O deus-nação.

Nem tudo é reclamação aqui: foi uma boa coisa ver como o 7 de setembro foi chato neste ano. Nenhum drama, desfiles às moscas, povo mais preocupado em tomar sua cervejinha e emendar a folga do que com qualquer senso de unidade nacional. Melhor isso do que o tipo de patriotismo que estava em voga na administração passada.

A humanidade experimentou vários tipos de organização social, hierarquias e políticas públicas em sua história. Tentando resumir os milhares de anos, podemos enxergar uma tendência a consolidar poder. As tribos começaram a se unir em cidades, as cidades em reinos e os reinos em grandes impérios. A cada século, as unidades de poder humanas abarcavam mais e mais pessoas.

Se a união faz a força, a ideia era unir mais e mais pessoas debaixo dos mesmos líderes, para ter mais poder financeiro, militar, ideológico… parece que está no nosso DNA querer fazer parte do grupo mais poderoso. Na natureza não é muito comum ver outros seres com essa sede expansionista que o ser humano tem. Sim, existem manadas e colônias enormes de outros seres, mas elas normalmente param no limite de um território “razoável”.

Nós não, nós nos vemos em grupos praticamente impossíveis de se organizar de tão grandes. Só parece certo na cabeça do humano ir crescendo e acumulando territórios debaixo da mesma bandeira. A história está cheia de exemplos de impérios que cresceram ao ponto de quebrar sob o próprio peso. Apenas nos últimos poucos séculos que começamos a perceber que o mundo tinha “acabado” e que precisávamos fazer senso das fronteiras que já existiam.

Eu argumento que a partir do momento que ficou claro que o espaço disponível para crescer não estava mais disponível que começamos a apontar essa vontade de fazer parte do grupo mais poderoso para dentro das nações. Depois de ver tantos impérios caindo, ficou mais ou menos claro que o limite razoável de expansão era o país. Foi meio que uma dança das cadeiras, quando a música da conquista infinita acabou, alguns acabaram sentados em territórios enormes, outros em bem menores. Claro, como sempre tem uma briga aqui e acolá pela posição da cerca, mas não tem mais aquela coisa de impérios nascendo e sumindo.

Digo isso porque essa tendência de consolidação criou deuses-nação, uma espécie de religião política que alimentou a última era de grandes guerras do mundo. Ao invés de fazer as pessoas lutarem por seus reis (por medo ou por dinheiro), as fizeram acreditar que lutavam pelo seu país, suas famílias e amigos incluídos neles. Foi uma das invenções mais eficientes na história da guerra: criar soldados mais motivados sem expectativa de lucro pelo “trabalho” de matar o inimigo.

Quando você vende para o povão que a briga entre líderes de dois territórios por algum motivo é deles também, você pode investir apenas em armas e recursos básicos para o seu exército. Roma teve inúmeros problemas com seus soldados profissionais basicamente se sindicalizando para exigir mais dinheiro pelo trabalho de tocar as guerras de seus políticos. Atualmente, deixar de lutar por achar que o Estado não está te pagando o suficiente é traição e pode ser punido com a morte.

A estrutura militar antiga era… capitalista demais. A grande sacada daqueles que estavam no poder foi investir em propaganda para fazer da sua nação um deus do povo. Alguém que deve ser adorado e defendido. E a palavra desse deus calha de ser a palavra dos seus líderes políticos. Não é uma coincidência muito útil?

E como diz o ditado popular: para quem está se afogando, jacaré é tronco. Considerando que boa parte da população humana passou de ter nenhum direito a ter alguns poucos direitos com o advento das nações, por um tempo eu realmente acredito que o deus-nação era milagroso. Foi algo que disse no texto sobre o comunismo também, se está todo mundo muito mal, qualquer coisinha que você faz de melhor parece intervenção divina.

O deus-nação se enfiou no meio das crenças políticas e até mesmo religiosas das pessoas. É um deus caprichoso, mas poderoso. E da mesma forma que as religiões mais populares passaram de politeísmo para monoteísmo, a ideia de consolidar poder e sempre acreditar que o deus mais poderoso é justamente o seu combinou bem com a nossa forma de pensar.

Cria-se a ilusão de que o que a nação faz é de alguma forma relacionado com os seus objetivos e interesses, afinal, você é parte integrante dessa divindade, não? Quando você balança a bandeira do deus-nação, está se fortalecendo. Mais fé significa mais poder. E nada de ficar duvidando dos sacerdotes do deus-nação que estão realmente ditando as regras, é traição.

