Jovem humanidade.

Quem acompanha o noticiário eventualmente acaba com a sensação que a humanidade está emburrecendo. Desde o setor de entretenimento até mesmo o político estão recheados de provas que as pessoas não andam bem da cabeça. Agem feito crianças com seus interesses escapistas, descontroladas, radicais, teimosas… mas, e se isso não for uma coisa ruim?

Faz um bom tempo que eu falo sobre como a internet e a globalização trouxeram o mundo todo para muito perto de cada um de nós. Eu sou uma das pessoas que ainda tem memória do mundo pré-internet, e posso afirmar que a gente tinha muito mais “espaço social”. Você podia passar longos períodos incomunicável, sem ter noção do que estava acontecendo no mundo. O grupo de pessoas que se comunicava com você, direta ou indiretamente, era muito menor.

E isso nem precisa ser um juízo de valor: se era melhor ou não fica ao critério de cada um. Eu gosto mais do mundo com comunicação interminável do que a versão anterior, mas isso é muito questão de gosto. O resultado prático dessa mudança é que a nossa tribo passou de algumas dezenas de pessoas para milhões num piscar de olhos. E é claro que isso muda nossa forma de ver as coisas: estamos em contato o tempo todo com o melhor e o pior do ser humano numa escala gigantesca. Se você quiser achar que as pessoas estão piorando, não vão faltar exemplos para te dar certeza sobre isso.

O que eu quero trazer de diferente hoje é outra ideia baseada nesse aumento exponencial de pessoas com as quais temos contato: a sensação de involução, burrice generalizada e comportamentos infantis. Sim, era inevitável entrarmos em contato com isso considerando quanta informação chega a cada um de nós a cada minuto, mas se você der um passo para trás e começar a analisar a humanidade como um todo, talvez enxergue a mesma coisa que eu estou enxergando: isso é um passo para frente.

Durante milênios, o ser humano viveu de forma muito parecida com outros animais, buscando recursos e se protegendo de perigos. Temos nossos diferenciais evolutivos que permitiram um avanço lento, mas consistente, rumo ao topo da cadeia alimentar e a um grau de segurança e estabilidade com os quais nenhum outro animal desse mundo sonha. Até mesmo seres humanos muito pobres acordam com mais problemas fundamentais de sobrevivência resolvidos do que basicamente todos nossos companheiros de planeta.

E isso permite algo que nos torna únicos: sermos crianças por um longo período de tempo. O ser humano nasce imprestável, precisando de suporte constante para não morrer por vários e vários anos. Algo impensável em boa parte da natureza, só algumas espécies muito grandes podem se dar ao luxo de criar seus jovens por anos. Nós levamos isso às últimas consequências: deixamos os nossos jovens serem “inviáveis na natureza” por pelo menos uns 12 ou 13 anos enquanto cuidamos deles.

E quanto mais recursos e suporte social um povo tem, mais tempo podemos entregar ao desenvolvimento dos jovens. A pessoa que já chega na classe média baixa costuma permitir aos filhos um desenvolvimento de quase 20 anos sem grandes pressões para se virarem sozinhos. Gente ainda mais confortável financeiramente pode até nunca se preocupar com essa coisa de entregar um adulto independente para a sociedade.

Quando sua missão no mundo é continuar o trabalho da família e fazer filhos para manter o ciclo funcionando, não é tão estranho assim trabalhar e ter filhos ainda na adolescência. Meninas se casavam logo depois de menstruar pela primeira vez. Essa ideia de “jovem demais para trabalhar e ter filhos” aos 14, 15 anos é algo super recente. E podemos concordar que não foi uma coisa ruim, não? Complicado formar cientistas, engenheiros, advogados, médicos e artistas com cinco crianças para criar e uma plantação que se falhar mata todo mundo de fome…

É aí que eu conecto os pontos: será que o que você está percebendo como a humanidade emburrecendo e ficando mais infantil não é justamente essa passagem de utilitarismo animal para infância humana? As pessoas eram mais adultas no passado, eu nem estou discutindo isso. Nossos bisavôs e bisavós com certeza sabiam plantar a própria comida e não se preocupavam tanto assim com as bobagens do mundo moderno. Era gente que se virava com muito mais facilidade que a gente, porque quase sempre era gente que tinha passado pelo menos uma parte da vida no limite da subsistência.

