Se dê um desconto.

Tenho visto muito material de autoajuda e coach sobre se cobrar menos e aprender a priorizar, “ensinando” que é ok flexibilizar algumas coisas, abrindo mão de qualidade ou quantidade, em nome do seu bem-estar e/ou da sua saúde mental. Algo que certamente tem algum nome moderninho em inglês, mas que eu escolhi chamar de “Se Dar um Desconto”.

A ideia é legal, a premissa é bacana, a maior parte das pessoas de fato vive estressada e com muitas demandas. Talvez reduzindo a carga de alguma delas se aumente a qualidade de vida. O problema é: o discurso é superficial, para por aí: faça menos, se cobre menos. E o resultado não parece ser dos melhores. Vejo várias pessoas tentando se dar um desconto com resultados bem ruins que parecem só aumentar o estresse da pessoa.

O ponto é: quando e como se dar um desconto? A grande dificuldade reside aí, não em saber que eventualmente temos que escolher nossas batalhas.

No geral a pessoa não faz péssimas escolhas por desconhecer esta premissa: a maior parte dos adultos sabe que não pode dar conta de tudo. A maior parte das péssimas escolhas que vejo é uma dificuldade na hora de escolher as batalhas: o que priorizar, como e quando.

Então, resolvi compartilhar com vocês algumas ideias que provavelmente não servirão para todos, mas que, talvez, com sorte, ajudem alguns de vocês. Poderia ser uma palestra enfeitada cheia de termos em inglês, poderia ser um vídeo de autoajuda alegre e monetizado, poderia ser um estilo de coaching cheio de alegorias e frases de efeito, mas felizmente eu tenho vergonha na cara, então, é apenas um texto gratuito.

O primeiro passo para Se Dar um Desconto sem fazer caquinha com a sua vida é de onde vem essa decisão. Se a vida está atolada, se o urgente está te tomando tanto tempo que não sobra nada para o importante, se você sente que, como está, está te fazendo mal, é necessário reconfigurar sua vida. Mas que isso venha de uma decisão racional, pensada e ponderada.

Vejo muita gente, mas muita gente mesmo, tomando uma decisão de Se Dar um Desconto em momentos de saturação, de forte emoção, de putez, endossado por esse discurso coach: “eu não posso me cobrar tanto, eu tenho o direito de não fazer isso!”. Não costuma vir coisa boa daí… Decisões que partem de um ponto de saturação não costumam ser as melhores.

Deixar a panela de pressão interna ferver geralmente faz com que pessoas tentem se sentir melhor buscando alívio imediato, afinal, a situação já está insuportável, é preciso uma gratificação rápida que compense isso. Pode ser em uma roupa cara (“eu trabalho muito, eu mereço”), em deixar de cumprir uma obrigação (“eu estou cansado, eu mereço”) ou em comprar uma briga pois (“eu sou uma boa pessoa, eu não mereço ouvir isso”). Spoiler: gratificação imediata compensatória não é Se Dar um Desconto, é se dar um tiro no pé.

O argumento de se permitir falhar, se permitir produzir menos, se permitir não ser perfeito acaba sendo usado para justificar um monte de bobagem que as pessoas fazem – e quando as consequências catastróficas se apresentam, isso só reforça na cabeça da pessoa que sim, ela tem que ser perfeita e se exigir aquele tanto, se não dá merda. Bem, se não é por aí, qual é o caminho?

Se Dar um Desconto não é deixar saturar e explodir em um ato de rebeldia, insubordinação ou irresponsabilidade. Se Dar um Desconto é justamente o contrário: escolher suas batalhas para nunca chegar nesse ponto de saturação.

Portanto, é um ato preventivo. Se você estiver inclinado a usá-lo de outro modo, eu recomendo que respire fundo e pense duas vezes, pois as chances disso escalar para um problema que vai te estressar ainda mais (em vez de aliviar) são enormes.

Além de ser preventivo, é um ato que precisa ser continuado, ou seja, não basta um ou outro ato isolado, de vez em quando: “hoje eu não vou cozinhar, vou me dar um desconto”. Isso não é Se Dar um Desconto é um remendo. Se a obrigação de cozinhar continua presente na sua vida, ela vai continuar te saturando. Se Dar Um Desconto seria pesquisar um bom lugar que venda quentinhas de qualidade e abolir a cozinha da sua vida, ao menos por um tempo. Aí sim você teria um respiro real que te permitiria qualidade de vida. Tirar a obrigação das suas costas por um dia ou dois é apenas adiar o problema.

