Tribos perdidas.

Mais uma confusão entre torcidas, dessa vez entre torcedores do Boca e do Fluminense no Rio de Janeiro. Muita gente vai começar a falar sobre a necessidade de punições, de conscientização… mas eu quero olhar por outro ângulo: o ser humano ainda não evoluiu além da necessidade de tribos.

O problema da violência entre torcidas está intimamente ligado com a ideia de tribos e competição entre elas. O ser humano se amarra em fazer parte de um grupo com crenças parecidas, e se você tiver uma bandeira e um uniforme ainda, ele pira. O clube de futebol é um veículo perfeito para essa necessidade primal de fazer parte de um grupo reconhecível.

E é claro, temos que falar do elefante na sala: homens de uma certa faixa de idade, entre adolescência e meia-idade, tem um desejo muito primal de violência. Até acho que mulher, no fundo, é bicho selvagem também, mas falta potencial físico para demonstrar isso na prática. O problema é quase sempre homem de uma certa idade, e especialmente homem mais brutalizado por criação ruim e/ou pobreza.

Homem sem ter o que fazer é uma praga. Se não tiver nada distraindo os impulsos dele, é muito provável que ele entre para uma tribo para botar fogo em tudo ao seu redor. Torcidas organizadas tem uma atração gravitacional irresistível para esse tipo de cidadão. E ainda tem o bônus de ser um passo antes de crime organizado descarado, a pessoa pode até fingir que está fazendo algo por paixão ao invés de admitir que quer fazer parte de uma tribo que bate nas tribos inimigas.

Não quer dizer que todo torcedor organizado é bandido, mas quer dizer que bandidos adoram estar em torcidas organizadas. E no fundo, todo mundo sabe disso. Quando a presidente do Palmeiras sentou a pata nas organizadas tempos atrás, gerou muita revolta, mas só botou o dedo na ferida: é um monte de desocupado querendo descontar raiva nos outros. O fato de ter gente bacana e pacífica dentro dessas torcidas não muda o fato que elas são imãs de bandido.

E não muda o fato de que isso não é segredo. Quanto tempo você precisa conviver com gente maluca que quer matar o outro por torcer por um time diferente para perceber que essa gente é um perigo e você tem que se afastar? A verdade é que existe um certo conforto em ter gente brutalizada “do seu lado”. Um certo orgulho de fazer parte de uma tribo com guerreiros bem perigosos.

O ser humano nunca pode esquecer suas raízes primatas. É mais forte que a gente ter uma atração pela ideia de estar na tribo mais agressiva de todas. É aquela coisa de muito homem se valorizar na ideia de ser bandido e muita mulher de querer namorar com bandido. É uma macaquice que todos temos, gostemos ou não. Se não tivermos uma forma de controlar esses impulsos, ficamos nos matando indefinidamente.

E aqui eu trago uma percepção que os leitores homens vão reconhecer: tem algo de muito satisfatório na ideia de sair descendo a porrada no grupo adversário. Homem gosta da ideia de guerra. Mesmo que os que enfrentem uma guerra de verdade voltem para casa traumatizados, a guerra idealizada – onde você coloca para fora toda a agressividade que tem e forma laços de união com outros guerreiros – é uma droga poderosa na mente masculina.

Guerras mais leves como brigas entre torcidas dão doses cada vez maiores de agressão desmedida para esses homens, com repercussões muito mais leves que uma guerra de verdade. Quando uma pessoa tem que matar a outra a sangue frio ou vê um soldado amigo sendo destruído por um tiro de metralhadora, pode bater um monte de traumas que deixam o homem inutilizado para a guerra; mas se você volta para casa com uns roxos e uma história de batalha para dividir com seus amigos? É até vergonhoso como isso é divertido e recompensador para um homem.

Eu acho torcida organizada um antro de gente descompensada, mas eu não nego que tem algo de atraente na ideia de sair na porrada campal com outra torcida. Eu consigo imaginar de verdade a explosão hormonal de soltar toda a violência que vem de fábrica comigo, e como isso deve ser viciante quando vira rotina. Mas, eu tenho muito o que perder, seja em tempo e dinheiro, seja em perder o réu primário. Nem começaria com essa droga.

Tem algo muito natural na ideia de estar na batalha da sua tribo. É uma forma de socialização, acreditem ou não. Existem outras, bem melhores do que bater e apanhar, mas dependendo das condições da vida da pessoa, não são alternativas viáveis. A vida em grandes cidades pode até dar inúmeras opções de entretenimento, mas ela reduz muito a nossa capacidade de socialização.

Não é natural ter que conhecer um grupo novo de pessoas toda hora, não é natural conviver diariamente com gente que nunca viu antes. O ser humano não consegue mais formas tribos satisfatórias em grandes cidades. Grupos de amigos são uma coisa, tribo é outra completamente diferente. Tribo é um grupo grande que te oferece relações humanas menos profundas, mas que dão segurança e pertencimento. Seus amigos próximos não são sua tribo, são algo mais próximo de família.

