Gurus da negação.

O coach Pablo Marçal se manifestou publicamente pela primeira vez sobre a morte de Bruno da Silva Teixeira, que prestava serviços para uma empresa da holding dele. O jovem de 26 anos sofreu uma parada cardíaca durante uma maratona de rua realizada pelo grupo empresarial comandado pelo coach, no Alphaville, em São Paulo. Pouco antes da corrida, Bruno gravou um vídeo em que revelava uma mudança repentina na distância da prova, sem o conhecimento prévio dele, de 21 km para 42 km. “Onde eu fui me enfiar?”, disse ele, na gravação. LINK


As pessoas continuam caindo em papo de guru, e continuam ignorando ciência básica. Desfavor da semana.

SALLY

Existem muitas formas para perceber que determinada escolha/caminho não é o melhor para você mas, ao que tudo indica, as pessoas estão desaprendendo a utilizar esses critérios e, cada vez mais, tomando decisões tiradas da bunda. Toda semana a gente se choca com a estupidez humana galopante e crescente, então, hoje queremos tentar entender o motivo.

Em vez de criticar uma ou outra decisão ruim, queremos dar um passo além e fazer uma crítica mais abrangente: as pessoas estão sem critérios para tomar uma decisão e, por isso, estão fazendo péssimas escolhas.

Não quer exista um critério único universalmente correto e o resto seja errado, há vários caminhos, tanto é que no texto de hoje eu vou por um e o Somir vai pelo outro. Mas algum critério a pessoa tem que ter para nortear suas decisões, se não, ela fica nas mãos do acaso, da sorte, do destino… e o resultado não costuma ser favorável. Quais são os seus critérios? Você os tem em mente sempre que vai tomar uma decisão importante?

Um dos principais critérios que eu uso para nortear minhas decisões envolvendo metas concretas é a ciência. A ciência vem sendo testada, comprovada e aprimorada por séculos e eu não penso jogar fora essa ferramenta que minha espécie gastou tanto tempo para desenvolver e sempre nos ajudou muito. A ciência sobreviveu por tanto tempo por algum motivo: ela funciona. E o brasileiro, meus queridos, o brasileiro odeia a ciência.

Vocês lembram de um pessoal fazendo um discurso enfurecido contra o negacionismo científico lá em 2020? Chamando de ignorante quem duvidava de vacina, chamando de imbecil quem questionava aquilo cientificamente comprovado e chamado de idiota quem abraçava aquilo que não estava cientificamente comprovado (como cloroquina)? Eu lembro, pois eu faço parte desse grupo. E estou mais ofendida agora do que em 2020.

Surpreendentemente, muitos desses virtuosos da ciência que a defendiam fervorosamente em 2020 estão fechando os olhos e até endossando sucessivos ataques à ciência e, em contrapartida, estão excessivamente tolerantes com o cientificamente não comprovado. Fica a impressão de que não queriam defender a ciência, queriam atacar o político que estava no poder.

Negacionista é uma merda, mas ao menos a pessoa é exatamente aquilo que demonstra: ignorante. Ela nega a ciência, veste essa camisa e mantém seu discurso. Pior é o defensor da ciência circunstancial, que apenas a usa para ostentar virtude e atacar o desafeto político da vez. Esses são terrivelmente hipócritas, canalhas e manipuladores.

Meu ponto é: no Brasil, quase todos, de alguma forma, são negacionistas. O brasileiro adora uma mandinga, uma simpatia, um misticismo. Adora um atalho, um facilitador, um privilégio. O brasileiro adora se sentir superior e questionar aquilo que não tem bagagem para questionar. Vamos pegar como exemplo a notícia que ilustra o tema de hoje. A ciência só exaltada quando lhe convém.

Falando da notícia que ilustra esta postagem: Psicologia é uma ciência, coaching não. Psicologia passou por experimentos, evoluções, aprimoração e desenvolveu técnicas. Coaching não. Psicologia demanda formação universitária, que filtra alunos através de provas de conhecimento e atendimento supervisionado. Coaching não.

Então, se você tem questões na sua vida que precisa resolver, qual parece ser o caminho mais promissor: um profissional que estudo para isso, foi supervisionado e treinado por outros profissionais através de uma ciência ou uma pessoa randômica, sem qualificação nem embasamento científico, que faz as coisas experimentalmente da sua cabeça?

