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Colunas

Lixeira de gente.

Há décadas vemos notícias sobre a Cracolândia, uma aglomeração de usuários de drogas no centro de São Paulo que já foi um sólido, mas hoje age mais como um líquido, escorrendo pelas ruas da capital de acordo com a repressão policial a cada momento. Cada governo diz ter uma ideia para lidar com o problema, nenhuma se realiza. Mas antes de pensar na solução, não seria melhor pensar no problema?

O público masculino do Desfavor vai saber do que eu estou falando, mas eu vou precisar explicar melhor para as mulheres: o problema da Cracolândia é absoluta falta de demanda pelas pessoas perdidas ali. Todas as análises sobre a composição desse grupo apontam para uma maioria esmagadora de homens. E quando homens demandam muito esforço para recuperação, vemos situações como essas. Fica difícil saber o que fazer com essa gente.

Olá, leitoras. Esse aparte é para vocês: é claro que vocês entendem o que é solidão ou dificuldade, são humanas. Mas tem algo que vocês provavelmente nunca lidaram, a ideia de ninguém te querer. Mulheres tendem a sofrer por não terem ninguém que preste as querendo, mas é muito difícil uma de vocês chegar a esse ponto de ser algo que ninguém quer mexer. Seja pelo valor social ou mesmo sexual de ter uma mulher, sempre tem alguém querendo “pegar” uma mulher perdida na vida.

Se a notícia que um grupo composto por 90% de mulheres drogadas estivesse se concentrando no centro de São Paulo, em pouco tempo surgiria uma massa de interessados em coletar esse recurso disponível. Com certeza não seria uma coisa bonita o que fariam com elas, mas a demanda existiria automaticamente.

Não é uma comparação de quem sofre mais, porque considerando o tipo de atenção que mulheres podem receber nessa vida, eu gosto de ser invisível às vezes. É só uma análise de diferenças: a mulher e o homem caem para buracos diferentes nessa vida. A mulher que perde tudo acaba sendo explorada, o homem que perde tudo acaba sendo ignorado.

E essa diferença é importante na hora de analisar a Cracolândia: aquele pessoal jogado nas ruas não tem “mercado” no resto da humanidade. Pelo menos não um que seja fácil de explorar. Mesmo que um programa do governo ofereça uma ajuda momentânea, ainda são pessoas com um valor social tão baixo que eventualmente voltam para o buraco por falta de interesse de outros humanos neles.

O acúmulo de gente no fluxo de viciados é prova de como há um movimento natural rumo à “lixeira de gente” que é a Cracolândia. Pessoas cujo custo de recuperação é mais alto do que o valor percebido pelo resto da humanidade. Não adianta uma família, especialmente uma família pobre, querer resgatar a pessoa. No Brasil, com tanta pobreza, já é difícil manter viável uma pessoa sem vícios incapacitantes.

Eu estou usando termos cruéis e desumanizantes porque as soluções sempre passam pelo reconhecimento do problema. Eu sei que não é certo sequer falar de pessoas dessa forma, mas se é assim que elas são tratadas, não adianta fingir. Formou-se um terreno baldio no centro da capital paulista onde se acumula o lixo que a sociedade não quer reciclar. A pessoa presa num vício terrível como o do crack dá um trabalho enorme para recuperar, e infelizmente, algumas já passaram do ponto do custo/benefício. O cérebro vai sendo carcomido pela droga, o corpo acumula fraquezas e doenças, algumas incuráveis.

E como a maioria é de homens, não existe valor intrínseco neles. Mulheres em estados deploráveis ainda podem ser transformadas em objetos sexuais ou mesmo “escravizadas” pela natureza mais dócil e menor potencial violento. Homens não. Mesmo que tudo o que você queira de outra pessoa seja limpar um chão, é mais lógico usar uma mulher para isso. Eles são tão válidos quanto o valor que conseguem produzir, o risco inerente à convivência com um homem exige compensação de alguma forma.

