Previsibilidade.

1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 11.

A sequência numérica acima é um tanto estranha, não? Talvez até incômoda para alguns de vocês. Tudo seguia um padrão lógico até o último elemento. Faltou o número 10 para fazer sentido. Agora, se eu tivesse avisado antes que ia escrever uma sequência de números sem usar nenhum zero, não geraria nenhuma surpresa.

Agora, já parou para pensar o porquê de você esperar o 10 depois do 9 se ninguém te disser nada sobre uma sequência de números? Ninguém nasce sabendo essa lógica sequencial específica. Se por um acaso você crescesse num mundo onde o símbolo do 3 e do 4 fossem invertidos, a sequência 1, 2, 4, 3, 5… seria totalmente natural. Você ainda mostraria três dedos para exemplificar o símbolo 4, e quatro dedos para o símbolo 3. Tudo continuaria funcionando normalmente, apenas o “desenho” do número que mudaria.

Não é à toa que dependemos tanto de padrões aprendidos: se deixar a mente humana solta, não é tanta coisa assim que é óbvia para todo mundo. Cada pessoa tem a capacidade de criar lógicas super consistentes com símbolos, ideias e sons totalmente diferentes. Os padrões são essenciais para a comunicação entre duas ou mais pessoas seja minimamente prática.

E os padrões são baseados em previsibilidade: a forma como a inteligência funciona neste planeta depende e muito de prever o próximo item de uma sequência. Humanos, cães, golfinhos, polvos, papagaios, formigas e tudo mais que tem um cérebro dedicado a receber e processar estímulos bebem da mesma fonte: reconhecer padrões e tentar prever o que vai acontecer.

O ser humano calha de ser o animal mais eficiente nesse processo. Não só por poder do cérebro, mas pelo conjunto da obra do nosso corpo. Temos imensa habilidade de reconhecer padrões e fazer previsões, habilidade e força para interagir com boa parte da matéria disponível, e como se não fosse o suficiente, ainda temos a capacidade de agir em conjunto.

Mas a base ainda é a mesma: prever o que vai acontecer. Um cachorro analisa o padrão de deitar e rolar e o conecta com receber comida. Ele está prevendo que terá uma recompensa quando faz o truque. Inteligência é uma forma de colocar a mente pelo menos algumas frações de segundo no futuro. Dadas as leis deste universo, isso se provou muito eficiente.

Como a física, a química e a biologia são uma sequência de eventos mais ou menos previsíveis, existe uma boa dose de consistência na realidade: se o macaco pelado colocou a mão no fogo uma vez e doeu muito, pode apostar que se colocar de novo vai doer de novo. O fogo não deixa de ser extremamente danoso para matéria orgânica aleatoriamente. As regras são muito estáveis: se você aprendeu uma vez, a chance de o aprendizado ser válido são muito altas.

Tanto que para a maioria dos seres vivos nesse mundo, boa parte do conjunto de instruções para se manter vivo vem do instinto: comportamentos internalizados. O instinto da maioria dos bichos é dar no pé quando sentem dor. Pode escrever isso no seu DNA sem medo: se doeu há 10 milhões de anos atrás, tem tudo para doer hoje. E se sair de perto da fonte de dor é o que te mantém vivo para se reproduzir, é essa a regra que vai ficar marcada. As leis universais são estáveis.

Quando olhamos para o espaço, quanto mais distante o objeto observado, mais antigo ele é. Nossos melhores telescópios conseguem observar coisas do jeito que eram dez ou mais bilhões de anos atrás. E tudo parece seguir as mesmas leis da física que temos agora: independentemente da distância ou de quanto tempo no passado. Some-se a isso nossos estudos sobre as menores escalas da matéria: por mais que existam vários elementos complicados de entender na física quântica, a coerência é imensa. Mesmo com toda a ideia de imprevisibilidade dentro dos átomos, o resultado deles na matéria visível é consistente.

