Manspreading.
Como fizemos uma semana temática, o meu texto a pedido dos leitores de fevereiro caiu em março. Um ser iluminado não-identificado sugeriu falar sobre manspreading, talvez depois de ver alguma matéria cretina na internet. Então, como os textos sugeridos devem nos tirar da zona de conforto, vamos falar sobre… homens que se sentam com as pernas muito abertas em locais públicos.
Manspreading é mais um dos neologismos da língua inglesa para lidar com o admirável mundo novo da problematização de comportamentos masculinos. A frase anterior parece meio debochada, e é verdade: é meio debochada e meio realista, porque o homem realmente tem vários comportamentos desagradáveis na vida em sociedade. Não sou contra revisarmos a forma como lidamos com o mundo, especialmente com as mulheres. Podemos fazer melhor e foram, realmente, muitos e muitos séculos sendo folgados, agressivos e desinteressados na forma como tratamos mulheres.
Mas antes de tudo, é importante discutir a mecânica da coisa:
Homens tem uma tendência de sentar-se com as pernas mais abertas. Como é de conhecimento geral, existe um grupo de órgãos expostos bem na nossa virilha, e eles não são imunes à gravidade. Quando nos sentamos, os testículos ficam entre as coxas, especialmente quando faz calor. Eu já escrevi um Desfavor Explica sobre saco, mas em resumo: testículos podem ser puxados de volta pelo corpo quando a temperatura está mais baixa. Num país tropical amaldiçoado por Deus, a tendência é que eles fiquem mais tempo para fora, aumentando o volume do saco escrotal.
Então, sim, não é incomum que seja incômodo e até mesmo doloroso manter as pernas muito fechadas, é uma simples questão de dois corpos não ocuparem o mesmo espaço. Se você, ser não-portador-de-saco, não entende como às vezes homens podem ficar com as pernas juntas sem reclamar de dor e às vezes achar ruim, saiba que é algo variável mesmo. Às vezes o saco está todo de fora naquele formato que todo mundo imagina, às vezes está com os testículos retraídos naquele formato de “meia casca de noz”. Temos pouco controle sobre isso. E isso influencia em como nos sentamos.
O que, é claro, não quer dizer que precisemos nos sentar com os joelhos em dois CEPS diferentes, basta um pouco de separação para ter conforto. Eu tenho certeza de que nunca fiz manspreading em transporte público ou similares porque sempre me preocupei em ocupar o meu espaço na cadeira. Não é difícil se você não for um gigante de alto ou gordo. Tenho amigos que conseguem se sentar com as pernas muito juntas, sei que é possível, mas mesmo eu não conseguindo, o tanto que eu preciso manter elas separadas nunca me fez ocupar o espaço de outro assento.
Então, é claro que eu entendo que é falta de educação sentar com as pernas muito abertas, fazia por puro reflexo de convivência saudável com outros seres humanos, sejam eles homens ou mulheres. Mas é aqui que eu quero definir a questão que mais me incomoda no manspreading: a sexualização desnecessária. Sim, homens fazem isso de sentar com as pernas muito abertas com muito mais frequência que mulheres, e isso tem sim algumas raízes na fisiologia masculina, mas a questão aqui é essencialmente de educação para vida em sociedade, não sobre sexo.
Uma mulher que coloca a bolsa na cadeira ao lado está fazendo algo muito parecido: ocupando espaço que não é dela. Sim, na maioria das vezes elas tiram quando você se aproxima para se sentar, e mesmo que sejam bem folgadas, cedem quando você pede licença. Mas é a mesma lógica de “tecnicamente” que homens usam quando dizem que era só a mulher pedir ou empurrar a perna dele. Tecnicamente estúpido, isso sim. Não é obrigação de ninguém forçar o outro a respeitar regras básicas de convivência. Tem que sair de casa já sabendo como se portar.
Mas quando o tema começa girar ao redor de homens oprimindo mulheres no transporte público por estarem com as pernas muito abertas, a ideia de educação básica fica em segundo plano. Aí vira um comportamento do sexo masculino, o que muda completamente a forma de ver a coisa. Sexualizar um comportamento fatalmente vai misturar isso com a identidade do sexo em questão. O homem que espalha as pernas para ocupar mais que o seu lugar começa a enxergar isso como uma expressão de masculinidade.
É claro que tem reação negativa nesse contexto. Não sei como mulheres se sentem em situações parecidas, mas mesmo quando eu tomo bronca por ser “macho tóxico”, tem uma parte do meu cérebro que sorri. Reforça minha identidade. Quando, por exemplo, a Sally diz que eu não tenho coração e/ou que não sei lidar com os sentimentos alheios, eu sei que não é um elogio, mas a imagem que eu tenho na cabeça do que é ser homem tem esse componente de frieza e desinteresse no emocional alheio. Eu SEI que é crítica e algo que eu deveria melhorar, mas tem uma compensação divertida de ser visto como homem que sou. É quase que inconsciente.