Compensação que a pessoa escravizada pelo vício e considerada desnecessária pela sociedade dificilmente vai providenciar. Para resolver a Cracolândia, primeiro precisamos saber para onde apontar a vida dessas pessoas. Esse aglomerado de gente surgiu naturalmente, foi uma conclusão “lógica” do ser humano vivendo em sociedade. As pessoas que estão na Cracolândia acharam a Cracolândia por motivos pra lá de razoáveis: no mínimo conseguem exercer uma função num grupo de pessoas parecidas.

O “nóia” que furta pequenos objetos e mendiga nas ruas está acumulando recursos num só lugar, o que atrai o interesse dos traficantes e cria um ecossistema ao seu redor. O valor se cria pelos números, o ambiente, por mais terrível que pareça para nós, é mais acolhedor do que estar sozinho pelas calçadas distantes. O ser humano é tão dependente de propósitos que até mesmo ser mais um drogado entre tantos pode cumprir esse papel.

Oferecer suporte básico é algo positivo, não me entendam mal. Não é errado ter médicos e assistentes sociais ao redor deles, mas não é um tratamento para a doença, só para os sintomas. O viciado perdido naquela multidão não é viável fora da Cracolândia, e enquanto não tivermos um caminho para eles saírem de lá, a tendência é que os números continuem aumentando. Estar na Cracolândia não é uma vitória na vida, mas é alguma coisa pelo menos. É uma identidade, é um grupo, é uma lógica de funcionamento na vida.

Existem aglomerações do tipo no mundo inteiro, até mesmo em países muito mais ricos e avançados que o Brasil. Se na Suécia é complicado lidar com viciados, na terra de Lula e Bolsonaro que não seria. E quando a gente tenta olhar para uma solução, percebe mais um problema fundamental: se a gente não consegue dar um caminho digno de saída da miséria para pessoas que não são viciadas em crack, imagina só para essa gente?

De uma certa forma, as pessoas que defendem meter bala neles e matar todo mundo estão fazendo uma análise bem utilitária da coisa: se não conseguimos cortar o mal pela raiz, talvez podas eventuais sejam melhores do que nada. E percebam o uso da palavra “poda”. Tem gente demais nesse mundo, especialmente numa cidade como São Paulo. Matar mil viciados não mudaria nada no quadro geral, em pouco tempo outras aglomerações apareceriam no lugar. Teria uma função de alívio para o centro de São Paulo? Sim. Por algum tempo, funcionaria. Mas o problema continua existindo.

Mais e mais homens vão seguir por esse caminho até o fim da sua validade social e acabar se acumulando em grupos problemáticos. Eu mencionei que o problema passa por não ter um caminho de volta para eles, porque custa caro demais dar esse tipo de atenção para um homem nesse estado de abandono. Num mundo ideal, o Estado poderia usar seus recursos para cuidar dessa gente no longo prazo: não é só desintoxicar a pessoa por um mês e soltar ela de volta na rua sem lenço nem documento, é ter um caminho de recuperação claro que permita ao homem ter formas de gerar valor de novo. Homem precisa disso para funcionar. Coloca para trabalhar em alguma coisa, qualquer coisa. Faça ele acreditar que eventualmente consegue sobreviver sozinho e até mesmo prover para outros que ele tende a se aguentar muito mais longe do crime e das drogas.

Mas esse é o mundo ideal. Não temos recursos no Brasil, pelo menos não com a cleptocracia instalada, para dar esse nível de atenção aos seres humanos perdidos na Cracolândia. E sim, tem gente que não sai desse buraco nem com três assistentes sociais dando atenção constante, tem gente que vai para as drogas vinda de famílias amorosas com recursos. Por isso eu disse que tem Cracolândias em todos os cantos desse mundo. Não podemos salvar todos os seres humanos, mas podemos manter os caminhos para essa salvação sempre abertos.

Mas, peraí, então quer dizer que a solução não existe?