Capacidades admiráveis, mas… capacidades baseadas em seus tempos. Hoje uma grande parcela da humanidade não está mais nesse limite. Temos água, comida e abrigo até que bem garantidos. Quando saem estatísticas sobre mais de um bilhão de pessoas vivendo abaixo da linha pobreza, esquecemos de olhar que tem o outro lado acima da linha da pobreza. Tem mais gente vivendo confortavelmente hoje do que gente viva em séculos passados.

E isso acumula. Esses bilhões de seres humanos vivendo de forma mais ou menos tranquila em relação às necessidades básicas fica menos “animal”. Começam a explorar mais e mais seu potencial intelectual. E não podemos nos esquecer que todos nós já estivemos no começo desse potencial: todos fomos crianças. Crianças que não sabem muito bem o que fazer, mas que tem curiosidade interminável. Que ainda não aprenderam muito bem que o mundo não gira ao seu redor, que se distraem facilmente, que adoram repetição, que acreditam em qualquer coisa, que não tem nenhuma casca emocional…

Presta atenção no que estamos chamando de involução hoje em dia: são características infantis. A humanidade parece ter mais e mais pessoas num estágio infantilizado de desenvolvimento intelectual. E isso não deve ser visto como uma coisa ruim. O ser humano do passado com o qual tentamos comparar o “homo rede socialis” de hoje era menos infantil, mas também não tinha tempo de desenvolver muito mais do que o básico de conseguir comida e fazer filhos. Será que aquele cidadão que já tinha dois filhos e um emprego para a vida aos 18 não queria ter espaço na vida para ser mais nerd?

Eu realmente acredito que o futuro da humanidade passa pela infantilização, porque a nossa história evolutiva prova que quanto mais tempo damos ao ser humano para não viver como um bicho genérico, mais coisas interessantes ele faz. Algumas podem ser irritantes como ficar trocando teorias da conspiração pelo WhatsApp, mas quanta gente não está vivendo de ciência em 2023? Vocês acham que é remotamente próximo da quantidade que se concentrava nisso em 1923? E em 1823?

Crianças são famosas por não serem utilitaristas com seus interesses. É claro que se a humanidade está com uma massa cada vez maior de pessoas nesse estágio intelectual, vamos ver uma quantidade imensa de conteúdo estúpido ao nosso redor. É claro que vamos ver mais gente dando chilique e agindo de forma egoísta. É a doce liberdade de não ser um membro produtivo da sociedade.

Se o ser humano médio se tornar menos infantil, vamos perder muita coisa interessante que acontece agora. Sim, menos gente histérica e menos bobagem de rede social, mas crianças serão crianças: evidente que criança vai se concentrar em coisa que parece inútil. É parte da mecânica de crescimento do ser humano “jogar fora” tempo produtivo em busca de objetivos mais complexos. Criança que começa a trabalhar em funções difíceis e perigosas perde muito do seu potencial.

Exploração baseada em curiosidade quase que aleatória é base de todos os grandes avanços que a nossa sociedade acumulou até aqui. Não parece intuitivo achar que o povo do TikTok está avançando a humanidade, mas de uma forma indireta, estão sim: estão bagunçando a lógica utilitária do ser humano mais bestial e colocando algo lúdico no lugar.

Numa comparação ofensiva: o ser humano do passado era mais como um cachorro muito esperto, o ser humano moderno está fazendo a transição para uma criança… humana. Parece bizarro quando você olha para exemplos específicos, mas quando você afasta o ponto de vista para ver o todo, pode notar um grande movimento evolutivo. E sim, estamos trocando capacidades básicas de sobrevivência por interesse em coisinhas coloridas pulando numa tela, é um grande risco.

Mas é incrível que em alguns milhares de anos tenhamos nos dado esse luxo. A infantilização não vai só trazer coisas boas, mas ela vai permitir que mais e mais pessoas passem daquela etapa utilitária básica dos nossos antepassados. A cada geração, vamos vendo mais gente que se sente segura o suficiente para desaprender a fazer o básico da subsistência para se concentrar em tarefas mais intelectuais. Repito: é um risco. Estamos, conscientemente ou não, nos permitindo mais e mais pessoas numa longa infância, algumas até mesmo sem pressão para sair dela.

Se conseguirmos manter o mundo estável por mais alguns séculos, isso tende a gerar dividendos incríveis. Eu até acho que a Inteligência Artificial vai ser essencial para nos providenciar com “adultos” no futuro, a humanidade livre para ser criança por quanto tempo quiser enquanto máquinas e algoritmos resolvem a parte básica da nossa existência. E por crianças eu quero dizer gente que se perde em seus interesses enquanto outros cuidam das suas necessidades. O zumbi da rede social e o cientista inovador podem ser essas crianças. Só estamos aumentando a probabilidade do segundo aparecer e ter oportunidades de seguir seus interesses.