O brasileiro vai no coaching, pois seu critério de decisão é o mesmo de um cachorro: vai no benefício que lhe parece mais imediato. Coach promete mudanças, promete sucesso, promete dinheiro. A psicologia te responsabiliza pelos seus atos e realiza um trabalho de base e a longo prazo para que você mude sua vida. Muito mais fácil correr atrás de coach que te diga o que fazer e delegar a responsabilidade pela sua vida a um terceiro, não é mesmo?

“Mas Sally eu não acredito em psicologia”. Psicologia é uma ciência, se você não acredita, parabéns: negacionismo científico.

Mas, mesmo não “acreditando na psicologia”, a ciência poderia ajudar a tomar uma decisão melhor nesse caso: o grupo foi convidado a correr 21km, o que é uma distância absurda. A maratona São Silvestre, tradicional no Brasil, que demanda muita preparação, tem 15km. Daí uma pessoa que se baseia na ciência para tomada de decisões já teria visto um sinal de alerta e pesquisado um pouco mais: como pode uma pessoa sem formação na área organizar uma atividade física destinada a atletas profissionais?

Mas, a coisa piorou: no último minuto, dobraram o trajeto, fazendo com que a meta do grupo seja correr 42km. Pergunte a qualquer pessoa que corre se um ser humano qualquer pode se reunir após o trabalho e correr 42km. Pesquise isso à luz da ciência e você verá que não é recomendado. Verá também que quem propõe um desafio e, no dia, dobra a distância, não tem qualquer preparo ou comprometimento com o bem-estar dos participantes.

Por sinal, quem leva pessoas para uma montanha com aviso de intempérie, ignorando alertas climáticos obtidos através da ciência, não deveria ter direito a credibilidade. Quem acaba resgatado por bombeiros, colocando em risco a vida do grupo por desacreditar de previsão do tempo e seu impacto não deveria ser levado a sério. Em qualquer outro país um filho da puta como esse estaria preso, e não ganhando 3 mil reais por cada consultoria que faz.

E essa notícia é apenas uma ilustração de algo maior. O negacionismo científico pode adotar diversas formas socialmente aceitas se oferecer um atalho ou um facilitador e, justamente por isso, não será apontado pela maioria das pessoas.

Pode ser cheirar pimenta, pode ser ir para o fundo do mar com um submarino com material inadequado, pode ser acreditar no “golpe do gás” do Uber, achando que existe um gás que só afete o passageiro do veículo e não motorista, pode ser através da crença na homeopatia ou qualquer outra versão socialmente aceita de algo que não tem comprovação científica. É a mesma coisa que usar cloroquina ou dizer que vacina causa autismo, só que em uma versão aceita no seu grupo e por isso não parece tão ruim.

Pois bem, hoje estou aqui para te lembrar que ignorar a ciência é sempre uma péssima escolha, mesmo que seja considerado bacana no seu grupo. Se achar em condições de contrariar séculos de pesquisa, desenvolvimento e evolução científica acreditando no que a ciência não prova ou desacreditando do que ela já provou sempre terá consequências ruins.

Não seja essa pessoa: mesmo que a sua bolha aplauda algo que vá de encontro com o que a ciência atesta, mantenha distância. A ciência sabe melhor do que você e sabe melhor do que o seu entorno. Tenham critérios, não decidam no impulso. Vamos fazer jus ao título de animais racionais?

Para dizer que não é um animal, para dizer que não é racional ou para dizer que jurava que Somir ia defender a ciência: sally@desfavor.com

SOMIR

Ciência é conhecimento. Conhecimento é poder. Poder substantivo e poder verbo: quem sabe usar a ciência para formar uma boa base de informações sobre a realidade ao seu redor não só se torna uma pessoa mais forte, por tomar decisões mais lógicas e eficientes, como também se habilita a fazer muito mais coisas.

A ideia de gurus me deixa extremamente irritado porque é uma perversão do conceito de poder. Ao invés da pessoa desenvolver suas capacidades para evoluir, ela simplesmente entrega tudo na mão de um terceiro. Quem segue gurus (de comportamento, de trabalho ou “espirituais”) está apostando ao invés de investir: não constrói uma base própria da qual pode crescer na vida, apenas arrisca para ver se outra pessoa pode resolver seus problemas.

E por mais que seja incômodo, é importante falar sobre o papel da vítima na tragédia: em tese, os gurus usam de várias estratégias de pressão social para controlar seus seguidores, mas raramente os colocam diante de ameaças físicas inescapáveis. Se você analisar friamente, ninguém forçou o rapaz a correr uma literal maratona sem treinamento algum, ele simplesmente resolveu aceitar o desafio. Faltou ciência.

