Prova com consulta.

Hoje quero defender uma opinião bastante impopular, mas sobre a qual tenho muita convicção: salvo raríssimas exceções, todas as provas usadas para aferir qualquer conhecimento deveriam ser com consulta.

Entendo que antigamente a prova sem consulta fosse de fato o modelo mais adequado: quando a informação era privilégio de uma elite e era de difícil acesso, a forma como se lidava com ela era como se lida com a escassez de qualquer recurso: tentar reter o máximo possível.

Quem tinha o privilégio de ter acesso a um livro tentava memorizar o máximo que podia essa informação e, quem conseguia, se tornava valioso no mercado: conversar com essa pessoa, contratar essa pessoa, ter essa pessoa por perto, era uma forma de também ter acesso a essa informação de tão difícil acesso, que na maior parte das vezes, não poderia ser obtida de outra forma.

Porém, o mundo mudou. Hoje o problema principal não é o acesso à informação e sim saber filtrar, compreender e aplicar a abundante informação que está disponível. Seria apenas lógico que todo o sistema educacional e até mesmo concursos públicos se adequem a isso e repensem a forma pela qual medirão o mérito em seu processo seletivo.

No período da minha vida em que dei aula em universidades, sempre fiz questão de aplicar provas com consulta. Era curioso ver a cara de alegria dos alunos quando eu informava que poderiam consultar durante a prova. Havia uma certeza de que tudo seria mais fácil. Entretanto, minhas provas costumavam ter uma média de nota muito mais baixa do que as demais matérias.

Prova com consulta não é “fácil”. Prova com consulta só é fácil se quem a aplica usar o mindset de prova sem consulta e fizer perguntas “decoreba”. Obviamente, se você faz perguntas que demandam apenas memorização, fica muito fácil responder quando você tem acesso ao material que deveria decorar.

Mas, uma prova com consulta que te obrigue a pensar, raciocinar, compreender o texto e solucionar impasses, dilemas, contradições e problemas envolvendo esse texto é extremamente difícil. Pensar é difícil. Compreender o que se consulta, combinando diferentes informações e dando a elas uma aplicação prática é difícil.

Em uma realidade na qual a informação está amplamente disponível, a capacidade de reter informação não deveria valorizar ninguém. O Google faz isso por qualquer profissional, basta ter dedo e saber teclar. A informação está a um clique de qualquer um.

O que deveria ser valorizado atualmente é saber separar informação verdadeira de falsa, saber reconhecer fontes que tenham credibilidade, compreender a informação e aplicá-la a situações nas quais ela possa ser útil e, por fim, saber replicá-la de forma simples, didática e acessível.

Hoje, decorar (no sentido de memorizar) é inútil. Decorar é ofensivo. Decorar toma tempo e disponibilidade que poderiam ser utilizados para aprender, raciocinar e dar um uso prático, criativo e inovador à informação. Em vez de decorar, é preciso ensinar a linkar uma informação à outra para criar algo novo, solucionar problemas ou otimizar processos.

Quando eu era professora, nunca valorizei aluno que memorizava informação. Sobretudo na área de direito, na qual advogados podem consultar com calma toda a legislação do país, decorar vale basicamente nada. Eu queria gente que resolva. Pode consultar lei, pode consultar livro didático, pode consultar a Bíblia, se resolver será aprovado e será um bom advogado. De nada adianta um profissional que memorizou toda a lei mas não resolve o problema. E, acreditem, saber a lei nem de longe resolve o problema.

Infelzimente, no Brasil, ainda vigora essa crença idiota de que conhecimento é sinônimo de informação decorada. E não me refiro apenas aos concursos públicos (até juízes são filtrados por sua capacidade de decoreba), mas também na cabeça de cada um dos brasileiros. É hora disso mudar. Decorar não vale nada no contexto atual. É preciso saber 1) onde encontrar informação confiável; 2) conseguir compreender essa informação e 3) saber aplicá-la para melhorar a vida, solucionar problemas ou inovar.

Então, mesmo que a sociedade esteja atrasada e ainda valorize decoreba, adiante-se e comece a valorizar e desenvolver esses três quesitos. É só uma questão de tempo até eles serem muito valorizados – e quando acontecer, você já estará muito à frente da maioria.

Mesmo que você não seja um educador, desenvolva estas prioridades em você, em vez de tentar reter o máximo de informação que consegue. Fazendo isso você vai perceber rapidamente um ganho na qualidade do seu trabalho. Gastar tempo e energia nas prioridades erradas é uma das furadas que mais atrasa as pessoas na vida profissional.

