Devo, não nego.

Hoje quero falar sobre um assunto que me intriga: gente que deve e vive numa boa com isso. Gente que não se importa em dever. Gente que contrai qualquer dívida sabendo que não vai poder arcar com ela e não perde um minuto do seu sono com isso. Essas pessoas me fascinam, não por admiração, mas pelo total desprendimento das normas sociais, do impacto que causam na vida alheia do quanto não se importam em minar sua própria credibilidade.

Nem quero falar sobre um ponto de vista crítico ou psicológico, quero apenas compartilhar meu fascínio por essa irresponsabilidade e pela forma como ela se manifesta no Brasil.

É algo que dificilmente se vê de forma massiva em outros países, na verdade, em alguns deles pode até ser equiparado a algum tipo de problema de saúde mental. No Brasil, não sei se é a regra, mas é bastante comum. Garanto que todos vocês conhecem ao menos uma pessoa que deve sem que isso a incomode. Uma nação na qual estar em débito e não se importar é bastante comum. Fascinante.

E esse “dever a alguém” nem sempre é patrimonial. Sim, muitas vezes é dinheiro, bens, cartão de crédito, mas outras é se comprometer com algo e sumir sem o menor constrangimento, é ter um dever ético ou imposto por lei e ignorá-lo completamente, é qualquer forma de débito, financeiro ou não, que deveria gerar algum grau de desconforto, mas a pessoa consegue se auto justificar ou deligar alguma chave interna e viver normalmente com ele.

Vamos começar pela parte financeira. Tem muito brasileiro que gasta sabendo que não tem, sem qualquer receio, dor de cabeça, constrangimento ou preocupação. E não me refiro a comprar alimento para comer, falo de comprar supérfluos mesmo, coisas que a pessoa poderia muito bem viver sem, mas que ela quer ter nem que para isso precise dar calote em alguém. O querer dela é tão importante ou incontrolável que, para saciá-lo, ela topa manchar sua imagem e causar dano a terceiros.

A pessoa compra, sabe que não vai ter como pagar, sabe que vai ficar endividada, sabe que provavelmente vai ficar com o nome sujo, e não se importa. Muitos até dizem “em cinco anos meu nome está limpo novamente, não tem problema”, como se fosse apenas uma questão de documentação.

Não há qualquer incômodo no fato de dever e não pagar, nem no fato de ter contraído a dívida já sabendo que não poderia pagar. Calote, em bom português. Não há qualquer preocupação na forma como isso vai impactar a pessoa que levou o golpe ou a credibilidade de quem não pagou.

É verdadeiramente fascinante. Eu, se estiver devendo uma moeda para o tio da padaria já fico nervosa, me provoca desconforto, mal-estar, preocupação. Quem dirá ficar devendo o que eu não posso pagar, ter credor correndo atrás de mim, me telefonando, ter o nome sujo. Acho muito curioso quem vive assim por escolha e consegue não se incomodar ou, de alguma forma, sobrepassar esse incômodo e viver feliz devendo.

Normalmente as formas que a pessoa encontra de se auto justificar são muito complicadas de defender. Eu até acho que quem usa essas desculpas para aplacar uma eventual consciência pesada de fato pode acreditar nelas, mas são justificativas que não se mantém de pé depois de meros cinco minutos de reflexão.

Alguns alegam que a pessoa ou empresa para a qual devem “é rica” ou “não vai fazer falta” aquele pagamento, como se esse fosse o critério que gerasse a obrigação de pagar a alguém. O que gera a obrigação é você dar a sua palavra, expressa ou tacitamente, ao adquirir o produto ou serviço. Fora que muitas vezes se tem a ilusão do outro ser “rico” ou “não precisar” e na verdade precisa sim.

E mesmo que seja “rico”, o que aconteceria se todos pensassem igual ao caloteiro e não pagassem pois o outro “não precisa”? Simplesmente todos os negócios faliriam, pois ninguém pagaria. É um pensamento que, se aplicado de forma coletiva, desmorona uma sociedade: mais ninguém é confiável, mais ninguém tem credibilidade. E é algo que acontece bastante no Brasil. Tente explicar para um estrangeiro a canetinha da lotérica presa com uma corrente e observe seu olhar de espanto.