Se Dar um Desconto não é um objeto nem um ato isolado, é uma nova forma de funcionar, um novo sistema de pensamento, um novo hábito. Então, ainda que seja temporário, ele deve ser incorporado à rotina. Um exemplo bastante comum: uma mulher normal que acaba de ter um bebê (não uma celebridade, uma mulher normal) não vai conseguir tempo nem disponibilidade para manter a aparência ideal que ela gostaria. Durante algum tempo, enquanto esse bebê for totalmente dependente dela, seu tempo ficará reduzido.

Então, durante esse tempo, ela terá que escolher suas batalhas. Para algumas ter o cabelo em ordem é o mais importante, caso contrário se sentem um lixo. Para outras o principal é ter as unhas apresentáveis. Não importa o que é necessário para que a pessoa se sinta minimamente decente, o importante é estabelecer uma prioridade (ou quantas couberem sem estressar nem tomar tempo do bebê) e levar adiante essa rotina.

Então, Se Dar um Desconto um ou dois dias não resolve. Muito pelo contrário, acaba servindo como álibi para endossar preguiça: tudo que você está com preguiça de fazer vira um desconto. Por isso, funciona melhor se for algo continuado, diário, rotineiro. Enquanto durar a situação que está te tomando mais energia/disponibilidade, se dê um desconto. E se for uma situação permanente, se dê um desconto sempre.

Mas para isso é preciso abrir mão de algo, e na cabeça da maior parte das pessoas, abrir mão é perder. Há enorme resistência em perder, ainda que se saiba racionalmente que se está perdendo para ganhar no futuro. Então, observe desculpas, pretextos e enrolação para reconfigurar sua vida: pode ser apenas uma resistência movida por uma sensação de perda. E seja racional: se sua vida está além do que você consegue suportar com saúde física e mental, melhor perder agora algo da sua escolha do que perder mais para frente sua saúde física e mental.

Outra grande armadilha é não mensurar bem as consequências que esse desconto terá na sua vida. Quando algo nos estressa, quando algo nos sobrecarrega, quando algo nos deixa de saco cheio, a vontade de jogar tudo para o alto é enorme e, às vezes nos cega. Tudo que se quer é nunca mais ter que fazer aquilo, nunca mais ter que participar daquilo, nunca mais ter que ouvir falar naquilo.

Porém, na vida adulta, escolhas tem consequências, gostemos ou não. Você pode tentar se convencer de que não vai ser tão ruim, de que vai dar para lidar ou até de que não existirão consequências, mas a realidade não está nem aí para você e para os seus pensamentos. Portanto, eu sugiro que faça uma lista das coisas que atualmente te sobrecarregam e, racionalmente, liste também as consequências de jogar cada uma delas para o alto.

E com isso não quero desencorajar ninguém, eu já abandonei carreira depois de uma década de prática, já abandonei país, já fiz inúmeras mudanças e recomeços. Só estou ponderando que, no caso, o Se Dar um Desconto tem um objetivo claro: reduzir a carga sobre seus ombros, então, se for gerar mais estresse, não entra na categoria “Se Dar um Desconto” e sim na categoria “Vou Mudar a Minha vida”.

E tá tudo bem, é bem bacana mudar a vida. Você pode fazê-lo se sentir que é hora, mas não esperando um alívio ou que sua vida fique mais leve depois disso, pois o que vai acontecer é exatamente o contrário. Faz parte da vida ter batalhas e desafios. O que não pode é entrar em uma batalha achando que está facilitando sua vida, pois aí a pessoa entra despreparada. Se o que você precisa agora é Se Dar um Desconto, não faça nada que traga mais demandas para você. Se vai trazer complicações, você não está Se Dando um Desconto, está se dando uma batalha, um desafio, um problema. Avalie se é hora.

Por fim, meu último conselho é que você participe as pessoas da sua confiança do que está acontecendo, pois ter uma rede de apoio torna tudo muito mais fácil. Não precisa fazer disso um evento (“precisamos conversar”) nem dar peso ou formalidade, apenas converse com as pessoas da sua confiança que te cercam e informe como está se sentindo e por qual motivo quer promover essa mudança para Se Dar um Desconto. Não é pedir autorização, é comunicar.

“Mas Sally, não é óbvio que eu estou fodida, atolada, enlouquecida e sobrecarregada? A pessoa está vendo!”. Não, meu anjo, não é óbvio e muito provavelmente a pessoa não está vendo – e se está vendo, dificilmente saberá a real extensão do que você sente. Tem que falar, tem que comunicar, tem que compartilhar, se não, periga da pessoa jogar contra você sem sequer perceber.

Pessoas não tem bola de cristal, não sabem ler mentes e são muito, mas muito precárias em prestar atenção em outros seres humanos. Pessoas presumem que o outro sente/faz o que elas sentiriam ou fariam se estivessem em seu lugar. Pessoas estão cada vez mais inaptas a reconhecer sentimentos. Pessoas estão com foco de um peixinho dourado por usar muitos eletrônicos o dia todo. Então, sim, fale.