A quantidade de informação não é relevante, o relevante é o que você faz com ela. Não adianta ser um mero repetidor, que conhece tudo sobre o assunto, se não sabe aplicar esse conhecimento, fazer algo útil com ele, melhorar o mundo, seu trabalho ou a vida dos seus clientes. A era do conhecimento pelo conhecimento acabou, prepare-se para a era do conhecimento aplicado.

Sim, como tudo na vida provavelmente existem exceções. Talvez pessoas com trabalhos, ofícios ou funções que demandem uma resposta rápida precisem de alguma informação decorada. Um médico precisa saber o que fazer no caso de uma situação crítica com o paciente, pois não terá tempo de pesquisar. Mas, no geral, para reles mortais como nós, é mais necessário priorizar a forma como selecionamos, compreendemos e aplicamos esse conhecimento.

E, que fique claro, eu não estou dizendo que não tem que estudar. Estudar é importante, necessário e válido. Sempre.

É estudando que a gente aprende. Estudar é essencial não apenas para aprender determinado assunto, mas também para manter seu cérebro saudável, criando cada vez mais conexões e deixando você cada vez mais “inteligente”. A quantidade e qualidade de outputs (ideias) que você tem é proporcional à quantidade e qualidade de inputs (conhecimento) que você coloca para dentro.

Para que você possa aplicar cada vez melhor o conteúdo que aprende, é necessário acumular informação. E só se acumula informação aprendendo, pois decorando você não a compreende e dificilmente ela será fixada no seu cérebro por muito tempo ou receberá uma utilidade prática. E uma das formas mais rápidas de aprendizado é estudando.

Como já foi dito, estudar (e consequentemente, aprender) é diferente de decorar. Mas, como vivemos em uma sociedade maluca, para muitos acaba sendo sinônimo. Não se deixe enganar por uma maioria louca: estudar é buscar por uma informação, acessá-la, compreendê-la e utilizá-la de forma prática de modo a melhorar a sua vida ou a vida de outros. Decorar é memorizar um conteúdo.

“Mas Sally, como sei se estudo aprendendo ou decorando?”. Vou te dar algumas dicas.

Você consegue reproduzir o conteúdo com as suas próprias palavras? Se você consegue descrever o conteúdo com as suas palavras, é provável que tenha aprendido. Por exemplo, se eu te pedisse para contar a alguém sobre este texto, o que você diria? Se você repetir trechos do texto, provavelmente não aprendeu o que está aqui (falha minha na didática, no caso). Mas, se você é capaz de reproduzir com as suas palavras, sem usar as minhas, citando os aspectos principais de forma coerente e fiel à premissa, houve aprendizado.

Você consegue ensinar o conteúdo para outras pessoas que não estejam familiarizadas com ele? Veja bem, reproduzir o conteúdo é diferente de ensinar. Ensinar significa conseguir dizer de diferentes formas até a pessoa compreender e, além disso, fornecer informações básicas que permitam que a pessoa tenha todos os elementos para compreensão. Ensinar é mais difícil do que reproduzir um conteúdo. Só consegue ensinar quem realmente aprendeu. Minha forma favorita de testar se eu sei ensinar algo ou não é tentando explicar para uma criança e observando se ela entende.

Você consegue resumir o conteúdo que aprendeu em uma frase? Se consegue sintetizar mantendo sua essência, é bem provável que você tenha aprendido. Por exemplo, você consegue sintetizar o filme “E.T.” em uma frase? Se você precisa dizer “aí caiu uma nave, tinha um ET dentro e daí a polícia tentou pegar ele, daí parecia que ele tinha morrido…” você não aprendeu, você decorou trechos do filme. Quem aprende consegue sintetizar o conteúdo em uma frase: “Menino ajuda alienígena perdido na Terra” ou algo do tipo.

Você consegue criar analogias? Para conseguir encontrar uma similaridade entre duas coisas distintas e compará-las é preciso ter aprendido muito bem ambas. Dificilmente quem apenas decorou um conteúdo vai conseguir fazer uma analogia com ele. Por exemplo, se eu te digo que “o café é minha gasolina”, você saberá que carros precisam de gasolina para funcionar, portanto, café é meu combustível e sem ele eu não funciono. Para entender isso, você precisa compreender o conceito de café e de combustível.