Seria inviável viver em uma sociedade na qual todos se portem assim, logo, o certo a se fazer é ninguém se portar assim. Mas infelizmente tem gente que pensa que se só a pessoa fizer, tá tudo bem. Só ela merece se dar bem, só ela é esperta, só ela tem o direito de não honrar seus compromissos, o lesado que aumente seus preços e acabe intubando o prejuízo nas pessoas que são corretas e pagam.

Outra autojustificativa muito comum e sem nenhum sentido é “mas eu não tinha dinheiro para isso”. Bem, se você não tem dinheiro, então você não compra, certo? A menos que seja uma criança de cinco anos de idade sem a menor noção de finanças ou capacidade de frustração, esse seria o comportamento esperado. Não estamos falando de comida ou itens básicos de sobrevivência, estamos falando de bolsa, roupa, sapato, viagem.

Quando não se tem dinheiro para tudo, se gasta apenas com aquilo que é questão de sobrevivência e se usa a vida para refletir e mudar o que quer que esteja impedindo ou dificultando a pessoa de ganhar mais dinheiro: precisa se qualificar? Precisa mudar de postura? Precisa fazer networking?

“Mas eu precisava viajar, era uma questão de sobrevivência, eu estava muito estressado”. Sim, vocês vão escutar esse tipo de coisa de verdade, a pessoa está falando sério, ela não está brincando. É realmente fascinante. Uma bolsa cara era uma necessidade, uma viagem era uma necessidade, um vestido era uma necessidade. Não fica difícil de entender o motivo pelo qual uma pessoa com essa mentalidade não prospera na vida.

O resultado é previsível. Para atender a algo que ela tem vontade, a pessoa se sente no direito de lesar terceiros e passa por isso sem uma gotinha de culpa ou remorso. Isso mancha tanto sua imagem e sua autoestima, que provavelmente essa pessoa vai ter ainda mais dificuldade em ganhar dinheiro, gerando um círculo vicioso, até que, em algum momento, ela acaba descambando abertamente para golpes.

Não importa em que grau de golpismo a pessoa está, sempre com uma ótima justificativa para isso, a culpa é sempre de terceiros, nunca dela: o patrão é um escroto então ok roubar dele, a vizinha é uma filha da puta, o governo é uma merda. A loja está tentando roubar ela cobrando um preço muito caro, ela precisa daquele bem por um motivo X, seu ex marido é um babaca. Sempre tem um motivo para não cumprir sua palavra e ficar devendo sem constrangimento.

Isso é tão alienígena para mim, me confunde de tal forma, que eu não sei dizer se é um discurso hipócrita de alguém que sabe o quanto está errado e é apenas muito egoísta ou se é um amental que se engana e realmente acredita na pá de bosta que usa como justificativa. Sou toda ouvidos, pois gostaria de entender o que se passa na cabeça dessas pessoas.

“Mas Sally, para você é fácil falar, você nunca sofreu uma privação”. Em primeiro lugar, ninguém sabe nada da minha vida, portanto, bem complicado fazer essa afirmação que, diga-se de passagem, não é verdadeira. Em segundo lugar, tem muita gente que sofre privações muito severas e não faz uma porra dessas. Então, não está relacionado a privação. Está relacionado a respeito, ética, palavra, empatia e outros sentimentos humanos que muitos parecem não ter ou não exercitar.

Eu não entendo qual é a chavinha que vira na cabeça dessas pessoas, qual o botão que desliga, que faz com que elas não se incomodem por estar devendo. Porém, com certeza absoluta isso reflete em todas as áreas da vida dela e de quem está com ela: ético se é ou não se é, portanto, não acho uma boa manter esse tipo de pessoa por perto, pois uma hora a chavinha desliga em relação ao comportamento dela com você.