“Mas Sally, não adianta falar, ninguém ajuda em porra nenhuma”. Conheço a sensação, mas acredite, só de não atrapalhar, já é uma ajuda enorme. O fato de as pessoas compreenderem o que está acontecendo é um ótimo começo para que não te atrapalhem. Se vier alguma ajuda, que bom. Se não vier, bem, você fez a sua parte, errado está o outro em não te estender a mão. Faça a sua parte.

Não é bom de conversa? Esquece, se atrapalha ou a pessoa te interrompe? Escreva. Envie um e-mail colocando em ordem tudo que sente, suas necessidades e a razão pela qual decidiu operar essa mudança para Se Dar um Desconto, pedindo, ao final, que se a pessoa puder te ajude, pois a colaboração dela realmente fará diferença nesse momento difícil. Depois, é claro, você vai até a pessoa e comunica que enviou um e-mail por uma dificuldade SUA (mesmo que não seja) em expressar verbalmente tudo aquilo (não deixe a pessoa receber o e-mail de surpresa).

E se você tiver a sorte grande de ter uma pessoa que realmente funciona como rede de apoio, que participa e que te ajuda no que você precisar, informa e ela como ela pode te ajudar. Novamente, não é óbvio, precisa ser dito. Se dá para contar com a pessoa, diga a ela qual é a melhor forma de te ajudar.

Então, antes de promover uma mudança na sua vida com base no Se Dar um Desconto, ou seja, com base na premissa de que você precisa retirar algum peso dos seus ombros em nome da sua saúde física ou mental, faça estas perguntas a você mesmo:

– Eu estou tomando esta decisão de cabeça quente ou analisei racionalmente esta mudança?
– Eu posso incorporar esta mudança na minha rotina de forma permanente?
– Eu avaliei as consequências dessa mudança e posso lidar com elas?
– Os benefícios que essa mudança me gera são maiores do que suas eventuais consequências negativas?
– Quais são as pessoas de minha confiança para as quais eu deveria comunicar tudo isso antes de começar e como elas podem me ajudar?

Só depois de responder a estas perguntas de forma racional, em um estado calmo, é que você deve começar a pensar em agir, Se Dando um Desconto no que quer que seja. Aí sim você realmente vai tomar uma decisão que te alivie de formam permanente e eficaz, não um alívio temporário ou algo que te traga mais dor de cabeça.

Por último, lembre-se sempre que a vida não é estática, portanto, o que você decide hoje, merece ser revisitado no futuro. Então, não basta Se Dar um Desconto e se manter imutável nessa condição. A vida muda, a realidade muda, as pessoas mudam. De tempos em tempos revisite suas necessidades, suas metas e suas demandas e analise como está a balança: talvez seja hora de se dar mais descontos, talvez seja hora de se dar menos descontos.

E, se quiser a ajuda de completos estranhos, deixe seu comentário (pode ser anônimo) aqui. Às vezes de onde a gente não espera nada sai algo de bom.

Para dizer que o Somir te dá Descontos toda sexta, para dizer que dá muito trabalho fazer desse jeito e prefere faltar aos seus compromissos mesmo ou ainda para dizer que eu sou muito burra pois poderia cobrar caro por isso e teria otário pagando: sally@desfavor.com

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Comments (6)

  • “Algo que certamente tem algum nome moderninho em inglês, mas que eu escolhi chamar de ‘Se Dar um Desconto'”.

    Cut yourself some slack.

    • Essa é a expressão normal, mas tem outros termos para definir esse “estilo de vida”, como “low bar lifestyle” e outros…

  • Tem gente precisando de tarja preta até pra se levantar da cama todas as manhãs e encarar mais um dia de vida…

  • “ain Sally é só eu tomar um remedin que passa tudo”

    Aí a pessoa vive drogada com psicotrópico pra tankar, sem falar que hoje em dia tem muito “psicoach” por aí, viu (psicólogos que só sabem arrotar ao paciente obviedades como “tem que correr atrás”, “tem que ser mais positivo” e foda-se o contexto das queixas do paciente, resolve tudo aí no “tem que ter força de vontade”)

    • Remédios tem um custo muito alto (e não estou falando só do preço). São um SOS para ajudar a pessoa se mexer e conseguir resolver o problema, não uma muleta para ajudá-las a cruzar a vida. Não dá para passar o resto da vida à base de remédios. O que remédio faz é desligar o alarme de incêndio, mas o fogo continua lá, queimando e destruindo tudo, só desliga a sirene. Mas as pessoas não estão prontas para essa conversa, vão descobrir isso do pior jeito, em uma ou duas décadas.

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