus das lacunas irá desaparecer. Há coisas que só a religião explica. Para todas as outras, existe a Ciência.

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