A questão patrimonial é mais acentuada pois para ela existem consequências legais: se você compra um carro e não paga, vão na sua casa e te tomam o carro, por exemplo. Mas, não é só sobre bens e dinheiro. Ficar devendo em compromissos, em prestação de serviços ou em qualquer coisa que a pessoa voluntariamente acordou é igualmente feio. É mais tolerado no Brasil? Sim. Mas é igualmente feio.

“Mas Sally, imprevistos acontecem”. Certamente. Com todos nós. Mas aí você entra em contato e avisa que não vai poder honrar com o compromisso, remarca a data e pronto. Combinar algo e deixar o outro esperando e/ou nunca pagar o que se comprometeu é algo que não se faz com ninguém, desde seus filhos até o entregador de pizza. Com ninguém.

Eu não entendo o que leva a alguém a desconsiderar um combinado de forma unilateral, e não comunicar aos envolvidos. Talvez seja vergonha? Medo da reação? Talvez alguma anestesia de ir deixando para depois esse comunicado até esquecer dele e nunca fazê-lo? Eu quero acreditar que não estamos falando apenas de um puro sentimento de “foda-se”, apenas de falta de consideração. Deve ter algum conflito interno, algum trauma, alguma situação muito truncada que leva a isso.

Se no calote patrimonial a pessoa tem algum ganho financeiro, quando falamos de compromissos ela não tem nada a ganhar por deixar de cumprir um combinado com alguém. Muito pelo contrário, só tem a perder.

Talvez a pessoa não ache que vai perder nada, pois na cabeça dela seja essa a forma normal de se comportar: quando surge um imprevisto você pode apenas não aparecer e não precisa avisar. Mas não precisa ser muito esperto nem ter muita vivência para perceber que as pessoas ficam putas, que isso fecha portas e corrigir sua postura.

Em tempos de vacas magras da minha vida fui gerente de loja de shopping. Eu tinha um combinado com meus vendedores: podia faltar, podia atrasar, podia até faltar me dizendo que não estava a fim de trabalhar (nunca pedi atestado), podia tudo, desde que me avisasse antes. E quem não avisasse, não precisava voltar para trabalhar no dia seguinte pois estaria demitido. Eu sinceramente pensei que fosse funcionar. Não funcionou.

Em poucos meses de trabalho demiti mais de 50 pessoas por este motivo: não aparecer no trabalho e não avisar. O RH ficava desesperado com a quantidade de vendedores que passavam pela loja e eu só não fui demitida pelo fato da loja vender muito bem e dar muito lucro.

Não era algo de desgaste, de insatisfação. Eu demitia as pessoas ainda no período de experiência, o que quer dizer que logo nas primeiras semanas estavam faltando sem avisar. E eu nunca blefei, demitia sempre, ou seja, as pessoas sabiam que ia acontecer. E nunca onerei meus vendedores que cumpriam seu horário, quando demitia alguém eu mesma ia para as vendas.

Eram pessoas que não ganhavam mal pela formação que (não) tinham, não ganhariam esse salário no mercado médio que as empregaria. Tinha vendedor que comprava carro no final do ano com o salário de dezembro. Eram pessoas que passaram por um processo seletivo rigoroso para estar ali. Eram pessoas que não conseguiam emprego depois que eram demitidas. Ainda assim, jogavam tudo fora por uma besteira.

Isso me fez entender que de fato é pedir demais para que alguém que não vai comparecer a seu trabalho enviar uma mensagem avisando. Mas ainda não entendo qual é a dificuldade. O que trava essas pessoas?

Não digo ter a capacidade de se colocar no lugar dos outros e entender que quando as pessoas contam com você e você não aparece, isso prejudica a todos. Isso seria pedir demais. Mas a compreensão de que se fizessem isso seriam demitidos (que todo mundo tinha) deveria ser incentivo suficiente para pegar o telefone e enviar uma mensagem de uma linha. Não era. Fascinante.

Hoje a questão não me impacta tanto pois com a graça de tudo quanto é mais sagrado não tenho mais que fazer gestão de pessoas (odeio) e não moro mais no Brasil. Mas a curiosidade persiste. Por qual motivo, apesar de todos os avisos de que aquilo não deve ser feito, as pessoas continuam fazendo, quando elas mesmas se prejudicam com isso?