Essa estabilidade gerou a noção de previsibilidade. E é a previsibilidade que permite toda a complexidade que vemos ao nosso redor: seu corpo é uma máquina que depende da reatividade do oxigênio para funcionar. Foram bilhões de anos de evolução “confiando cegamente” que respirar oxigênio geraria energia para as células funcionarem. O corpo humano foi construído pedacinho por pedacinho prevendo que as regras da natureza nunca mudariam. Até agora deu muito certo confiar nisso.

Pensamos em padrões e tentamos prever o próximo passo porque a natureza nos permitiu isso. Vivemos numa realidade previsível. Mas é claro, isso não quer dizer que não cometamos erros nessas previsões. Eu diria até que boa parte da experiência de vida de um ser humano é baseada em errar terrivelmente suas previsões. Porque quanto mais complexos são os padrões que você quer prever, maior a chance de erro. Maior a chance de você não perceber um ou mais elementos da sequência.

E como demonstrado logo no começo deste texto, a gente também aprende muitos padrões por conveniência social. A realidade pode ser muito estável, mas quando tem tantas partes em movimento como num cérebro humano, começa a ficar impossível fazer previsões perfeitas. Vamos nos acostumando a “decorar” sequências que já foram estudadas por outros antes de nós para não ter que ficar reinventado a roda todos os dias.

Ou seja: a não ser que você tenha experiência direta com o assunto, você provavelmente está imitando a previsão de outra pessoa. Novamente, olhe para o ser humano e olhe para uma capivara, por exemplo: o nosso sistema de previsões compartilhadas é muito útil, fez a gente ir mais longe que qualquer outro animal deste planeta é sequer capaz de imaginar.

Terceirizar previsões foi uma excelente ideia. A gente ganhou uma espécie de instinto em tempo real. Não precisa chegar no seu DNA para funcionar, basta ter contato com outros seres humanos. Comunicação é a nossa forma de dividir previsões. Outros animais fazem isso, é claro, mas não na velocidade estonteante que o ser humano é capaz de fazer. Em pouquíssimo tempo fomos da teoria da energia nuclear para a informação extremamente confiável de que não devemos ficar perto de material radioativo. Não precisou de uma extinção em massa para selecionar os indivíduos que fugiam de radiação (até porque ela é invisível), bastou uma meia dúzia de cientistas morrendo terrivelmente para confirmarmos essa previsão e compartilhá-la com o resto da humanidade.

“Tem algum ponto no seu texto, Somir?”

Não necessariamente. Mas se você quiser algo para mastigar depois, considere o que é a ciência: um sistema muito bem bolado para gerar previsões. A ciência analisa padrões da forma mais precisa possível e a partir deles, desenvolve previsões que precisam ser confirmadas por mais análises. Quando encontramos essa sequência, temos uma Teoria. Com letra maiúscula mesmo, porque no jargão científico Teoria é algo muito mais sério e confiável que no linguajar popular. Uma Teoria é algo que vem depois de muito estudo e mais importante: depois de confirmarem várias vezes as previsões que ela fez.

Porque aí que está a graça da coisa: a previsão. Tem muita coisa na ciência que é pura especulação, exercícios intelectuais muito interessantes, mas que não conseguem resolver a parte da previsibilidade. Ninguém em sã consciência vai construir um foguete e colocar gente dentro baseado numa ideia que nunca gerou confirmação de suas previsões. Na verdade, essa é a regra do jogo: preveja e confirme. Previu e confirmou várias vezes? Siga em frente no mundo real.

Previu e não confirmou? Oras, de volta ao estudo, caro cientista. Resultado negativo é um resultado mesmo assim. Informação válida, só não era a informação esperada. Quando eu digo que é um sistema muito bem bolado para gerar previsões, eu estou querendo dizer que o método científico vai muito além de gente com jaleco branco dentro de um laboratório: é um sistema de pensamento muito bem adaptado à realidade.

As regras da natureza são estáveis, mesmo as que não compreendemos ainda. Se os quarks dentro do átomo variassem seu modo de funcionar aleatoriamente a cada minuto, nada do conhecemos existiria. Nem mesmo a gente para conhecer qualquer coisa. Na verdade, tudo o que nos cerca depende dessa estabilidade imensa. Mude uma variável e o universo explode (ou implode, sei lá).

