Comunismo reprimido.

Durante a sabatina realizada pelo Senado, a oposição fez questão de chamar o futuro ministro do STF de comunista. Dino não disse nem sim nem não, apenas desviou do tema. Quando parecia que o tema ia ficar só na boca dos bolsonaristas, Lula foi lá e comemorou na frente de uma plateia que finalmente tinha colocado um comunista no STF. Bom, direita e esquerda parecem concordar com isso… mas o que quer dizer ser comunista em 2023, quase 2024?

Bom, o comunista deve ser seguidor da teoria comunista de organização social, baseada no Manifesto Comunista de Karl Marx, certo? Faz sentido que a descrição seja essa. A questão aqui é que se você começar a comparar ideias e atitudes de quem admite ou é acusado de comunismo atualmente, as coisas ficam bem mais complicadas.

Vamos pegar uma máquina do tempo para buscar uma ideia relacionada: no começo da Idade Média, um cristão não era muito diferente de um fiel de uma das divindades romanas, por exemplo. Jesus, normalmente representado por estátuas de um jovem andrógino, era mais um dos tantos deuses que faziam parte da cultura local. A pessoa não tinha essa obrigação social de fechar só com uma divindade, monoteísmo parecia um desperdício para o povo da época.

O cidadão médio tinha pouco ou nenhum acesso à informação consolidada sobre a história ou os ditos poderes dos deuses que venerava, era algo bem mais relacionado às crenças locais. Muita gente deixava uma oferenda para Jesus e ia deixar outra para Minerva, por exemplo. Tinham sua fé, como as pessoas ainda tem, mas sem tantas regras como fazemos hoje em dia.

Com o tempo, o cristianismo ganhou poder, sua mitologia foi sendo mais bem divulgada, e depois de virar religião oficial do império romano, a ideia que temos agora da religião ficou mais bem definida. Digo isso porque um cristão moderno transportado para o passado poderia ficar chocado com a forma como as pessoas que se diziam cristãs pensavam e agiam antes dessa consolidação.

São milhares e milhares de anos de história de humanidade, as pessoas podiam até ter comportamentos parecidos em linhas gerais, mas nos detalhes, as coisas mudaram absurdamente de século a século. Muito se engana quem acha que o humano do passado não era uma máquina de mudanças e contradições como é agora.

Ver o passado pelas lentes dos historiadores é ver as informações que sobreviveram e podem ser explicadas de alguma forma, toda a confusão do dia a dia ficou perdida no tempo, assim como muitas das miudezas do nosso cotidiano vão desaparecer para quem estiver nos vendo do futuro. Você pode ter deixado uma foto e vídeo de cada dia da sua vida, mas eles provavelmente vão ser apagados, e se não forem, vai ser uma IA que vai ver tudo aquilo.

Dito isso, o que entendemos sobre comunismo na segunda década do século XXI já é um ser bem diferente do que os conceitos originais da filosofia de organização social definida por Marx. Chamar Lênin de comunista é algo muito mais bem definido do que chamar Lula de comunista, por exemplo. Lênin estava incluído no mesmo contexto que o livro que deu nome ao movimento, Lula não.

Ser comunista em 2023/2024 significa exatamente o quê? Rejeição ao modelo capitalista de fábricas lotadas de seres humanos trabalhando 18 horas por dia e morando em cortiços de grandes cidades? Combate aos burgueses industrialistas que controlavam todos os meios de produção de valor? O comunismo surge como uma resposta a um modelo econômico típico do final do século XIX, baseado nas visões de pensadores da época.

Mas quando falamos de comunismo agora, a coisa tem muito mais relação com comportamento. Comunismo é “tudo o que está errado aí” para boa parte da população com opiniões fortes sobre o tema. É algo que se desenvolve na mente do cidadão como um menino dançando balé enquanto a professora transexual tenta ensinar ele a ser gay. Comunismo, pela ótica dos senadores acusando Dino de ser defensor da ideologia, é o Estado legalizando o aborto ou proibindo a religião cristã (as outras eles concordam em proibir).

Comunismo, pela ótica de quem celebra a suposta visão de mundo de Flávio Dino, é o respeito à diversidade e preocupação com minorias oprimidas. Comunismo atual é uma mulher negra lésbica cadeirante sendo diretora de uma grande empresa e contratando transexuais para cargos de alto escalão. Eu não estou fazendo nenhum juízo de valor aqui, nem é o ponto do texto, é sobre o que a ideia de ser comunista se tornou com o passar das décadas.

Não foi à toa que peguei a tangente sobre a visão do cidadão médio sobre Jesus no passado e no presente. Algo que tinha um significado em um período histórico, mas foi se adaptando ao passar do tempo. Numa sociedade onde as relações eram próximas e havia menos pressão por homogeneizar pensamento, Jesus era uma estátua que dava sorte se fosse esfregada. Numa sociedade de cidades imensas onde quase ninguém se conhece, a divindade é um ponto comum onde ancorar sua visão da realidade.

O comunismo que surgiu na era das tentativas de revolução era um ser bem diferente do que habita nosso imaginário moderno. Mais ou menos como no caso da religião, ele precisou se tornar um ponto de concordância entre pessoas cada vez menos parecidas. É o demônio de um grupo e o deus do outro. Ele evoluiu para atender às necessidades do povo.

Me arrisco a dizer que a era do problema dos abusos dos burgueses contra o proletário acabou. Não porque o problema do abuso não existe mais, mas mais ou menos como a escravidão, deixou de ser algo visto como aceitável. Ainda exploram o proletariado, mas não podem mais fazer da forma como faziam na explosão de produtividade causada pela Revolução Industrial. Em tese, a humanidade já tem o ponto pacificado: o ser humano não pode mais trabalhar até morrer em ambientes insalubres, crianças não podem mais passar o dia trabalhando, existem leis trabalhistas e regras para seguir.

