Por que ninguém cura o câncer?

Eu me sinto obrigado a concordar com uma parcela da população humana, – provavelmente a maior parcela – no ponto de que a maioria das coisas sendo estudadas por cientistas não tem muita função prática. Um telescópio supercomplexo que nos permite ver um pouco mais longe no espaço? O comportamento das formigas da bunda amarela da Indonésia? O sistema religioso de uma civilização que acabou há milênios? Não parece fazer muita diferença. Podiam focar em coisas melhores…

Mas, o ser humano do século XXI tem muito a agradecer pelo conhecimento acumulado e tecnologia desenvolvida durante nossa história. Não precisamos caçar, não precisamos procurar água, temos fontes de energia abundantes e milhares de outras facilidades que nossos antepassados mais antigos sequer sonhavam em ter. Alguma coisa deu muito certo no caminho da humanidade. Nenhum outro animal chegou nesse nível de excelência até hoje.

A explicação que faz mais sentido é que o ser humano conseguiu se concentrar em problemas básicos e achar soluções. Temos o cérebro e o corpo que permitem isso, é claro, mas não havia nenhuma obrigação formal de ser humano original buscar conhecimento e construir uma sociedade como a que construímos. E voltando ao ponto do começo do texto, vemos na prática como em linhas gerais somos tudo menos focados.

Tem gente estudando todo tipo de coisa, e raramente conseguimos convergir toda essa energia para um lugar específico. Que jogue a primeira pedra quem nunca se perguntou por que todos os cientistas não se juntam para descobrir a cura do câncer. Acho que nem as fábricas de remédios de quimioterapia seriam contra isso. É tão óbvio que todo mundo quer essa solução, não?

Qual a dificuldade de juntar todo mundo por uns meses para resolver isso? Por que não focam na cura do câncer? Ninguém em sã consciência vai reclamar de esperar mais alguns anos para saber quantas estrelas tem numa galáxia aleatória se estiverem trabalhando para acabar com uma doença terrível como essa. Eu aposto que todo mundo aqui aceitaria dar um pouco do seu dinheiro para ajudar nessa causa. Ou mesmo trabalhar em quase qualquer coisa pra ajudar. Eu faxinaria o laboratório com gosto se soubesse que estaria ajudando a curar o câncer.

Tão óbvio. Mas ninguém faz. Por quê?

A melhor resposta que eu tenho é que não adiantaria. O desenvolvimento de conhecimento e tecnologia da humanidade é um processo pouco… racional. Não faria mais sentido lidar com questões de saúde antes de qualquer outra coisa? Bom, estávamos viajando pelo mundo em navios enormes antes de saber o que era uma bactéria. A matemática já se debruçava sobre números impossíveis quando nem sabíamos o que a maioria dos órgãos do corpo humano sequer fazia.

Se qualquer um de nós tivesse que direcionar a evolução do conhecimento humano, aposto que colocaríamos medicina no começo da fila. No máximo acontecendo ao mesmo tempo que a agricultura. Precisa de comida e saúde pra aproveitar o resto. Mas não foi assim que aconteceu. Das áreas do conhecimento humano, arrisco dizer que a medicina foi a última da fila. A era da barbárie pegou os bisavós de quase todo mundo lendo este texto.

Então a resposta é que o ser humano não sabe priorizar? Bom, talvez seja parte da resposta, mas não é como se a sequência de invenções e descobertas da nossa espécie tenha acontecido de forma planejada. Ninguém decidiu que ia esperar até quase o século XX para realmente enfrentar as doenças que nos matavam aos milhões. Para priorizar, você precisa saber suas opções.

O ser humano tenta resolver os problemas de saúde há milênios. O pai da medicina é um grego! Ele estava errado sobre basicamente tudo, mas estava lá tentando milhares de anos atrás. Não foi falta de interesse, não foi falta de urgência, foi falta de capacidade de fazer diferente mesmo. A verdade é que o conhecimento sobre medicina que temos hoje é uma coisa inimaginável para nossos antepassados.