Muito além das cômicas ideias e atitudes dos patriotas brasileiros durante o governo Bolsonaro, me preocupava a catarse coletiva das grandes reuniões públicas, o show de horrores de milhões de pessoas esperando um golpe de Estado para glorificar o deus-nação. Na prática eu sabia que eram muito incompetentes para transformar o sistema de governo brasileiro, mas é o tipo de coisa que vai se acumulando até exibir os sintomas mais perigosos de fanatismo religioso.

É uma boa notícia que o brasileiro médio tenha tido um 7 de setembro ateu-nação, não quer dizer que estamos livres de aventuras autoritárias, sabemos bem quem está no poder, mas nossos políticos gostam mesmo é de sombra e água-fresca: se o povão não estiver pressionando por um sacrifício de sangue da democracia para eles continuarem sugando nossos recursos, eles não vão se mexer.

Ainda bem que o exército e o bolsonarismo decepcionaram uma grande parcela dos brasileiros, porque isso baixa a fervura do fanatismo em relação ao deus-nação tupiniquim. Ainda temos fiéis inabaláveis, é claro, mas eles perdem a camuflagem de grandes eventos públicos como as marchas para o golpe dos anos passados na mesma data. O pessoal de verde e amarelo nas ruas queria muito mais uma ditadura do que seus supostos líderes. Quando aqueles que diziam falar em nome do deus-nação mostraram as verdadeiras cores (corruptos de meia-tigela que não sabem apagar um e-mail), o patriota-médio teve sua fé enfraquecida ao ponto de arranjar mais o que fazer da vida. Sobraram as velhas carolas do deus-nação, literalmente. Elas vão continuar frequentando a igreja porque a fé virou parte de sua identidade.

Lula, muito mais capitalista que seu antecessor, sabe que os parasitas não precisam de revoluções para continuar se alimentando. Assim como Bolsonaro, não reclamaria se o poder absoluto caísse no seu colo, mas sua turma está contente o suficiente com a senha do cartão da nação. Você sabe que o país tem um problema quando voltar aos erros do passado é melhor do que os erros mais recentes.

O deus-nação absoluto era um caminho furado, algo que foi tentado pela direita e pela esquerda sem sucesso (de longo prazo) no último século. A função dessa religião política é muito clara dentro do campo militar, foi um sucesso tremendo e aumentou demais a resiliência dos governantes a ameaças externas, mas a vantagem para mais ou menos aí. Tentar transferir o deus-nação para controlar o povo dentro do seu país só cria regimes tirânicos dos mais incompetentes. Se Hitler e Stalin falharam com todos os recursos que tinham, não vai ser um Bolsonaro ou Trump que vão conseguir.

O deus-nação é uma entidade violenta e impulsiva, ele une pessoas diante de uma ameaça que vem de fora (e faz pessoas se matarem por brigas entre líderes), ele deveria ser eliminado de vez da nossa sociedade, mas eu não tenho esperanças sobre isso no curto prazo. O que é mais possível é controlar sua fúria destrutiva apontada para dentro de um país.

E toda vez que um desfile de 7 de setembro é chato e te faz desligar a TV na hora do jornal, é um resultado positivo. Quero sim ver o brasileiro se unir para resolver seus problemas, mas não para rezar de forma fervorosa por uma divindade insana dessas. Se for para adorar o deus-nação, prefiro o povo bem alienado…

Para dizer que é muito pra cabeça, para dizer que vai emendar hoje, ou mesmo para dizer que está com saudades dos Des Contos: somir@desfavor.com

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Comments (6)

  • “A história está cheia de exemplos de impérios que cresceram ao ponto de quebrar sob o próprio peso.”

    Atualmente os Estados Unidos é o tal. Quem será que vai sucedê-lo?

    • Talvez a China. Mas também pode ser que a própria “Era dos Impérios” esteja chegando ao fim e que o poder mundial fique mais disperso em diversos centros e mais diluído.

      • Também acho que a “Era dos Impérios” está chegando ao fim, UABO. E, pelo andar da carruagem, eu tenho até medo de pensar no que pode vir depois…

  • “o patriota-médio teve sua fé enfraquecida ao ponto de arranjar mais o que fazer da vida”
    O “bolsominion” médio já superou o Bolsonaro faz tempo, inclusive faz críticas ao governo dele.
    É um perfil de pessoa muito diferente do esquerdista médio que trata o Lula como deus, pendura bandeira do PT na janela e quer prender quem critica. Exemplo: O velho falou que ia aumentar impostos, as pessoas alertaram sobre isso e os doentes mentais esquerdistas acusaram de fake news. Impostos aumentaram.
    É isso que dá largar religião, a pessoa vai idolatrar político e celebridade e acha que é superior por ser ateu apesar de nunca ter lido um artigo científico e nunca ter doado um cobertor na vida. Quem acredita num “amigo imaginário invisível no céu” é muito menos danoso pra sociedade do que quem idolatra político.

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