Certeza?

Quão certo você precisar estar para viver? Em tempos de Fake News e a pós-verdade comendo solta, muito se discute o grau de precisão das informações que consumimos; mas eu tenho a impressão de que estamos exagerando um pouco nessa expectativa.

Em tempos pré-internet, não saber uma coisa era muito comum. Aliás, era a coisa mais comum. Se eu tinha uma dúvida, tinha que perguntar para outra pessoa ou achar um livro sobre o tema. E como nunca foi muito comum ter bibliotecas ao nosso redor aqui no Brasil, a tendência é que você dependesse de respostas alheias.

E eu não sei se você já notou isso, conversas normais entre pessoas médias são imprecisas. Quando a pessoa está discutindo com outra é comum brotar aquela certeza de tudo que o brasileiro médio tem, mas quando os escudos estão abaixados as pessoas são mais honestas: pouca gente sabe responder perguntas aleatórias, e normalmente não se importam de não ter uma resposta decente.

Eu ouvi muitas asneiras e crendices, de dentro e fora da família. Ao ficar mais velho, comecei a ouvir as conversas de bar mais sem pé nem cabeça, e no final das contas, cá estou eu aqui, muito difícil de enganar com afirmações fantasiosas. A nerdice me fez acumular mais informação que uma pessoa mediana, mas não é esse o ponto aqui.

O ponto é que eu fui forjado no fogo de um mundo onde nenhuma informação era muito verificável. Fontes costumavam ficar isoladas. Você ouvia alguém falar e era basicamente isso. Se você aprendesse algo errado aos 12, corria o risco de ir até os 72 sem nunca revisar. A verdade, meio depressiva até, é que não é muita informação acumulada que se usa na vida cotidiana.

Não é à toa que tanta gente que acha que a Terra é plana vota e faz filhos: a vida humana básica se resolve com uma quantidade incomodamente pequena de informações bem estudadas. Quer dizer, incômoda para mim, para a manutenção da espécie é excelente: com algum conhecimento rudimentar sobre fogo, gravidade e o que se pode comer até mesmo uma pessoa muito limitada toca sua vida na sociedade moderna.

E tem um ponto aqui, prometo. O “projeto” original do ser humano é conhecer algumas coisas importantes para sobrevivência através de experiência e tratar o resto basicamente como entretenimento. Boa parte do pacote de novas informações que começamos a receber a partir do advento de escolas e mídia de massa iam além do projeto original.

Algumas coisas você usa muito, outras não. Bacana saber a capital da Austrália (não é a que você está pensando), fascinante que aprendamos a resolver equações e a diferença entre mitose e meiose… mas não é informação que vai ser colocada à prova na vida da maioria das pessoas. Não tem nem consequência não saber.

E por muito tempo, tudo bem com isso. Estávamos dentro de grupos mais homogêneos, trocando um monte de informações aleatoriamente certas ou erradas sem que isso virasse um problema na vida da pessoa. Eu lembro que o clima do mundo antes da internet era mais ameno para você não saber alguma coisa. E não tinha muito perigo de dizer a coisa errada também, quem ia te confrontar?

Gostem ou não, era uma situação confortável. Como “não saber” é o nosso estado natural e o ambiente tratava isso de forma mais leve, você ouvia menos discussões e a polarização era bem menor. O preço existia, é claro: éramos muito mais preconceituosos e especialmente lentos em compartilhar conhecimento. Este texto não é sobre saudades do tempo antes da internet, eu não tenho a menor vontade de voltar a ficar isolado de 99,9% da produção científica e cultural da humanidade.

Mas que tinha uma sabedoria na ideia de aceitar que não sabíamos muito… isso tinha. Quando todas suas dúvidas estão respondidas em um lugar que você pode acessar onde estiver, a nossa relação com o não saber muda. Não é mais o normal. Não é mais parte do processo ter que achar a fonte da informação, ela só está lá. Virou parte da nossa ideia de mundo ter respostas.

E com essa ideia, a armadilha de querer se completar com essas respostas. Explico: voltando ao passado, quando alguém nos dizia alguma coisa não tínhamos muito como rebater, mas era claramente a informação daquela pessoa. Não era um fato, não era a verdade, era só uma informação que podia ou não ser verdade. No fundo todos sabíamos que não era fácil estar certo, especialmente sobre temas que não eram diretamente relacionados com o nosso dia a dia.

Hoje você tem uma dúvida e é respondido com informações que se apresentam como verdade absoluta. Pergunta para o Google ou para a Alexa e eles não vão se confundir sobre o nome do presidente de Angola. Tem uma resposta na internet e eles vão passar para você. Não tem sei lá, não tem eu acho… é informação entregue como fato. É A resposta da sua pergunta.

E eu acredito que essa mudança de paradigma do que entendemos de uma resposta hoje em dia tenha relação direta com a onda de desinformação, notícias falsas e radicalismo político que vão nos atropelando há alguns anos. Nossa relação com informação não é mais algo que precisa ser estudado para ser compreendido, é algo diretamente relacionado com ter a resposta.

Não importa se você estudou, entendeu… a resposta está lá. E isso permite que muita gente sequestre a lógica no meio do caminho, falando asneiras incríveis que seriam só papo furado algumas décadas atrás e passando elas como verdade comprovada. Da mesma forma como você provavelmente nunca mais precisou lembrar do nome das capitanias hereditárias, também não vai ter nenhum momento da sua vida onde precisa mesmo saber como funciona um vírus. Se eu escrever agora que tinha uma capitania hereditária no Brasil com nome de Espírito Santo do Pinhal, você não vai ter muito como decidir se é verdade ou mentira, né? Aprendeu lá atrás e nunca mais usou.

O que vemos na internet hoje é uma quantidade imensa de conteúdo distribuído sem verificação, mas sob uma ilusão de ser fato por ser dessa forma que aprendemos a lidar com as informações desde a mudança do mundo com a internet.

O meu risco é esquecer, mas tem muita gente chegando na vida adulta sem nenhuma noção de que isso aconteceu: sem a percepção que o humano é extremamente falho e que você pode passar uma vida acreditando em informação errada sem saber. E mais, que tudo bem não saber. Informação é valiosa justamente porque não vem por mágica. Não precisa colocar a primeira coisa que te dizem no lugar da verdade só porque é estranho não ter uma resposta.

É normal não ter uma resposta. Estamos esquecendo disso.

Para dizer que é por isso que eu sou tão confuso, para dizer que a resposta de tudo é foda-se, ou mesmo para dizer que realmente nunca usou nada do que aprendeu na escola: comente.

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