Por qual motivo, apesar das várias portas que fecham e das diversas pontes que queimam, as pessoas continuam fazendo? Será que acham besteira? Será que não percebem como é feio? Será que sabem de tudo isso e simplesmente não se importam? Se alguém tiver um palpite, por favor, deixem nos comentários.

E se você for uma dessas pessoas que tem uma trava ou um foda-se para honrar compromissos, sejam eles financeiros ou não, aproveita o efeito psicológico do ano novo e a falsa sensação de recomeço para melhorar: não é legal ser assim e, em algum momento isso vai te prejudicar de verdade. Aprenda pela consciência, entendendo que não é legal e se corrigindo, em vez de aprender pela dor, perdendo algo realmente importante, desde um amigo até um emprego ou o réu primário.

Para dizer que também não entende quem faz isso, para dizer que não entende qual é o problema em fazer isso ou ainda para contar sua teoria nos comentários: sally@desfavor.com

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Comments (34)

  • Sally, deixa eu dar meu pitaco também:

    Em tempos de vacas magras já trabalhei com telemarketing cobrança (sim, pasme! Digamos que seja baixar o nível, mas por outro lado, na base do desespero, considero que qualquer emprego é digno!) e quando estive lá, as coisas que ouvia das diferentes pessoas e diferentes públicos de acordo com a situação financeira, olha…

    Em resumo, muito do que tu disse no texto se confirma, brasileiro parece estar nem aí pra pagar, parece conseguir dormir com a consciência tranquila, mesmo sabendo que está devendo, que está com nome negativado etc. Eu sinceramente não consigo, se eu devo 5 reais a um amigo próximo eu já fico mega ansioso e nem consigo dormir direito!

    Mas essa pensamento e fala do brasileiro, é mais da classe média geral e povão: aquelas pessoas que acha que tem dinheiro ganhando entre 1 a 2 salários mínimos, pagam aluguel + arcam com despesas de casa (água, luz, internet, tel móvel), e acham ok continuar comprando gasolina no cartão de crédito, passagens aéreas, móveis pra casa, roupas, celular, entre outras futilidades e coisas que tu não precisa.

    A classe pobre mesmo, quem mal ganha 1 salário mínimo, esses sim são os que mais tem interesse em pagar, porque como já cansei de escutar, “quando tu não tem nada, a única coisa que tu tens pra honrar é o nome”. Esses fazem das tripas coração, fazem aqueles acordos assim de 60x de $50, mas fazem… Muitas vezes, levados por dificuldades de se organizar, acabam quebrando esse contrato longo, e daí a dívida volta com valores mais absurdos ainda, e vira uma bola de neve sem fim, porque o banco entende que, se quebrou contrato, aquela pessoa não é de confiança, e aí põe mais juros ainda na parcela. (Adendo off: ouvi dizer esses dias pra trás aí que tinha uma proposta a ser tramitada na câmara, ou algo assim, pra que os bancos cobrem menos juros das taxas de cartão…)

    Já na classe rica, já vi os dois casos: gente que quer mesmo pagar pra limpar logo o nome, e gente que não está nem aí, só porque tem dinheiro se acham os donos do mundo, afinal, pode mandar pra protesto mesmo já que tem dinheiro pra pagar todos os advogados possíveis e vai ganhar mesmo… no sentido contrário, já vi muita velhinha rica (esse roteiro é bem clichê!) reclamando do valor da dívida e reclamando que foi dívida de 3o, geralmente filho ou neto que pegou o cartão, usou e não pagou. Uma vergonha, parente usando cartão dos outros, e ainda por cima complicado tu confiar teu nome nas pessoas!

    Também já ouvi, nessa mesma seara, aquela galera que diz que “ahh pq a dívida já passou de 5 anos”. Na verdade, breve adendo: passou de 5 anos, a dívida sai do SPC/SERASA, mas continua no banco central e na blacklist daquele banco específico, e isso pode sim ser impedimento pra outro banco, por exemplo, oferecer empréstimo ou um novo cartão de crédito pra pessoa.