E não é o fato de muita gente desrespeitar que muda a lógica da coisa: ainda é proibido. Fazem porque conseguem escapar das consequências, mas elas existem. Falta melhorar a fiscalização e reduzir o poder político que empresários inescrupulosos conseguem amealhar com subornos e chantagens, mas a base do comportamento aceitável está definida. E acreditem ou não, o comunismo fez parte dessa vitória.

Quando falamos de comunismo numa sociedade com uma legislação de trabalho como a brasileira, há de se discutir o que exatamente sobrou do movimento original para… discutir. Talvez a parte utópica da coletivização dos meios de produção e igualdade absoluta pregada originalmente ainda seja o objetivo de alguns, mas basta ver quem se declara comunista hoje em dia para perceber que isso não está mais no centro da discussão.

E que como os detratores da ideia no máximo usam exemplos exagerados para assustar os mais incautos: quem nunca teve um parente dizendo que o Lula ia colocar um mendigo num quarto vazio da casa? Mas isso é só uma parte do que dizem para assustar as pessoas sobre o comunismo, o grosso do discurso está conectado com uma ideia de “marxismo cultural”, muito baseado nas ideias sobre sexualidade humana.

O que na prática não encontra muito eco nas ideias dos ditos comunistas. Lula, Dino e similares tem visões conservadoras sobre o tema, e mesmo que no fundo pensem diferente do dizem, estão lá citando a Bíblia quando acuados em temas de comportamento. O comunista moderno é um ser que reflete o foco doentio em sexualidade do conservador religioso moderno.

De alguma forma, esse é o tema do Século XXI: como e com quem você faz sexo. O comunismo, pelo menos no imaginário popular, virou uma ideologia que combate a repressão sexual das religiões, mas que na prática não tenta nenhuma revolução no sentido. As discussões sobre aborto e direitos básicos para homossexuais acontecem em todos os lugares, menos onde algo pode ser feito de verdade.

Onde estão os comunistas e como eles estão influenciando a sociedade? Os maiores defensores de pautas progressistas (novamente, de cunho quase que obsessivamente sexual) são grandes empresas pressionadas a tal por grupos de investimento. Capitalismo ao quadrado. O comunismo na sua versão original estaria com a mira focada nas novas relações de trabalho, na mecanização e na adoção de inteligências artificiais retirando poder da mão do trabalhador mediano, defendendo ideias como renda universal.

O último que eu vi falando sobre renda universal foi o Elon fuckin’ Musk. E antes dele, é uma posição vinda muito mais de libertários que são avessos a um Estado inchado comunista. Os temas do coração do comunismo estão sendo discutidos por capitalistas terminais, e o resto do povo continua achando que ser contra ou a favor do comunismo tem relação direta com ser contra ou a favor às liberdades sexuais do cidadão médio.

Claro, o mundo não é só uma pessoa ou só uma ideia, existem pessoas discutindo esses temas mais fundamentais do comunismo original, mas não são mais centrais à guerra ideológica acontecendo no mundo moderno. Tudo isso é para dizer que eu não sei mais o que quer dizer chamar uma pessoa de comunista.

O povão que vai bater palma para Lula e cia. em discursos provavelmente tem a mesma visão tacanha de mundo que o povão que vai bater palma para Bolsonaro e cia. Provavelmente seriam bons amigos discutindo como a mulher mereceu apanhar e como não querem ter filho viado. Mas um lado se diz comunista, o outro não.

Chegou num ponto que eu não entendo por que os conservadores estão furiosos com o comunismo de Flávio Dino e nem porque os progressistas estão comemorando isso. A palavra não parece significar mais nada. É um ponto de discussão que inflama os ânimos da maioria das pessoas, mas que não parece discutir nada na prática.

Ideologias tem prazo de validade. As que moldaram o último século ainda existem como palavras, mas seus significados não. Eu poderia escrever o mesmo texto sobre o vazio que é falar sobre fascismo, porque se você começar a se aprofundar, também vai chegar em duas pessoas discutindo a forma ideal de se utilizar o ânus.

Está mais do que na hora da gente atualizar as ideologias, elas não tem mais lógica dentro de uma sociedade que desesperadamente quer achar uma resposta para questões sexuais. Eu sempre falo sobre como no fim das contas é sobre sexualidade como se fosse uma ofensa à futilidade do cidadão médio, mas estou começando a rever esse ponto.

Por algum motivo que ainda não parece bem explicado, a humanidade precisa desesperadamente resolver essas questões, e não consegue fazer nada direito até ter uma resposta. Tem algo que não está legal na cabeça do cidadão moderno sobre a questão sexual, e ele está pegando todo tipo de ideologia não relacionada para dar um ar mais nobre à confusão.

E nessa bagunça ideológica, estamos estragando um conceito atrás do outro, criando disfarces cada vez mais malucos para discutir o verdadeiro interesse da humanidade, e matando o significado de coisas como comunismo, nazismo, fascismo, justiça social, política… o que quer dizer chamar alguém de comunista, de verdade?

Normalmente eu tenho uma resposta nos textos que começam com uma pergunta, mas dessa vez eu me sinto derrotado. Não sei o que é um comunista, não mais. Só sei que tem muita gente reprimida por aí (não só na direita) tornando nosso ambiente político uma bagunça sem fim.

Para dizer que o povo precisa transar mais, para dizer que comunista é quem você não gosta, ou mesmo para explicar o que é o comunismo em tese (agora tenta aplicar nas pessoas que se chamam de comunista…): somir@desfavor.com

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