NPC Streamers.

Normalmente eu tento explicar sobre o que eu estou falando no primeiro parágrafo do texto… mas eu acho que dessa vez vocês vão ter que ver um vídeo para realmente fazer senso do objeto da análise.

Essa é Pinkydoll, o maior nome do fenômeno dos NPC Streamers, gente que passa horas e horas em lives reagindo de forma robótica a estímulos gerados pela audiência. Não sou versado o suficiente na história do gênero para saber se ela foi a pioneira, mas com certeza é a mais popular.

Para os menos nerds, NPC é sigla de Non-Playable Charater (personagem não jogável), uma sigla que define aquelas personagens de jogos de videogame que reagem às ações dos jogadores: dão missões, vendem itens, etc. Você como jogador tem vontade própria, o NPC não; ele só faz o que foi programado para fazer, indefinidamente.

O que Pinkydoll descobriu é que existe uma grande audiência para esse tipo de brincadeira. E com tantas recompensas dadas por seu público, um bom dinheiro também. TikTok e similares tem sistemas de incentivo baseados em emojis enviados para o streamer, a pessoa vendo pode enviar esses prêmios que depois são transformados em dinheiro. A moça fica lá por horas se repetindo, mas no final do dia, recebe por isso.

Não à toa, surgiram vários e vários imitadores, com diferentes graus de sucesso. Ajuda ser uma mulher bonita, como em quase tudo o que depende de imagem nessa vida, mas é mais do que apenas mostrar o que as pessoas querem ver: a própria Pinkydoll já vendia vídeos mostrando até o útero no Onlyfans antes disso, e foi o NPC Stream que finalmente a deu atenção suficiente para fazer dinheiro na internet.

Isso já é sinal de um pós-modernismo da internet, o fato de que não adianta mais só ficar pelada, tem que achar um ângulo diferente para ganhar reconhecimento. É como se a persona online não fosse mais tão conectada com a persona da vida real; o que funciona ao vivo – como atratividade sexual – não é mais necessariamente o que funciona no concorridíssimo mercado virtual.

Já tem milhares (milhões?) de mulheres mostrando tudo na internet. Algo que gera atenção, mas que eventualmente se torna excessivo. Não no sentido moralista de que seria melhor que elas fossem mais castas e reservadas, mas excesso de pessoas fazendo a mesma coisa. Tem umas quatro bilhões de mulheres nesse mundo, e mesmo que selecionemos só as muito atraentes que desejam se exibir, já é o suficiente para entulhar a internet de nudez e pornografia tradicional ao ponto de cidadão nem saber mais o que fazer com isso.

Se o mercado fica saturado dessa forma, a demanda vence a oferta e o valor desaba. Sempre importante lembrar que para cada mulher dizendo que ficou milionária mostrando o útero, mil estão ganhando no máximo o equivalente a um salário razoável e dez mil estão só complementando a renda, fazendo um tipo de Uber da prostituição.

“Somir, seu degenerado, para de falar de pornografia e explica o que essas pessoas malucas estão fazendo!”

Eu estou falando disso. O fato da mulher que ficou mais famosa com os NPC Streams não ter conseguido ganhar dinheiro de verdade com pornografia antes disso diz muito sobre o que está acontecendo com a humanidade. Outras profissões virtuais também sofrem com esse excesso de concorrência, a pessoa que quer virar streamer de games também vai bater numa parede de milhares de pessoas fazendo a mesma coisa. E aí é uma questão de ser visto no meio da multidão. Não existe mais garantia que a pessoa vá ser vista, por puro volume de opções.

E isso fere a nossa percepção tradicional de que qualidade conta. Não adianta mais ser bom no que faz se você não tiver uma forma de atrair público. É nessa lógica de mercado que coisas como fazer NPC Stream fazem sentido: não importa a opinião de quem assiste, importa o volume de pessoas que fazem contato com seu material. A gente critica marketing de polêmica faz tempo aqui, mas a verdade é que é um caminho muito eficiente para se destacar na superlotação da atenção média do ser humano conectado à internet.

Não importa se é idiota, não importa se a pessoa passa vergonha ou irrita uma boa parte da plateia, importa conseguir a massa crítica de pessoas te assistindo para fazer sucesso. E para isso, a tendência é a apelação. Mas, vejam só como era importante falar de pornografia: o que fazer para apelar se metade da internet já é mulher pelada em poses ginecológicas?