    Na contrapartida, já ouvi também muita gente rica reclamando que os juros estão abusivos, não sei o que, que não aceita pagar juros, e sim apenas o valor original da dívida et etc etc, só que esquecem que lá naquele contrato que a pessoa supostamente assinou algum dia na hora de fazer o cartão de crédito, tá escrito em algum lugar que a bandeira do cartão pode vir a cobrar juros e multas diariamente em cima do valor original.

    Um caso paralelo e derivado deste é quando a dívida está astronômica, por exemplo, 40 mil com juros e tudo mais, e o banco num ato de bondade dá 99% de desconto pra pessoa pagar a vista apenas 400 pila (e as vezes até msm em 4x de 100!), e a pessoa não aceita, diz que não tem como, ahh pq tá muito caro, isso aquilo, inventa mil desculpas.

    Daí tu fica pensando: poxa, a pessoa gastou originalmente 4mil, tinha dinheiro pra isso na época, mas não tem 400 agora? Bahh, me poupe! Salvo raros casos em que a pessoa diz (e aí a gente sempre dá um benefício da dúvida…) que tá desempregada, que tá passando por situações difíceis etc, não ter 400 é bem difícil de crer!

    Enfim, tudo isso foi um verdadeiro experimento antropológico pra ver a forma confusa como o brasileiro lida com o dinheiro.

  • Por sorte eu passei pela primeira experiência com brasileiro médio devedor bem cedo em minha vida, e por um valor relativamente baixo, 500 reais em 2011.
    Colega de trabalho disse que pagava assim que recebesse o próximo salário. Quando chegou o dia, não disse nada. E não disse nada durante todo o mês seguinte. Deixei passar uns dois meses antes de falar sobre o assunto, em particular, com a máxima discrição, sem ninguém por perto, e a resposta está até hoje gravada na minha cabeça: “nossa, mas você PRECISA desse dinheiro, AGORA?”

    Então deixei quieto. Disse que quando estivesse tranqüilo, pagava. E sinceramente, eu nem esperava receber.
    Pois bem, no dia do pagamento seguinte ele me aparece com 550 reais, coloca o dinheiro na minha mesa, fazendo questão de que todo mundo veja, e “agradece” com um tom de voz que gritava “estou te fazendo um favor, seu muquirana”. Devolvi os 50 reais extras dizendo que se emprestei X, não quero mais que X, e depois desse dia o cara nunca mais olhou na minha cara.
    Depois desse dia nunca mais emprestei dinheiro pra ninguém. Já ajudei parente, mas com coisa pequena, e considerando o dinheiro como dado. Não cobrei, mas ficaram sem graça de pedir mais e nunca mais falaram no assunto. Mas essa lição de que o brasileiro médio não tem o menor peso na consciência de dever pra quem ele julga estar numa condição financeira melhor do que a dele, digo que valeu bem mais do que os 500 reais.

  • Infelizmente isso não é de hoje e nem é coisa de brazuca (embora brazuca seja disso com orgulho… meio que faz parte de sua psiquê!). Deixo primeiro Tolstói falar:

    “- Preciso de dinheiro. Não tenho para viver.
    – Mas não vives?
    – Sim, mas cheio de dívidas.
    – Que me dizes? Tens muitas? – perguntou Bartnianski, afivelando uma máscara de compaixão,
    – Sim, uns 20.000 rublos.
    Bartnianski desatou num riso alegre.
    – Oh, és um homem feliz! – exclamou. – Eu devo milhão e meio e não tenho nada. E como vês, continuo a viver.

    Stiepan Arkádievitch pôde comprovar, de fato, a veracidade daquelas palavras. Jivákov tinha 300.000 rublos de dívidas e nenhum copeque. No entanto, vivia, e de que maneira! Havia muito tempo que o conde Krivtsov era considerado arruinado, mas mantinha duas mulheres. Pietróvski gastara 5 milhões, todavia vivia tão bem como anteriormente e até continuava a administrar bens apenas com um vencimento de 20.000 rublos anuais.” (Tolstói, L., N., Ana Karenina, Editora Abril, 1982)

    Ainda ontem acompanhei minha esposa a uma loja de roupas infantis cuja dona ela conhece. No papo, a dona estava putaça da cara porque estava com 8 mil reais de roupas emprestadas em condicional e ninguém as pagava e nem as devolvia. E o mais interessante é que a maioria das caloteiras eram as ricaças da cidade (que ela não nomeou, infelizmente!).