Sem encontrar tribos no seu ambiente normal, a pessoa tem que procurar uma. E se você for pensar só em interesses como hobbies, não é a mesma coisa. União por interesses é menos profunda do que união de guerra. União de guerra vem do fundo dos nossos instintos, união por interesses compartilhados é algo muito mais recente na nossa história evolutiva.

Sua tribo de ciclistas, dançarinos ou jogadores de videogame não é a mesma coisa que uma tribo de torcida organizada. As baseadas em hobbies são muito mais abstratas do que as baseadas em batalhas contra outras tribos. O ser humano é um macaco que precisa de sua tribo para fazer sentido sobre o que é, e a tribo do instinto é tribo de proteção e guerra.

Torcida organizada está muito mais para o Hamas do que para fã-clube. Eu não chegaria ao ponto de dizer que essas torcidas organizadas são grupos terroristas, mas sim que se unem por motivos muito parecidos. Tem algo fundamentalmente perigoso no processo, e da mesma forma que até o Talibã ajuda algumas pessoas no Afeganistão, a torcida organizada pode fazer muitas coisas bonitas e divertidas, mas não muda o fato de que é uma tribo unida pela guerra, não pelo amor.

Por isso eu acho que não vai mudar nada ter ou não ter punições para o clube. A verdade cruel é que países que conseguiram enfraquecer os hooligans o fizeram cobrando mais caro pelo ingresso e elitizando todo o processo de frequentar o estádio. É escroto, mas é verdade. Os malucos violentos ainda existem em países como a Inglaterra, mas eles não tem mais condições de frequentar estádios.

Identificar, punir e proibir torcedores violentos ajuda muito, não estou negando isso, mas é falsa a ideia que foi só isso que baixou a violência em alguns países europeus. Talvez sem querer, eles enfraqueceram uma parte de socialização importante daquelas tribos de guerra: o encontro no estádio. Foram desfeitas muitas amarras entre as pessoas porque a maioria ficou sem ter como pagar ingresso ou chegar perto do estádio (protegido por muito mais seguranças).

Os grandes clubes ingleses focaram em torcedores ricos de outros países, jogaram pesado com a transmissão de jogos pela TV, mudaram muito o clima do estádio e o grau de paixão da torcida, que é muito mais casual do que a brasileira ou a argentina em geral. Eles foram matando as tribos e deixando um clima mais de festa genérica como nos esportes americanos (esses sim um exemplo de segurança, não tem separação entre torcidas e brigas são impensáveis).

O segredo é tirar a paixão da coisa. É deixar a tribo mais “plástica”, com mais cara de hobbie do que de tribo. Muito se fala sobre a elitização do futebol, e apesar de entender que perde muito da graça ter torcidas de pessoas com mais dinheiro que amor nos estádios, é uma excelente forma de matar as tribos de tédio mesmo.

O mundo ideal é um onde as pessoas podem ter esse amor maluco pelo seu time e “brincar” de guerra nos jogos, mas como o ser humano médio, especialmente em países pobres como o Brasil, é muito brutalizado, a coisa descamba para pancadaria e morte. Focar em mais punições para os torcedores e clubes pode até reduzir um caso ou outro, mas o cerne da questão continua o mesmo: tribos em guerra.

Que arranquem toda a paixão do torcedor latino, que eles fiquem gritando bobagens como “defesa, defesa, defesa!” como os americanos. Porque vivemos numa sociedade que não tem mais como oferecer tribos para o cidadão médio, a evolução da espécie vai deixar coisas boas para trás também, vamos ter que ficar menos passionais e instintivos com o passar das décadas. Senão vai continuar acontecendo esse tipo de briga bizarra.

Pela elitização do futebol, pelo esmagamento da alma do torcedor. Não souberam fazer algo decente com isso, não merecem mais ter isso.

Para dizer que futebol é coisa de animal, para dizer que o time do amiguinho é mais bandido que o seu, ou mesmo para dizer que o esporte tem que acabar: somir@desfavor.com

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Comments (4)

  • Embora o que tu disse faça sentido sim se a gente considerar um aspecto antropológico da coisa, olha… Eu ainda assim fico com essa birra: não entendo essa necessidade de homens terem essa violência toda pra extravasar e essa necessidade enorme de se sentir dentro de uma tribo etc. Isso pra mim é bem coisa de gente que não tem o que fazer, que não dedica seu tempo estudando alguma coisa, se aprimorando, ou mesmo se conhecendo melhor, enfim. O que acho mais complicado disso tudo aí é justamente o fato de certos bandidos “espertinhos” se aproveitarem da população fácil e vulnerável pra promover mais crime e violência ainda.

    • Concordo, Ge. Mas, infelizmente, pros trogloditas que fazem essas barbaridades, isso que você disse sobre aprimoramento pessoal e auto-conhecimento é apenas “coisa de viado”.

  • “Não souberam fazer algo decente com isso, não merecem mais ter isso.”

    Acredito que isso também vá se aplicar aos movimentos progressistas em breve.

    Outra forma de coibir essa macaquice é reduzir a pobreza em si. Eu sei, ideia utópica, mas quanto mais pobreza, precariedade e marginalidade, mais propensas às pessoas estarão para a violência e a necessidade de uma tribo, inclusive pela sensação de apoio e segurança que proporciona.

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