Ciência que diz que o ser humano evoluiu para ter uma resistência bem maior que a média dos outros animais na hora de correr, mas que tudo tem limite. A hipótese mais provável para essa capacidade humana é que foi o nosso diferencial na hora da caça em tempos ancestrais: não corríamos mais rápido que a maioria das nossas presas, mas corríamos por mais tempo que eles. A mesma coisa vale para nossos antigos predadores: com algum tempo de vantagem, conseguíamos manter distâncias grandes entre nós e o que queria nos devorar. E aqui está o foco da ideia, só precisamos correr por mais tempo que outros animais, não correr indefinidamente.

Qualquer uma das presas ou predadores com os quais evoluímos em conjunto não ia aguentar mais que dez minutos de perseguição. O ser humano é resistente, mas nunca precisou ser resistente ao ponto de correr 42 quilômetros. Isso é abusar, e muito, do que o nosso corpo entrega na configuração de fábrica. Quer correr uma maratona de forma segura? Treine por alguns anos. Nosso corpo não foi planejado para essas distâncias.

Aliás, a própria ideia de maratona já conta tudo o que precisamos saber: os 42 quilômetros são baseados na jornada de um soldado grego da antiguidade que correu essa distância para dar uma informação ao seu general e… morreu na sequência. Morreu porque era uma distância absurda para se correr! Conhecimento superficial de história já daria um bom aviso sobre o que significa correr essa distância, não?

Essas tangentes estão aqui no texto por um motivo: um pouco de informação já te dá ferramentas para combater as imbecilidades tão comuns nos discursos de gurus. Não precisa ser o meu papo nerd de evolução ou mitologia grega, qualquer informação bem estudada na mente da pessoa poderia dar resistência contra essa mentalidade abusiva desses gurus modernos. Quando você tem informação e confia na solidez do que realmente estudou, começa a enxergar pessoas como Pablo Marçal pelo que realmente são: aquele misto nojento de narcisismo e psicopatia que preda o ser humano há milênios. Gente maluca extremamente confiante.

Eu admiro muitas pessoas por diversos motivos, mas nenhuma delas passa por cima do meu bom senso. Porque o meu bom senso não é achismo, é baseado em estudos e interesses sobre os mais diversos temas do conhecimento acumulado da humanidade. Eu erro como todo mundo, mas ninguém me convence que eu sou inferior. Sim, estou curioso para aprender o que outras pessoas sabem, mas nenhuma delas está acima de mim.

Por muito tempo eu fiquei receoso sobre essa característica ser uma forma de arrogância, mas a idade me ensinou que existem níveis seguros de consumo dessa substância: somos todos macacos pelados confusos, ninguém nasce melhor que a gente. O que muda de ser humano para ser humano é quanto tempo e energia ele coloca nas suas capacidades. Ninguém nasceu melhor que eu, as pessoas que se esforçam e usam ferramentas sólidas como o método científico merecem ser ouvidas, as pessoas que “acham” ou “sentem” são a mesma coisa que eu. Elas ficam confusas, inseguras, tem dor de barriga e batem com o dedinho no pé do sofá.

Você é tão merda quanto eu. O que eu tenho para oferecer além disso é o que eu estudei e experimentei, o que você tem para oferecer além disso é a mesma coisa. O guru é uma pessoa perigosa, porque ela realmente acredita que tem algo especial que não vem dessa fonte lógica de evolução pessoal. O guru acha que entendeu o universo sem se esforçar para isso. É um imbecil. Quem se coloca em posição de coach com fins lucrativos é só um ególatra genérico. Por mais sucesso pessoal que tenha, provavelmente conquistou o que conquistou por sorte ou estelionato.

Quando eu falo de não ser negador científico, eu estou falando também de entender como ninguém burla leis da física. Tem coisas que funcionam, tem coisas que não funcionam, e veja só, o ser humano está pesquisando e testando essas coisas há milênios. Quando eu digo para não ter gurus, não é sobre ser superior aos outros, é sobre perceber que ninguém é superior a você, não sem um contexto. E quando uma pessoa vem te dizer algo estúpido, é bom que você tenha conhecimento suficiente para entender essa estupidez. O ser humano vai te dizer bobagens infinitas, e a sua única defesa real é ter ciência do que faz sentido ou não.

Pablo Marçal é um criminoso, eu não tenho dúvidas disso. Seu senso de auto importância passou do limite e ele realmente colocou pessoas em risco abusando do poder financeiro de chefe e poder implícito de guru que tinha sobre elas. Eu vou ficar puto da vida se ele não for responsabilizado. Mas não existe remédio para narcisismo psicopático (ou, em outras palavras, síndrome de guru), então essas pessoas vão continuar nascendo e aparecendo por aí. Temos que proteger as possíveis vítimas desses malucos.