    Por fim, tive acesso a uma fatura de cartão de crédito de uma ex-vizinha que sabíamos estar devendo aí uns 4 mil reais no cartão de crédito. Depois de ter o nome negativado por meses, esta fatura oferecia a ela a possibilidade de encerrar a dívida pagando tão somente uns 250 reais, com o nome ficando limpo logo na seqüência.

    Gostaria de saber que mecanismo mental essas pessoas desenvolvem para achar a coisa mais natural do mundo dever e não estar nem aí. Não estou certo, mas parece que na década de 60, na bananalândia, o simples passar de um cheque sem fundo dava cadeia. Não sei se seria o caso dessa política voltar a funcionar…

    • Eu também gostaria de saber. A pessoa está devendo, está provocando um transtorno na vida alheia e não se incomoda. Dorme bem, não tem insônia, continua comprando coisas para ela, é como se nada tivesse acontecido.

      • Nem deve passar pela cabeça dessas pessoas que quem emprestou dinheiro pode ter transtornos, a maioria pensa apenas em si própria e no próximo prazer imediatista. Muitas não pagam nem serviços prestados, e quando pagam ficam pechinchando e pedindo descontos enormes.
        Eu tenho vergonha até de pedir dinheiro emprestado, também nunca emprestei pra ninguém e considero dado se ajudar financeiramente. Mas gosto da ideia de contratar serviços dos amigos, e de oferecer serviços aos amigos quando preciso de dinheiro, inclusive ótimos negócios saem disso. Mas têm de selecionar bem os amigos, eles precisam ser honestos.
        E sobre roupas na condicional, não tem nem o que dizer. Quando pegava, corria e fazia o possível pra devolver ou comprar no mesmo dia, condicional não é aluguel e não é pra sair usando por aí. Teve uma moça que tentou devolver um biquini usado na maior cara de pau, ainda bem que a dona da loja não aceitou.

        • Minha nossa, querer devolver biquini usado é de cair o cu da bunda. Beira o retardamento mental achar que daria certo! E não adianta: por mais que se coloque um aviso imenso dizendo que esse tipo de roupa não tem devolução, sempre vai ter o(a) idiota que vai tentar, PQP…

          • Conheço tanta gente que não gosta nem um pouco de seguir instruções nem de obedecer normas… E se for aquelas regras de convívio não escritas e ditadas apenas pelo bom senso, então… Aí é a que a cosia fica feia mesmo!

          • Não se preocupe porque você é normal, Gê. Eu também só fui descobrir esse tipo de “operação” comercial quando me mudei pro cudujudas onde hoje sou obrigado a me esconder devido a obrigações profissionais, há 12 anos. Deve ser algo baseado naquela “confiança” típica do interior do interior, eu acho, já que aqui é daquelas titicas de lugar onde todo mundo se conhece (e fofoca sobre a vida dos outros!). Um peido que você dê e a cidade toda já tá sabendo.

            Fico me perguntando como fazem pra meter chifres no(a) cônjuge sem que ninguém saiba…

  • “Ficar devendo em compromissos, em prestação de serviços ou em qualquer coisa que a pessoa voluntariamente acordou é igualmente feio”

    De fato, qualquer coisa. Festas de fim de ano. Aqui em família combinamos todo ano, com grande publicidade e antecedência, o valor individual do presente do amigo secreto e se vai ser tradicional ou ladrão. Uma escolha séria por aqui. Já vi um parente vomitar de nervoso depois de roubar o presente de outro parente idoso.

    Pois um de nossos parentes mais bem sucedido, que banca a vida dos filhos no exterior e troca de carro todo ano, sempre acha que o valor do presente acordado não é individual, mas um total atribuível a toda sua família (ele, mulher e 3 filhos). Isso quando não traz produtos de beleza e de saúde baratos que ganha de graça por conta do seu negócio.