Depois que sai a última peça de roupa, não dá para ficar mais pelada. E existe um limite prático do que a pessoa pode fazer para manter um público amplo: se a pessoa resolve atender um fetiche, aliena todos os outros. É um equilíbrio tênue entre popularidade e apelação. Eu entendo coisas como os NPC Streams como tentativas desesperadas por atenção de quem não sabe mais o que fazer.

Sim, tem o apelo de controle e talvez até de desumanização do outro em quem acompanha essas lives, tem um livro inteiro de psicologia para ser escrito sobre esse material se você quiser, mas eu estou fazendo uma análise mais mercadológica aqui. O que passa por apelação atualmente não é mais tão previsível, boa parte das táticas comuns à vida pré-internet já foram usadas à exaustão.

Pinkydoll tentou mostrar a bunda num oceano de bundas. Mas quando ela fingiu ser um robô na live, apareceu diferente do resto. Gerou atenção, principalmente negativa, mas foi o suficiente para segurar gente mandando dinheiro para ela por horas e horas todos os dias. Os imitadores inundaram o mercado, tornando cada vez mais difícil se destacar só por isso. Talvez a próxima etapa seja NPC Stream pornográfico, e depois NPC Stream pornográfico de fetiches cada vez mais bizarros… até que o ciclo se renove com outra ideia maluca ainda mais polêmica.

Isso que eu enxergo como pós-modernismo da internet: uma era onde a rede já está lotada de clichês próprios, onde a busca por atenção não é mais variação de interesses da dita vida real, mas iterações de ideias que surgiram com ela. NPC Stream é algo que pode ser explicado para quem já entende o que é uma live e as dificuldades de prender atenção do público quando tem mil outras pessoas fazendo lives ao mesmo tempo.

É uma coisa idiota, mas ao mesmo tempo, é uma solução genial para o problema de falta de diferenciação entre conteúdo online. É tudo repetitivo? Então se monetiza a repetição. Vamos ver mais e mais soluções aparecendo nos próximos anos, e é difícil prever exatamente para onde estamos indo. A explosão de produtoras de conteúdo pornográfico era previsível por causa do interesse inerente em sexo desde tempos imemoriais.

A demanda por NPC Streams era imprevisível. E eu acredito que vamos ser surpreendidos pelos infinitos macacos buscando ganhar a vida na internet, eventualmente eles vão acertar alguma coisa que nos parece absurda, mas que atrai muitas visualizações e dinheiro. Ao invés de tentar entender qual é a graça de ver essa mulher fazendo as mesmas coisas sem parar, é importante pensar em quanto uma sociedade precisa estar sobrecarregada de estímulos para isso funcionar.

Porque funcionou. A mulher em questão ganhou bastante dinheiro e gerou imitadores. O modelo de negócios se provou. Se ano que vem esse estilo de live não existir mais, não quer dizer que foi um erro, só quer dizer que a batalha pela atenção evoluiu de novo e outro estilo vai estar no seu lugar. O modelo vai ser o mesmo: pós-modernismo internético.

Se a concorrência por atenção é infinita, não é possível se diferenciar sendo mais ou menos explícito (não estou falando só de sexualidade), a pessoa precisa se afundar na lógica da vida online, tentando providenciar novas sensações para um público cada vez mais entediado com o que entretinha nossos antepassados.

Eu percebo que a entrada do ser humano médio no mundo virtual é uma inevitabilidade. Ao vivo ainda podemos ser bem parecidos com o que nossos pais e avós eram, mas quando entramos na internet, nossos interesses vão para lugares até então desconhecidos. A desconexão está acontecendo diante dos nossos olhos, o ser humano offline e o ser humano online estão se tornando espécies diferentes. Ninguém nos preparou para o que aconteceria com nosso cérebro depois de tantas possibilidades novas de entretenimento e socialização.

Essas lives malucas são um sinal do que vem por aí. O que exatamente as pessoas vão fazer na internet pode mudar, mas a ideia de que vamos acabar desconectando o ser humano real do ser humano virtual me parece muito clara. As possibilidades do mundo virtual são infinitas, e estamos vendo o limite do que dá para fazer tentando buscar interesses da vida real dentro da internet. Ficar pelada não funcionou, ficar oito horas seguidas repetindo três ou quatro frases funcionou.

Eu não estou prevendo algo como a Matrix, eu estou prevendo que no futuro, todo mundo vai viver duas vidas ao mesmo tempo. E as duas não vão se conversar. O curioso é que provavelmente o NPC vai ser a pessoa vivendo fora do mundo virtual… um boneco que faz o que é esperado dele para não incomodar governos e corporações e não atrapalhar a vida “mais interessante” dentro do computador.