Se ninguém te avisasse logo na infância, é quase impossível que você descobrisse por conta própria que existem seres vivos minúsculos no seu corpo que podem te fazer mal. E depois disso, ainda teria que descobrir uma forma de combater esses seres que não te matasse junto. É coisa demais para uma pessoa ou mesmo um grupo de pessoas descobrirem ao mesmo tempo. Precisa de uma sequência de gerações para chegar nessas conclusões, fazer os testes e encontrar resultados consistentes.

Os cientistas modernos não se juntam só para combater o câncer porque não adianta. Não do jeito que funciona na imaginação da maioria das pessoas. Se pegássemos milhares de mentes brilhantes do século XIV e juntássemos eles para resolver a Peste Negra, eles não conseguiriam. Não adianta ter uma calculadora se você não sabe qual a conta que tem que fazer…

No caso do câncer, por mais avançados que estejamos no conhecimento sobre o corpo humano, ainda não temos todas as informações necessárias. O que era “fácil” de descobrir provavelmente já foi descoberto. Como eu já disse antes, tem muita gente tentando resolver esse problema há muitas e muitas gerações. Resolver infecção era relativamente simples: bastava ter algo pra matar bactérias. Câncer é um crescimento “errado” do próprio corpo humano, tem uma barreira aí: achar o que mata o câncer quase sempre significa achar algo que mata o ser humano. Não à toa os tratamentos são tão sofridos para os doentes.

Se um milhão de cientistas se juntarem só para resolver esse problema, vão continuar com os mesmos problemas de antes e os novos de lidar com egos e dinâmicas sociais de um grupo tão grande. Grupos menores correndo em paralelo parecem um desperdício de energia criativa, mas é um método testado e comprovado de avanço científico. Enquanto não tivermos as informações ou os meios tecnológicos de dar o próximo passo para curar o câncer, não adianta nada forçar mais gente a se concentrar nisso. Calculadora sem saber a conta pra fazer…

E é aqui que eu volto para as perguntas do começo do texto: mesmo assim, não seria mais útil se os cientistas do telescópio, das formigas ou da história antiga não mudassem de área? Aumentariam as chances de alguém descobrir o que falta, presumimos.

E presumimos errado. Não é eficiente para a humanidade forçar as pessoas a fazerem o que não têm interesse em fazer. Isso foi testado diversas vezes durante a história, e nem mesmo em tarefas braçais funciona direito. Fazer alguém que gosta de correr levantar peso não é a melhor forma de levantar peso. Fazer historiador trabalhar na lavoura não melhora a produção. Fazer cientista que se importa com estrela pesquisar cura do câncer não melhora a pesquisa da cura do câncer.

Sem querer, a humanidade descobriu que se deixar as pessoas correrem atrás de seus interesses, a chance de alguém descobrir algo valioso para todos nós aumenta bastante. Digo sem querer porque assim que a produção de alimentos ficou um pouco melhor, algumas pessoas se viram mais livres para buscar tarefas mais interessantes para elas. Começava a especialização do ser humano. Os primeiros especialistas em produtos e serviços que não envolviam comida, água ou segurança não estavam nessa para permitir a criação de sociedades gigantes como temos hoje em dia.

Sequer tinham a noção do que uma cidade seria. O conceito de indústria simplesmente não existia. Eram pessoas que se interessavam por “bobagens” que não criavam mais comida diretamente. Aposto que foram criticados por muitos: “pra que ficar fazendo potes se você pode plantar mais comida com esse tempo?”.

O fazedor de potes não tinha uma resposta muito racional pra isso, mas algo em sua mente o fazia sentir prazer em produzir potes cada vez melhores. Algum outro “maluco” testava combinações de elementos para gerar cerâmica mais resistente. Outro testava formatos mais práticos. Nenhum deles precisava saber pra onde a tecnologia dos potes estava indo, eles só tinham um interesse e seu cérebro os recompensava toda vez que seguiam ele.