    E aí, por óbvio, sempre saem ganhando no amigo ladrão. O cúmulo foi no ano passado, quando uma prima, ao final do amigo ladrão, acabou sobrando com uma dúzia de cremes de barbear baratos (tubos similares a pasta de dentes) que esse parente trouxe.

    Enfim, aquele tipo de pessoa (com ou sem posses) que tem muito por aí: topa sem discutir o orçamento que o decorador da moda cobra para renovar a casa, ou o valor do último iPhone, ostentando a vida nas redes sociais, mas se recusa por esporte a pagar o que o pintor, advogado ou o dentista cobra por seu tempo de trabalho (o que daria uma discussão à parte). Ou mesmo honrar 50 reais de valor combinado para o presente do amigo secreto.

    (Procuro bons advogados criminalistas…caso haja um linchamento no amigo secreto daqui a alguns dias)

    • Existe alguma chance de vocês barrarem o presente desse parente antes do amigo secreto começar? Dizendo, com muita educação, que ele não atende aos requisitos de preço e por isso ele não vai participar? Eu faria isso.

    • “Enfim, aquele tipo de pessoa (com ou sem posses) que tem muito por aí: topa sem discutir o orçamento que o decorador da moda cobra para renovar a casa, ou o valor do último iPhone, ostentando a vida nas redes sociais, mas se recusa por esporte a pagar o que o pintor, advogado ou o dentista cobra por seu tempo de trabalho (o que daria uma discussão à parte). Ou mesmo honrar 50 reais de valor combinado para o presente do amigo secreto.”

      Conheço vários desgraçados assim, Suellen. E eu simplesmente ABOMINO esse tipo de gente…

  • Sally, não sei se isso é coisa do interior de Minas ou se é generalizado pelo Brasil, mas as pessoas ficam horrorizadas e te chamam de grossa pra baixo se você diz que não pode ou não quer se comprometer com algo. Um cara já disse que era pior eu me recusar a fazer algo que sabia que não ia dar conta do que simplesmente enrolar a pessoa e não fazer. Talvez seja algum código social daqui que nunca consegui aprender, mas as pessoas não esperam que você cumpra algo e não esperam ser cobradas quando não cumprem.
    Meu pai ficou de consciência pesada depois que parou de trabalhar para um cliente que não o pagava há meses. O cliente em questão estava devendo mais de quinze mil reais e ainda achou que era maldade ficar sem o serviço.
    Acho que a única maneira de evitar passar por isso é manter nossa própria credibilidade e deixar bem claro que esperamos o mesmo das pessoas.

        • Acho bizarra essa cultura, e juro que queria ver um estudo ou algo do tipo tentando mostrar de onde vem isso. Será que é coisa de família, das antigas famílias mineiras, das famílias de origem europeia etc? Ou será que não tem nada a ver, e é só sacanagem e mau caratismo do brasileiro mesmo?

          Enfim, acho bizarra também essa coisa de a pessoa também não saber dizer não quando é necessário, como se, condicionado a isso, estivesse aquele pensamento de que uma hora ou outra a pessoa que foi pedida em algo teria algo a dever para aquela pessoa que pediu, ou antes, caso fosse necessário ela pedir, tivesse que ter em alta conta, enfim…

  • Brasileiro médio é tão fissurado em ostentar aos outros que tá por cima, que nem sabe como se faz. Quem se endivida comprando cacareco (ainda mais se for pra ostentar) é visto como um fodido e é motivo de piada pelas pessoas mais “catiguria”, que o brasileiro médio adora tanto puxar o saco.

    Quer uma guerra civil no Brasil? Corte toda espécie de financiamento ou crediário. Impeça que se faça empréstimos. Acabe com a lei de nome limpo em 5 anos. Brasileiro médio tem tara por tais coisas, porque permitem o financiamento de futilidades como IPhone ou TV de 500 polegadas.