No estado atual do Brasil, a solução de oferecer caminhos de volta não existe. Tem gente que já pensou nisso, é claro, tem gente até que dedica a vida a fazer isso acontecer. Mas é um trabalho ingrato quando tudo o que os políticos conseguem pensar é em variações do mesmo tema: esconder os indesejáveis e torcer para que eles desapareçam por mágica. Eu já imagino a solução vinda por outro ângulo: prevenção.

Depois que esse homem está no fundo do poço, custa muito caro tirar ele de lá. Não só em dinheiro, mas em disposição de outros seres humanos para enfiar o pé na lama e recuperar o viciado. Temos que começar a pensar sobre dar um limite até onde uma pessoa pode cair. E esse limite tem que ser baseado nessa espécie de ponto de não retorno que homens costumam chegar. No minuto que fica mais caro salvar esse homem do que o benefício que ele pode gerar com seu trabalho, ele está sozinho, ou na mão do crime organizado: não necessariamente como bandido, mas sempre como fonte de renda.

Mas é uma escolha difícil de fazer: oferecer uma renda para esse homem na Cracolândia é mais barato que tentar recuperar ele depois de muito tempo usando drogas e morando na rua, mas é bem mais caro que enfiar a porrada nele. Teríamos que colocar na cabeça que temos que gastar um bom dinheiro “recompensando” drogado sem garantia de solução por um bom tempo, criar uma indústria financiada pelo Estado para recuperar esses homens (e mulheres, é claro, mas como eu disse antes, elas tendem a se acumular menos nesses lugares), uma muito mais dispendiosa que fazer arrastões policiais com cacetetes todos os dias. Já estão pagando pelos policiais mesmo…

Imagina só dizer para o povo que precisa aumentar imposto para oferecer renda básica para os “nóias” da Cracolândia? Se Jesus desse essa ideia, seria crucificado de novo. Como eu disse antes, homem nessa situação não tem valor nenhum na sociedade, quase ninguém está disposto a pagar pela recuperação deles. Eu não acho que estamos num período histórico favorável para discutir essa “nota de corte” do homem na sociedade, e como nós precisamos de redes de segurança mais resistentes para eles do que para elas. E não é questão de merecimento, é de resultados práticos mesmo: homens perdidos na sociedade são muito mais perigosos do que mulheres, o patriarcado tem uma lógica utilitarista incômoda. Mas tem tanto fanático dos dois lados da cerca que nem adianta pensar nisso agora.

A minha base para a solução da sociedade moderna começa pela Renda Básica Universal, não para resolver tudo, mas para finalmente termos uma base de onde começar a resolver os problemas. Homens poderiam aguentar mais tempo sem perder totalmente o valor, mulheres poderiam resistir muito mais à exploração. Ainda ia ter muita gente na Cracolândia, mas ia ser exponencialmente mais fácil dar um caminho de saída para essa gente.

Do jeito que está claramente não funciona. Com o fundo do poço nessa profundidade, o ser humano chega num ponto de onde não sai mais. Enquanto isso acontecer, vai ter Cracolândia. Pode jogar ela para qualquer lugar da cidade, pode bater, pode matar até… vai ter Cracolândia eventualmente.

Podem teimar, podem chiar… mas a solução começa com um poço menos fundo. Todos os países que aumentam (consistentemente, nada de milagres econômicos tupiniquins) a classe média de tamanho enxergam melhoras imensas em qualidade de vida, em poucas gerações. O que a gente acha justo não tem obrigação nenhuma de ser mais eficiente. Gente que faz coisas que achamos erradas ou não temos nenhuma simpatia vai existir enquanto existirmos.

Elas vão acumular nessas “lixeiras de gente” até transbordar.

Para dizer que eu ofendi todo mundo, para dizer que é depressão demais para uma sexta, ou mesmo para dizer que não vai pagar imposto para drogado: somir@desfavor.com

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Cracolândia, drogas, homens, sociedade

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