Estamos fazendo essa aposta há milênios, se pararmos para pensar: o ser humano que se especializa depende de alguém para resolver seus problemas mais básicos. Só apareceram artesãos porque tinha sobra na produção de comida. Só tivemos pensadores porque alguns desses artesãos ficaram ricos. Só vimos a explosão da ciência nos últimos séculos porque tinha gente para investir nela sem objetivos imediatos.

É um jogo que jogamos: aumentar um pouco a duração da infância, geração a geração. Vivemos como reis (os bilhões que não estão na pobreza absoluta) perto de nossos antepassados porque estamos ganhando nesse jogo. A aposta está pagando dividendos. Por isso eu sugiro que você não se deixe abalar tanto pela estupidez de seus pares, existe um método nessa loucura, um que é mais fácil de enxergar quando você olha o todo e não só a parte.

Claro, isso não quer dizer que devemos parar de criticar quem tem comportamentos doentios e danosos para a sociedade como um todo, criança precisa de adulto. E todos nós podemos ter nossos momentos infantis que exigem alguma intervenção. Eu não vou parar de apontar coisas que acho que são erradas, mas eu sempre vou ter em mente que o caminho geral não está errado, são apenas as cada vez mais numerosas crianças fazendo bagunça enquanto o seguem.

Não precisamos voltar no tempo, não precisamos refazer a humanidade toda, não estamos com uma doença incurável; estamos apenas curtindo uma infância mais longa em escalas globais.

E criança é irritante, faz parte.

Para dizer que as crianças têm bombas atômicas, para dizer que meu otimismo é infantil, ou mesmo para dizer que prefere achar que estamos perdidos mesmo: somir@desfavor.com

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Comments (6)

  • Discordo em partes. No Brasil essa infantilização só serve pra formar mais Tucos. Sabem o Tuco, da Grande Família? É o perfeito arquétipo do jovem adulto infantilizado no contexto brasileiro. Parasita dos pais, vivia pulando de subemprego em subemprego, só queria saber de festas e namoros, chegou a se envolver com crimes, esquemas de dinheiro fácil e até procriação não planejada.

    O adulto infantilizado BR é isso, não é igual o japa recluso com 3 dígitos de QI que adora joguinhos e nerdices e depois aprende a ser designer ou programador ou empresário.

  • Lendo o teu texto, Somir, eu lembrei dos argumentos mais usados por adultos de 30, 40 anos, para gostar e investir tempo (e muitas vezes dinheiro) em coisas que até há uns 20, 30 anos, eram consideradas coisa de criança – videogames, histórias em quadrinhos, filmes de super-heróis, animação japonesa, cosplay do mais variado, entre outras coisas.

    Muita dessa gente já leva uma tora no cu todo dia com a realidade da vida adulta: salários de merda, lidar com gente de merda, pagar as contas, cuidar de filho e sustentar uma casa, tudo para não morar na rua ou morrer de fome. Porque não ter um hábito que ofereça uma válvula de escape a essa realidade?

    Sei que não era esse o ponto do texto; interpretei-o como tendo fornecido um contexto para a crescente infantilização do adulto moderno. Mas acredito que essa tendência ao escapismo pela ficção também se encaixa nesse contexto.

    Se faço parte de uma geração que tem cada vez mais dificuldade para comprar casa, para constituir família, para ter emprego e rendimentos que os sustentem, ao menos me deixem tirar minha mente da vida real por uns tempos.

    É como eu sempre digo: não são as crianças que são adultos pequenos. São os adultos que são crianças grandes.

  • Eu acho que o que move o pensamento doomer é inveja que o ser humano médio do futuro provavelmente vai desfrutar de um estilo de vida absurdamente superior ao atual.
    A humanidade só não está evoluindo mais rápido porque em vez de darmos créditos às mentes brilhantes que estão fazendo esses avanços, estamos batendo palmas pra gente feia e doente mental cujo talento é tirar a roupa.

  • Então, Somir, de acordo com a sua visão, levando-se em conta a grande escala geral das coisas, todas essas imbecilidades que vemos hoje por aí no são, no fim das contas, apenas um “pequeno preço” a se pagar pela futura evolução social e intelectual da humanidade?

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