Você consegue pensar em exemplos práticos ou aplicações práticas para o conteúdo? Se você aprendeu, certamente seu cérebro vai conseguir combinar essa informação com muitas outras que você já tem e pensar em uma utilidade prática para ela. Por exemplo, ao compreender que plástico é uma substância impermeável, você certamente vai optar por se proteger da chuva usando algo plástico e não de papel, porém, quando precisar secar algo, não vai usar plástico pois compreendeu que ele não absorve a água.

Se todos estes itens estiverem presentes, você aprendeu. Ninguém que apenas decore consegue colocá-los em prática. Teste agora, com assuntos que você domine (e verá como é fácil) e com assuntos que você não domine (e verá como é difícil).

“Mas Sally, eu acessei o conteúdo, li com atenção e não sou capaz de fazer nada disso, quer dizer que eu sou burro incapaz de aprender?”. Não, quer dizer que quem produziu esse conteúdo foi incapaz de te ensinar.

E não estou falando mal de ninguém, estou apenas dizendo que aquele estilo não funcionou para você. Certamente existirá alguém que fale de forma diferente, mais clara, mais palatável, mais atraente e te faça entender. Cabe a vocês pesquisar e, quando encontrar pessoas das quais tem prazer/facilidade em obter a informação, segui-las (online, por gentileza, nada de stalkear os outros) e transformá-las em seus curadores de conteúdo.

Não é apenas sobre falar de forma simples ou rebuscada, existem estilos diferentes. Até mesmo aqui, entre leigos que só querem um bate-papo podemos ver estilos diferentes entre Somir e eu. É natural que aprendamos melhor com quem está alinhado ao nosso estilo. Tem que seja mais direto, tem quem seja mais científico, tem quem seja mais bem-humorado… tem de tudo! Procure até encontrar alguém que fale ou escreva sobre um assunto de um modo que seja atraente para você e será muito mais fácil aprender.

Espero que este texto ajude a entender a importância do aprender e a desimportância do decorar. Coloque isso em prática na sua vida, não apenas nas suas ações, mas também com o tipo de pessoa que você se cerca, contrata ou trabalha. Prefira pessoas que estudam, que aprendem, quem internalizam o conhecimento, em vez de Zé Palestrinha que vive de cuspir informação e dados.

E, se você tiver qualquer vínculo com o meio acadêmico, pense com carinho na ideia da prova com consulta. Elabore questões complexas, nas quais a informação não seja a resposta em si e sim apenas um caminho para chegar na resposta, através de raciocínio. Acredite, o melhor que você faz pela sociedade e pelo seu país é reprovar quem não consegue raciocinar e só sabe repetir informação. Gente que compreende, raciocina e resolve é muito melhor.

Para dizer que Deus te livre de ser meu aluno, para dizer que todo palestrinha é no fundo um burro que não sabe aprender e por isso repete ou ainda para dizer que o ChatGPT se encarrega de interpretar para você: sally@desfavor.com

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Comments (14)

  • Não sei como anda isso no Brasil, mas quero deixar aqui algumas vivências.

    Aqui em Portugal (ou África do Norte, como a Sally se refere), provas de conhecimento em concurso público são realizadas com consulta. Os candidatos são obrigados a levar a legislação relevante (no caso da prova em que participei, foi a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas) para ser consultada durante o exame. A única restrição é que as páginas não podem ter nenhum tipo de anotação ou adesivo (tipo post-it), sob pena de eliminação, mas de resto passa longe da decoreba.

    O tempo dessa prova é curto (90 minutos para 20 e poucas questões), mas é de propósito; convém que o candidato ao menos leia a lei de antemão, pesquise exames anteriores e tente identificar os artigos que podem cair. Isso é uma boa tática para agilizar a consulta na hora do exame e não ficar perdido folheando páginas.

    Além disso, quando fiz Ensino Médio aqui (a que chamam Ensino Secundário), as provas de Matemática e Física E Química (sim, aqui Física e Química são dadas em conjunto) têm algumas páginas com as fórmulas relevantes ao conteúdo de cada exame, bem como dados gerais, tipo o valor de pi, valores de constantes ou mesmo a tabela periódica. Os alunos até são obrigados a levar calculadora gráfica para as provas do 3º ano do Ensino Médio!

    Outra coisa: NADA DE ESCOLHA MÚLTIPLA. A pontuação de cada questão é fragmentada de modo a atribuir pontos aos alunos que descrevem todas as etapas do processo de cálculo; se você só der a resposta final, leva os pontos da resposta final, mas perde todo o resto. Assim é garantido que quem chuta não sai no lucro.