    Quando ele é INCAPAZ DE SER PONTUAL, logicamente não será capaz de guardar nem que seja 10 pila por mês para uma reserva financeira ou um objetivo que não seja imediato como pedido de Ifood ou corrida de Uber.

    • Esse e outro tema que me fascina: ifood
      Como tem muito brasileiro adulto se dá ao desfrute de não saber cozinhar e viver de ifood. Não ser capaz de prover a própria alimentação é o maior sintoma de infantilização do adulto que existe. Uma coisa é pedir em um dia que se está cansado e não se quer cozinhar, outra é ser incapaz de preparar seu próprio alimento e montar um cardápio variado para cada dia do mês.

      • Nas mesmas redes sociais que o brasileiro adora jogar tempo fora, tem uma profusão de criadores de conteúdo ensinando um sem-fim de receitas, das mais simples às mais complexas. Então acho que nem o “não sei cozinhar” sobrou como argumento pra esse povo se defender…

        • Pois é, na era pré-internet eu até entendia, pois quem não tinha uma mãe ou uma avó para ensinar tinha que pagar um curso.
          Mas agora? O que mais tem é receita disponível e vídeo com tutorial. Mas parece que o adultinho está fugindo dessa responsabilidade também

    • hahahahahahahahahaha

      O curioso é: o maior índice de inadimplência não vem do pobre, o pobre tem muito mais preocupação em pagar.

  • Sally, eu também não consigo entender como é que alguém pode ficar devendo por aí dinheiro, satisfações, respostas, ou o que for, e não dar a mínima. Eu posso estar enganado e também gostaria de saber o que os demais Impopulares têm a dizer sobre essa questão, mas acho que se trata de uma confluência de pelo menos dois fatores:

    1 – por falta de ensinamento no seio familiar ou falha de caráter – talvez ambos – a pessoa não desconfie que esse comportamento é muito feio e prejudica a todos

    2 – o sujeio ser tão descompensado, burro e egoísta ao ponto de não ter a sua credibilidade, o seu emprego, ou o simples bom convívio com parentes, vizinhos, amigos e colegas como prioridades na vida

    E, por fim, cabe ainda uma pergunta: esse tipo de gente não passa vergonha o suficiente para perceber que isso não é bom e enfim parar de ficar devendo a tudo e a todos? Brasileiro Médio, em geral, se importa demais com o que pensam dele, mas é no mínimo curioso que nem o desagradável fato de ter contra si a péssima fama de irresponsável, de descompromissado e de caloteiro não baste para “virar a chave” na cabecinha dessas pessoas…

    • W.O.J, este comportamento é tão generalizado que as pessoas acham que deve ser normal viver assim e que qualquer coisa diferente disso é “ser duro demais”. Talvez crescer num ambiente assim, sem ver formas melhores de agir, faça com que a pessoa espere ser tratada dessa forma porque é a única forma que ela conheceu.
      É o tal do “se combinaram 19:00 com você, é para entrar no banho 19:00, se você já estiver lá no horário vai ficar esperando”. Quem tenta ser pontual e cumprir horários num ambiente assim acaba perdendo bastante tempo.
      E infelizmente, quem tem dificuldades para dizer não ou cobrar que algo seja cumprido no Brasil acaba tendo de lidar com pessoas que são incapazes de fazer o mínimo e ainda acham normal…

    • O brasileiro é um indivíduo que tem desprezo por regras e convenções que norteiam o convívio social. Tenho a teoria que muitas coisas que o brasileiro faz não ocorrem pelo fato do brasileiro não saber melhor, e sim porque o brasileiro sabe como as coisas funcionam, mas não se importa.

      Também tem o componente do “acordo social tácito”, onde todos podem cometer erros e faltar com a palavra e a ética, mas se você não cobrar uma melhora, os outros também não cobram a mesma melhora de você.

      E sempre tem o fator externo pro brasileiro culpar: se eu estou devendo no banco, não é culpa da minha total incompetência em me planejar: a culpa é do banco, das taxas de juros, da economia, etc.

      • Gui, eu concordo com o que você falou, mas também acho que o brasileiro tem um estranho critério de que é ok fazer com os outros mas fica putaço quando fazem com ele…

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