Só que eu sou uma pessoa muito mais consciente sobre isso do que a imensa maioria dos meus semelhantes. Não é muita gente que consegue desenvolver um pensamento assim, não tem camada de racionalidade analisando o irracional. Quando termos como manspreading se popularizam e começam a ser tratados como algo inerentemente masculino, vocês realmente acham que o homem médio vai fazer essa mesma análise que eu fiz? Que a descarga de endorfinas criada pelo reforço da sua própria imagem sexual vai ser compreendida pelo que é?
Cria-se então um bastião de defesa da masculinidade no ato de sentar-se com as pernas abertas. O que é insano. Não tem nada a ver ser um babaca folgado que ocupa o lugar de outra pessoa no transporte público e ser homem, mas se o tema é tratado como opressão masculina, adivinha qual vai ser o efeito colateral na mente do homem médio? Achar que isso é sua identidade sexual. Sentir-se atacado em algo fundamental quando confrontado. O que deveria ser algo a se corrigir em pessoas sem vira guerra dos sexos.
Não é. É educação básica, é convivência em sociedade. Não seja uma pessoa escrota que incomoda o outro nessas situações. O saco sobrevive muito bem se suas pernas estiverem dentro das linhas do banco, não é para cruzar a perna que nem mulher, até porque eu acredito que a diferença considerável nos quadris entre os sexos muda muito o que é confortável ou não. E meio que sem querer, a ideia de repressão de sexualidade feminina criou o comportamento certo nelas em ambientes compartilhados: meninas são incentivadas a fechar as pernas quando tem gente estranha por perto, às vezes até mesmo em casa. Não é para ocupar menos espaço no ônibus ou metrô, mas acaba funcionando por tabela.
Então, sim, existem componentes específicos de fisiologia e criação de homens e mulheres nessa diferença na forma de sentar, mas esse não é o ponto aqui: o ponto é sobre ocupar espaço razoável e na medida do possível não incomodar o outro. Ninguém precisou me dizer que eu tinha que sentar com as pernas mais fechadas quando tinha gente sentada do meu lado, eu presumi sozinho porque minha criação teve várias lições e exemplos sobre respeito ao espaço alheio.
Se as pessoas não forem incentivadas a pensar por esse ângulo de espaço pessoal e convivência saudável, vamos continuar com essa discussão histérica sobre homens estarem abusando de mulheres por sentarem com as pernas mais abertas. Não tem nada a ver com abuso sexual, é falta de educação. É furar fila. É jogar lixo no chão. É não dar licença. É coisa de gente sem noção, que às vezes pode ser corrigida com educação ou alguma forma de punição, mas desde que fique claro que não é sobre um “pecado original” da masculinidade.
Tratar o tema desse jeito vai gerar resistência, vai gerar mais desrespeito, com muitos homens entendendo em seus minúsculos cérebros que abrir as pernas é uma prova de masculinidade. E muitas mulheres entendendo a mesma coisa por tabela. Apesar de tudo o que a mídia tenta empurrar hoje em dia, a maioria dos homens gostam de mulheres e a maioria das mulheres gostam de homens. O que se convenciona como comportamento de um sexo pode virar fator de atração para o outro, mesmo que de forma transversa. Ninguém me contou, eu sei: tem um certo nível de “toxicicidade masculina” que encanta mulher, não porque ela acha a coisa certa a se fazer, mas porque reforça a ideia de que o homem é homem. É atalho para o inconsciente.
E sim, isso nos leva ao campo minado sobre os fetiches mal resolvidos de muita feminista histérica. Essa coisa de macho opressor e dominante é atraente para elas, mas quando a mente fica doente com ideologia mal digerida, isso pode sair de formas doentias. Meio como a religião tende a focar de forma doentia em sexualidade porque tem um fetiche embutido do “proibido”. Uma mulher saudável provavelmente se contenta com uma demonstração de força ou coragem para saciar sua vontade de estar com um homem “de verdade”; mas a mulher que está com os fios cruzados no cérebro transforma até a ideia de estupro em algo atraente. Essa fixação com o abuso é sinal de que algo deu errado, e eu sei que muitas vezes isso é causado por relações terríveis com os piores tipos de homens.
E aí entramos na possível objeção sobre meu argumento que homem sentar de perna aberta não deve ser sexualizado: e o homem que abre as pernas para roçar na mulher? Tem muitos desses, não?
Bom, tem sim. Não sou mulher para ter a conta exata de quantas vezes isso acontece numa viagem, mas não me estranharia nem um pouco se elas tivessem que lidar com isso diariamente. O que não falta nesse mundo é gente abusada. Porém, aqui é importante separar as coisas: o homem que está de pernas abertas para forçar contato com a mulher do lado está fazendo algo diferente do tal do manspreading. Ocupar o espaço alheio não é a consequência, é o objetivo.