    Tudo isso para dizer que o Brasil só está se atrasando por não largar esse modelo de aferição de conhecimentos altamente dependente na decoreba. Hoje em dia quem só memoriza as coisas sem entender o que está lendo, sem conseguir interpretar ou interligar informações, ou mesmo distinguir o verdadeiro do falso, está fadado a ficar para trás. Somos bombardeados com tamanha enchente de informações, que se torna crucial saber filtrar o que é importante e o que é acessório.

  • Concordo contigo, Sally, até certo ponto. É realmente interessante fazer com que o aluno pense, use a cabeça pra encontrar soluções para problemas que supostamente vão enfrentar na vida lá fora, mas pra isso exige bastante preparo, não só do professor, mas também do aluno, no sentido de mudar seu comportamento. Ademais, essa discussão toda se esbarra também em toda aquela discussão sobre teorias de aprendizagem, das quais existem várias. Tendo a concordar que, a depender do conteúdo, há uma etapa necessária que exige sim “decorar” e memorizar alguns preceitos e regras, pra daí sim a pessoa começar a pensar sobre aquilo e aplicar em eventuais problemas.

    Exemplos disso, não vamos muito longe não: pra aprender cálculo com integrais, o aluno deve ter em mente algumas regras básicas de como funcionam as funções de segundo grau, ter em mente os conceitos de limite, pra daí começar a integrar e derivar. Na música, pra entender harmonia funcional e funções dos acordes numa cadência, o aluno precisa ter em mente muito bem guardadas as escalas menores e maiores, e a teoria dos intervalos, pra daí sim entender a relação de funções entre acordes. No estudo de idiomas, pra entender sintaxe e semântica, o aluno deve primeiro “decorar” lá alguns tempos verbais, declinações, regras de concordância e regência, preposições, pra dai a sintaxe começar a fazer sentido.

  • Lindo, lindo texto! Eu adoro prova com consulta, mas obtenho resultados ainda melhores com apresentações e seminários! Dependendo do nível dos alunos (graduação ou pós-graduação) ou eu dou uma lista de artigos relevantes, ou peço para pesquisarem artigos sobre o tema em questão. Totalmente livre (dentro do tema geral, claro). Daí é só preparar a apresentação / defesa e envolver toda a turma na discussão. Funciona que é uma beleza. Os alunos só decoram texto se essa for a opção do professor, na minha experiência nunca vi um aluno que realmente achasse decorar texto um bom método de aprendizado. Decorar é importante e tem seu lugar (pense em nomes ossos, enzimas ou grupos taxonômicos por exemplo), mas não como linha mestra de ensino.

  • Onde estudo de início tinha consulta. Tive dificuldade em me adaptar a isso, mas mais adiante tiraram a possibilidade de consulta e a quantidade de reprovações foi enorme.
    Tenho tido dificuldades com o aprendizado porque mesmo tendo aprendido a fazer os cálculos, não sei exatamente qual o cálculo mais adequado ao caso e isso é especialmente problemático.

  • Teoria interessante, Sally. Mas temo que saber resumir o que foi ensinado em uma frase, fazer analogias e dar aplicações práticas ao conteúdo apresentado em aula requeira uma capacidade intelectual que, infelizmente, muitos UNIVERSITÁRIOS não têm. Preferem o “caminho mais fácil” da decoreba – pra não terem que pensar -, desanimam só de ver a quantidade de páginas que têm pra ler e alguns ainda sequer são capazes de dizer o que a palavra “analogia” significa. Lei do Mínimo Esforço, sabe?

      • Sua impressão deve ser real. Inventam todo tipo de musiquinha e macete pra decorar as coisas pras provas, vestibulares… Gente, não é mais fácil aprender o conteúdo?

        • É que ensinar dá trabalho. Ensinar demanda muito estudo, domínio completo do assunto e, acima de tudo, muita paciência de repetir de diversas formas até que todos os alunos da sala, nos mais diferentes níveis de cognição e inteligência, compreendam.
          Sem contar que, quando a prova vai cobrar decoreba, não adianta aprender nada, tem que decorar nomes e números.

          • Ainda queria ter conhecido tuas aulas, mais um alguém aqui que também já estranhava “o que inventa(va)m” (no meu contexto desde “quase década e meia”)…

    • Uma amiga da minha mãe era professora de colegial e mais de uma vez contou que ouviu, em plena sala de aula, um aluno Zé Droguinha enfadado responder com um sonoro “vai tomar no cu!” a solicitações pra que lessem certos livros clássicos.

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