Eu tenho certeza que em algum momento uma colheita deu errado e as pessoas ao redor dos fazedores de potes soltaram um “não disse?” pra eles. Sim, tinha algo mais prático no momento para focar sua atenção, mas eles não foram por esse caminho. O cérebro deles ignorou as necessidades mais imediatas e foi para a direção mais divertida. Se tivessem usado aquele tempo para plantar mais, poderiam ter evitado que alguém passasse fome.

Mas se não tivessem, como de fato não usaram, poderiam estabelecer uma base de conhecimento que não só evoluiu uma indústria humana, a dos potes, como também serviu de base para a compreensão e utilização de metais. A lógica é parecida: combinações de elementos e fogo para finalizar. Se ninguém tivesse “desperdiçado” tempo de lavoura com cerâmica, os metais talvez nem tivessem sido domados e utilizados para nos avançar uma fase evolutiva da espécie.

E da mesma forma, tenho certeza que muita gente ficou estudando e trabalhando em coisas que não deram em absolutamente nada para a evolução da espécie. Não que alguém tenha percebido, pelo menos. Alguém era especialista em mamutes, alguém sabia tudo sobre fazer lanças com ossos, alguém percebeu como as estrelas se movimentavam antes de inventarem a escrita…

A verdade é que essa coisa de “desperdiçar” foco com coisas que não parecem úteis na hora é o que fazemos há milênios. E sabe do que mais? Funcionou. Eu estou escrevendo um texto que vai ser lido por gente do mundo todo no máximo alguns minutos depois de apertar um botão. Tinha gente maluca testando versões primárias de computadores há muito tempo, não fazia o menor sentido até começar a fazer, e muito.

Se tivéssemos juntado a humanidade para bolar uma forma de comunicação instantânea séculos atrás, pensariam em pombos mais rápidos. Existe um método na loucura aleatória dos interesses humanos, alguém precisa pensar em algo totalmente fora da caixa de tempos em tempos, e a tendência é que esse alguém seja um(a) doido de pedra estudando algo que ninguém mais acha útil.

É nosso vício em completar padrões para receber recompensas químicas no cérebro que faz com que as coisas avancem. E salvo algum avanço científico importante na área da neurociência, o que gera essas recompensas é basicamente aleatório. A tendência é que boa parte das pessoas siga caminhos sem muita utilidade imediata durante a vida, inclusive os cientistas. É o único jeito de cobrir as imensas possibilidades que temos: avançamos por força bruta, tentando todas as combinações até alguma coisa funcionar.

E quase ninguém tem noção de que estamos fazendo isso. É quase como se avanços em conhecimento e tecnologia fossem o nosso instinto. O instinto não é algo racional, mas se passou pra frente… é porque funciona. Não faz nem sentido esperar que todos os cientistas se juntem na mesma causa, não só não resolveria os problemas fundamentais dessa causa, como ainda perderíamos a chance de outros avanços.

Cooperação só funciona mesmo com liberdade para não cooperar.

Para dizer que ainda acha a ciência inútil (volte pras cavernas), para dizer que no comunismo funcionou (ô), ou mesmo para dizer que são as grandes empresas escondendo a cura: somir@desfavor.com

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Comments (4)

  • Sobre a questão do interesse, acho que se tivesse algum tipo de status ou garantia de enriquecimento muitas pessoas iam estudar, mesmo que a contragosto, a tal cura. Conheço pessoas que mudaram de área profissional, meio que uma coisa nada com nada, saíram de engenharia para fazer veterinária, somente pelo status que essa profissão parece ter e pela grana que as clínicas geram hoje. Nada com relação ao “amor à profissão” infelizmente.

    • Não sei se seriam exemplos do que o texto passa. Posso estar enganado, mas geralmente quem faz isso vira máquina de produção ao invés de pesquisa. Podem ter suas excessões, mas não vejo produção intelectual.

      Exemplo são os professores universitários que o fazem pelo status: pesquisas tão bestas e sem esforço que fica claro que só foram feitas pra engordar o contracheque e o currículo.

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