Longe de mim dizer para os outros o que configura contato aceitável ou não. Eu acho estranho ficar encostando em gente que não conheço, já até escrevi um texto inteiro sobre como acho estranho o conceito de dar dois ou três beijinhos no rosto de mulheres que se acabou de conhecer. Se a mulher acha escroto alguém encostando a perna nela, é escroto para ela e pronto. Se isso acontece numa condução lotada por motivos alheios às vontades dela e de quem encosta, eu acho aceitável mesmo que ela não goste. Eu também não gosto de nada lotado. Não gostar de algo não significa que seja abuso ou que não possamos lidar com isso.
Então, podem ter certeza de que eu não vou argumentar que é só um joelho encostando e que não para fazer todo esse drama. Sagrado direito de não querer ficar encostando nos outros quando não somos obrigados pelas circunstâncias. Bancos de transporte público tem um espaço pessoal definido, pode até ser meio chato ficar nele, mas é a porcaria da obrigação.
Mas temos que saber diferenciar alguém que está folgando de alguém que está tentando forçar um contato físico com você. Senão, tudo vira abuso sexual e vamos perdendo a capacidade de diferenciar a gravidade dos problemas. Uma matéria que eu vi dizia para as mulheres reagirem ao manspreading como se estivessem sendo sexualmente abusadas. Chamando polícia e tudo. Uma pessoa com compreensão de texto maior entenderia que era caso avançasse para algo além disso, mas algo me diz que o público-alvo médio não tem esse tipo de capacidade.
Aí fica parecendo que o fato do homem abrir as pernas é o abuso sexual. Isso tem dois efeitos negativos: o primeiro é que os homens lendo isso acham que quem disse é uma histérica completamente maluca, o segundo é que as mulheres lendo isso podem reagir acreditando sem entender que tem diferença. Lembra quando surgiu o boato que motorista de Uber estava usando gás sonífero nas passageiras? Lembra quando mulheres começaram a se jogar de carros por causa disso? Não tinha fundamento científico nenhum, era nível “loira do banheiro”, mas uma mulher que é convencida que todos os homens estão tentando estuprar ela só porque são homens tende a viver com medo constante.
Sentar-se com a perna muito aberta é falta de educação porque ocupa espaço que não é seu, não é um jeito bacana de viver em sociedade. Sentar-se com a perna muito aberta não é característica masculina obrigatória, é característica de gente egoísta. Não é assédio sexual também, assédio sexual é assédio sexual.
É bizarro que eu precise de tantas páginas para dizer algo tão simples. A nossa comunicação está ficando cada vez mais confusa, desnecessariamente sexualizada, apesar de toda a conversa sobre gêneros neutros e cia. É só fechar um pouco mais a perna. Não precisa de tanta confusão.
Quem diria que pensar só naquilo daria errado, não?
Para dizer que precisa ter bolas para falar disso, para dizer que foi bem menos horrível do que esperava, ou mesmo para dizer que cada um com seus problemas: somir@desfavor.com
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Etiquetas: histeria, homens, manspreading, sociedade
Sr. Desfavor
Só mais um desdobramento da chiadeira da militânica identitária, que vive de explorar tais questões.
Ana
Bom, cabe à mulherada se vingar: sente do lado e solte um peido silencioso.
Mas brincadeiras à parte, é questão de educação mesmo.
Pernas arreganhadas é tão deselegante quanto mãe deixando criança berrar à vontade na condução (se tiver alguma deficiência, aí que ganha carta branca mesmo), funkeiro ouvindo no volume máximo sem fone de ouvido “SENTA PIRANHA SENTA”, gente comendo fazendo barulho desnecessário ao mastigar (plus se for aqueles salgadinhos com cheiro de chulé), pessoa da frente inclinando o assento dela quase que na sua cara, mas claro, não problematizam essas demais coisas.
Ana
Ah sim, e tem também os pregadores de condução, alguém entra no coletivo e fica até o fim da viagem “Aceitem Chessus ou queimem todos no inferno, o fim do mundo tá vindo”, quando não pedintes com cara de coitados ou rodinhas de pagode no meio de todo mundo. O que, mais uma vez, também não é problematizado.
Anônimo
Nem todo homem que senta com as pernas arreganhadas em locais públicos são estupradores em potencial. Nem tampouco estão exibindo desbragadamente a sua “masculinidade tóxica’ por aí com a deliberada intenção de oprimir as mulheres. A maioria desses homens são apenas folgados, espaçosos, mal-educados e boçais.
Torpe
Depois a esquerda, em tudo que é parte do mundo, se pergunta o motivo dessa onda de políticos tradicionalistas chegando ao poder.