E não tem atalho. É ciência, é conhecimento e é poder. Quem entende física básica entende que não é para pular de um lugar muito alto. Quem entende biologia básica sabe que não é qualquer coisa que podemos consumir. Quem entende história básica sabe que líderes carismáticos mataram bilhões de pessoas por insanidade.

Quanto mais você aprende, menos os gurus conseguem te influenciar. E se tornar imune a eles não te faz arrogante, muito pelo contrário: te faz mais humilde. Te faz reconhecer os limites do que é ser humano, e como isso nos torna muito parecidos. Você nunca vai ser superior aos outros “porque sim”, você sempre vai ter que escolher algo para ser bom e colocar o esforço necessário para tal. Esforço prático, com objetivos.

Não adianta pisar em carvão em brasa ou correr maratona se foi um maníaco com ilusões de grandeza que te manipulou a fazer isso. Isso é sofrimento por sofrimento, é um fetiche doentio do guru de exercer poder sobre o outro, não tem lição para aprender a não ser… sair de perto desses malucos o mais rápido possível.

Para dizer que desistir é preciso, para dizer que ficou cansado só de ler 42km, ou mesmo para dizer que seleção natural existe por um motivo: somir@desfavor.com

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Comments (12)

  • Não consigo não olhar para o fato de que, nem sequer por um segundo, o senso de autopreservação tenha falado mais alto.

    O cara decidiu “hoje vou meter QUARENTA E DOIS KM de corrida”, e não pensou por um segundo que fosse, que pra fazer isso tem que ter anos, ou mesmo décadas de preparo.

    Não consigo entender qual foi a chavinha que caiu na cabeça desse ser, que impediu de notar que esse tipo de loucura pode terminar exatamente como terminou. É uma coisa óbvia, não precisa ser maratonista olímpico pra saber.

    Olha, já vi gente burra por aí nesse mundo, mas puta merda!

    • É essa cultura nociva de que se você quer você pode, como se com um curso rápido com qualquer zé cu você pudesse dominar sua mente para se sobrepor à matéria.

  • Famoso Ninguém também conhecido como Ninguém Famoso

    Não lembro onde foi que eu vi a frase de que “Por trás de muitos corpos no Everest tem um coach motivacional”. Não conhecer os próprios limites é extremamente perigoso.

  • Aproveitando a deixa: quais leituras (ou outras mídias) vocês aqui do Desfavor recomendam pra quem gostaria de entender melhor ciência, o método científico etc.?

    • Eu sou muito fã da Natália Pasternak e seu Instituto Questão de Ciência. A forma diretona que ela usa para falar e explicar me agrada demais, mas talvez não agrade a todos.

      Para iniciantes, o canal do Átila Iamarino no youtube e a Revista Galileu são ótimos.

      • Desde aquela entrevista no Jornal da Cultura em que a Natália mandou a real sobre os retardados que não usavam máscara na pandemia, ela ganhou minha admiração.

        “TEM GENTE MORRENDO”. Vai querer evitar o estresse e usar de humor pra avisar ao retardado do seu pai/primo/tio/avô pra usar a puta da máscara?

        Ela demonstrou bem que não dá pra ter paciência com quem tem orgulho de ser burro.

  • Ao menos os “pupilos” da montanha tiveram o bom senso de largar esse filho da puta e ir embora antes que desse alguma merda mais grave. Ainda tiveram que ser resgatados pelos bombeiros, mas felizmente, ninguém morreu.

    Agora morreu esse jovem na mão desse filho da puta. E depois? Parece a vocês que ele vai preso algum dia?

    Por alma de quem é que esse filho da puta e os filhos da puta que o ajudam decidiram DOBRAR a distância?

    Não sei o estado mental do rapaz no dia dessa corrida, mas o senso de auto-preservação deveria ter ditado que ele abandonasse esse “desafio” imediatamente.

    Brasileiro anda tão fodido e desesperado pra subir na vida que não se preocupa com a própria saúde…

  • Acho que nem é tanto questão de ciência, mas de bom senso mesmo.

    Cadê o senso de preservação desse povo?

    Eu sei que é importante ter força de vontade, não se acomodar e tal, mas isso é loucura.

    Brasileiro está com o péssimo hábito de distorcer ambição, pensar por si próprio e ter iniciativa com correr riscos extremos e desnecessários só pra dizer que pode alguma coisa, credo.

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