O jogo é esse: previsões bem-feitas baseadas em informações bem estudadas. O resto é chute, é pensamento supersticioso. E com base nos últimos séculos do desenvolvimento humano, já podemos prever que o pensamento científico bateu o pensamento mágico no campo das previsões. O que as pessoas supersticiosas preveem tem uma taxa de acerto basicamente igual ao aleatório. O que as pessoas científicas preveem vai passando dessa faixa aos poucos até chegar em fatores de confiança altíssimos, suficientes para apostar sua vida neles.

O pensamento científico garante que seu teto não desabe, que sua comida não te envenene, que seus remédios curem doenças… não porque seres humanos superiores o desenvolveram, mas porque obedece às regas universais de estabilidade. Analise e preveja, confirme se a previsão deu certo e só aí ensine os outros a prever a mesma coisa. Funciona porque a realidade é literalmente essa. Não é escolha, é inescapável. A gente é feito para prever o que vai acontecer, a gente existe porque as previsões são consistentes, e a gente evoluiu de mãos dadas com a qualidade dessas previsões.

É curioso como o cientista sério respeita muito mais a “criação” do que o supersticioso. Um aceita as regras que lhe foram impostas e faz o melhor possível com elas, outro fica sonhando em quebrar todas elas de acordo com seus desejos pessoais. Se eu fosse um deus criador, eu acho que me sentiria muito mais respeitado e reverenciado por um cientista do que por qualquer fiel berrando em igreja… o pensamento religioso e/ou supersticioso é muito mais rebelde e ingrato com um Criador do que o científico.

O nosso mecanismo para lidar com a realidade é análise de padrões e previsões. Não temos outra opção. Nunca tivemos.

Para me chamar de determinista sorrateiro, para dizer que previu que meu texto seria chato, ou mesmo para dizer que hoje é feriado e vai descansar: somir@desfavor.com

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Comments (6)

  • Só pra encher o saquito, vou comentar a previsibilidade das previsões e as limitações do conhecimento.
    1. Embora cientistas sejam profissionais do assunto, quando se trata de prever que tipo de previsões serão feitas nos próximos anos o padrão é o fiasco. Isso pode acontecer por duas razões: cientistas em geral são péssimos gestores, e nesse caso estamos falando de previsões profissionais, de cenários da atividade, ou pelo fato de que as previsões do campo geral são feitas por leigos divertidos e terceirizados, que ninguém leva a sério mas que são importantes para manter a burrice generalizada entretida. Cadê os carros voadores em 2000?
    2. O problema é que muitas áreas do conhecimento não têm essa lógica canônica de hipótese e refutação. Na verdade em muitos estudos os cientistas criam hipóteses vagabundas só por que “hipóteses são chiques” e ninguém quer ser tratado como ralé. Mas muitas áreas importantes do conhecimento são meramente descritivas (data-driven science) ou ex-post-facto, ou seja, analisam-se padrões de eventos já ocorridos na natureza, mas que o homem não pode manipular. Muitas das Ciências Humanas, que são o calcanhar de Aquiles da humanidade e cujo desprestígio é a principal razão de todas as nossas desgraças atuais, são um exemplo primoroso.
    Sugestão de leitura: As palavras e as coisas, de Michel Foucault.
    Abs e bjs a todos.

    • As palavras e as coisas é um livro maravilhoso! Sugiro também microfisica do poder e arqueologia do saber como leituras complementares.

    • Essa frase é pra anotar. Não sabia quem era David Hume e, ao pesquisar no Google, fiquei impressionado que ele tenha entrado na universidade com apenas 12 anos! E, realmente, quanto melhor nós ficamos em perceber padrões, mais certeiras ficam as nossas previsões e mais podemos evoluir como espécie.

  • Padrões.

    Pegue três porquinho e marque ele com os números 1, 2 e 4.
    Solte eles em um supermercado, sente-se aproveite.

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