Para dizer que sexta-feira não é dia para esse tipo de texto, para dizer que viu inteiro o vídeo, ou mesmo para dizer que eu sempre tenho que falar de pornografia (a internet é isso): somir@desfavor.com

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Comments (18)

  • Quando eu vejo esse tipo de coisa cretina virando moda, o que mais me aborrece é saber que logo mais já irá aparecer outra, ainda mais imbecil. Porque sempre vem. E, falando nisso, será que caberia um texto sobre as modinhas passageiras mais idiotas de todos os tempos?

  • A Pinkydoll está para 2023 assim como o Intocável mor estava para 2013.
    E cabe lembrar que a Greta Thumberg é a Rachel Sheherazade do ambientalismo (com bem menos bagagem cultural e com o mesmo grau de autismo, é claro).

  • Desde que não seja uma fonte de renda ilegal, consigo aceitar todas as fontes de renda, normais e bizarras. O que me dá um certo medo é a audiência. Uma grande audiência que consome este tipo de conteúdo. Um pouco sinistro, não?

  • Como alguém encontra tempo para conhecer esse tipo de conteúdo?
    Abri, mal consegui ver por 5 segundos. Me dá nos nervos, irrita imensamente ver algo desse tipo.
    (tá, devo ter problema, mas não consigo nem ver para avaliar do começo ao fim)
    Algo assim só existe porque tem quem assiste.
    Quem vê isso é 100% responsável por isso existir.

  • Não tenho Tiktok (conheci essa moda estranha pelo SFO), mas notou que nos vídeos dela ela fica com um milho de pipoca segurado na escova, e ela troca sempre que estoura?

  • “conseguir a massa crítica de pessoas te assistindo para fazer sucesso”
    Você já ouviu falar da regra dos 1000 fãs verdadeiros?

    • Sim, é algo que faz muito sentido. Se você tiver um pequeno, porém muito fiel grupo de fãs, é difícil ficar rico, mas costuma ser o suficiente para se sustentar.

      Interessante você puxar esse assunto, me fez pensar em outra coisa: até onde a humanidade pode ir com essa história de 1000 fãs até os grupos começarem a se cruzar? Se todo mundo virar ultracriativo nas costas de uma IA, quem vai ser fã de quem?

  • o melhor nickname do mundo

    Não conhecia esse negócio até ler o texto, bons tempos, mas essas bizarrices me parecem coisa de gente desesperada, você não precisa se submeter ao ridículo e ao degradante pra conseguir uma renda legal com internet.
    “Ain fulano ganhou milhões pra sacudir a bunda e mergulhar numa banheira de bosta” E daí? Tem muita gente ganhando bem pra falar sobre ciência, literatura, esportes, filmes etc. Nem precisa mostrar o rosto, pode só narrar. Aliás, dá pra contratar um narrador baratinho no Vintepila. Com a atual tiktokzação do Youtube, esta é a melhor época pra virar youtuber. Tem um monte de youtuber pequeno viralizando com os Shorts.

    • Então, é que é uma pequena parcela da humanidade que realmente consegue produzir conteúdo original ou pelo menos bem feito. Eu vejo muito imitador produzindo conteúdo que sequer entende. Não é humilhante, mas é algo difícil de sustentar: quando acaba a novidade sobram aqueles que conseguiram conquistar uma audiência mesmo. O resto volta para a pancadaria em busca da nova moda, e a nova moda pode ser mais e mais humilhante… sapo na panela.

  • “O curioso é que provavelmente o NPC vai ser a pessoa vivendo fora do mundo virtual… um boneco que faz o que é esperado dele para não incomodar governos e corporações e não atrapalhar a vida “mais interessante” dentro do computador.”

    Esse final me pegou. E pensando bem, já não é assim?

    • Eu entendo que atualmente a pessoa se preocupa com a persona virtual para não receber punição na pessoa real. Mas isso pode virar quando mais e mais do que somos estiver online.

  • Só comentando que eu me sinto burra por nunca ter pensado nesse tipo de coisa antes. Quem disse que uma ideia rentável necessariamente precisa ser sobre algo inteligente?

    É idiota? É. Mas com certeza é muito menos humilhante fazer cosplay de waifu e ficar parada só falando coisas repetitivas do que se arreganhar toda numa câmera.

    Se bem que a onda de ASMR meio que foi um sinal de que algo mais evoluído nesse sentido poderia surgir…

    • Mas era imprevisível, creio eu.

      O ASMR já tinha toda essa cara de internet pós-moderna, mas eu acho que a sexualização extrema que virou o ASMR distraiu a gente, parecia algo mais tradicional.

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