
Manda quem pode.
| Somir | Flertando com o desastre | 6 comentários em Manda quem pode.
Brasil e Colômbia reclamaram da forma como seus nacionais deportados dos EUA foram enviados de volta. Os colombianos pediram vergonha extra no seu sanduíche de humilhação, por isso a versão tupiniquim nem chamou tanta atenção. Mas não muda o fato de que na hora do vamos ver, o mundo ainda é de quem tem mais força.
Tempo de leitura: Três décadas
Resumo da B.A.: O autor declara seu amor pelos Estados Unidos da América, justificando todos os crimes humanitários cometidos pelo país. Além disso, diz que temos que aceitar o papel subserviente.
Como bem apontado no Desfavor da Semana do qual não pude participar, até mesmo os funcionários mais esforçados da máquina de propaganda governamental estão sem graça de empurrar a narrativa pedida por Lula e cia. Um dos desdobramentos desse momento de fraqueza é que a maior parte das pessoas foi exposta ao que realmente aconteceu: o mesmo de sempre, mas agora utilizado de forma política.
Os aviões cheios de brasileiros devolvidos com algemas e correntes não são invenção de Trump. O ex-governo do amor americano fazia o mesmo. Os deportados foram presos e processados pelo governo Biden, e os aviões vieram do mesmo jeito que vinham desde 2017, quando Brasil e EUA assinaram um acordo para deportação.
O show todo foi baseado no fato de que o avião ianque estava uma porcaria e teve que descer antes em Manaus. O que gerou as fotos dos brasileiros acorrentados andando feito pinguins pelo aeroporto manauara. Alguém que não estava acostumado com a cena viu, ficou chocado, e as coisas foram escalando até o ministro da Justiça mandar soltar todo mundo e terminar a viagem até Belo Horizonte num avião brasileiro.
Não esperem de mim o argumento que “eles entraram ilegalmente nos EUA, tinham que ser maltratados”, porque existem leis e tratados internacionais para colocar ordem na coisa. Estava escrito no acordo que não poderiam dar condições desumanas aos brasileiros trazidos de volta (e nem precisava, porque Brasil e EUA são signatários da Declaração Universal dos Direitos Humanos), e avião sem ar-condicionado, especialmente no calor do verão brasileiro em fuckin’ Manaus… o argumento de abuso faz muito sentido.
Naquele vôo o padrão de qualidade estava abaixo do aceitável. Justo o governo brasileiro reclamar. Aliás, como faz desde a assinatura do tratado de cooperação para deportação de ilegais: o Brasil reclama há muitos anos do uso de algemas e correntes nos tornozelos. Os EUA não querem saber, é a forma como eles fazem isso (pelo menos com pessoas de países pobres).
E francamente, dentro da lógica de Estados de Direito moderno, faz parte do jogo restringir o movimento de pessoas que estão sendo deslocadas contra sua vontade. Não tem como entrar contra os EUA em um tribunal internacional dizendo que é tortura ou algo do tipo. Primeiro porque os EUA ignoram tribunais internacionais (mais sobre isso depois) e segundo porque nem mesmo os juízes mais humanistas discutem o direito dos agentes do Estado de se protegerem de pessoas perigosas com restrições físicas como algemas.
Papo chato, mas relevante pelo ângulo que eu quero explorar: não era um drama humanitário. Não era novidade. Não era nem desígnio do homem laranja mau, porque o governo democrata americano deportou até mais brasileiros do que o do primeiro mandato de Trump. O governo brasileiro teve um dos seus arroubos de rebeldia piolhenta contra os imperialistas, achando que ia lacrar em cima do Trump, mas rapidamente percebeu que não estava em solo firme.
E podemos agradecer ao presidente colombiano por esse choque de realidade: Petros resolveu apostar tudo ao se rebelar contra os EUA, recusando receber os seus deportados. Tomou uma invertida imediata de Trump, que ao declarar taxação de 25% sobre tudo o que a Colômbia vendia aos EUA, basicamente deu a escolha entre engolir o sapo ou destruir a economia do seu país até os locais os expulsarem do poder.
Engoliu o sapo. O governo brasileiro resolveu acalmar os ânimos e só o gado mais gado ficou lá tentando lacrar contra os americanos. Nem mesmo a imprensa tradicional se empolgou em empurrar a narrativa de abuso terrível contra aqueles brasileiros. O meu lado otimista quer pensar que eles analisaram o caso com calma e perceberam que foi uma falha pontual e que dava para resolver na civilidade.
O meu lado realista diz outra coisa: Trump está exercendo um poder que os americanos abdicaram de exercer há décadas, e isso acaba de ficar bem claro para quem quer fazer graça às custas deles. Quem manda no mundo é quem tem força para intimidar e dinheiro para subornar. Os EUA são o maior império que jamais vimos, tão absurdamente acima do resto do mundo nesses itens que se deram ao luxo de colocar uma máscara de liberdade e respeito aos direitos fundamentais por sobre esse poder.
Eles não precisam ser assim. Eles escolheram ser assim. É um cálculo que todo mundo com muito poder precisa fazer: o quanto você morde e o quanto você assopra. Quem só tem subordinados perde todas as vantagens de ter aliados. Você concede algumas coisas e se amarra em algumas regras para que o resto do mundo não te veja apenas como um déspota. Sim, os americanos poderiam tentar controlar o mundo com mão de ferro, colonizando os países mais fracos e ameaçando os mais fortes, mas historicamente isso coloca prazo de validade no seu império.
Se os seus inimigos começarem a ficar muito numerosos, tem um ponto de desequilíbrio que começa a erodir seu poder de dentro para fora. Diversos outros impérios históricos caíram dessa forma, não necessariamente por um grande ataque de um adversário, mas por uma degeneração das estruturas de poder internas até algum dos inimigos ganhar uma batalha decisiva e a bola de neve virar uma avalanche.
Os americanos, assim como a maior parte do mundo moderno, têm acesso às lições do passado. Mesmo com o poderio militar e econômico sem comparação, escolheram fazer sua expansão pelo lado cultural. E com essa cultura, alguns valores fundamentais sendo bombardeados por Hollywood e similares: liberdade, justiça, coragem diante dos tiranos, etc.
Não precisa ser um gênio para perceber que há muita hipocrisia nesse pacote cultural americano, mas muita gente parece esquecer que esse grupo de valores criou boa parte do que entendemos sobre as relações internacionais dos dias atuais. Não era normal na antiguidade pensar muito sobre a opressão vivida por outros povos, não era normal esperar que países deveriam se tornar democráticos por definição. Os americanos permitiram a instalação dessa ideia na mente da maioria de nós.
Por serem bonzinhos? Olha, ninguém é só bom ou ruim, o ser humano é complexo, às vezes ser admirado e considerado nobre é bem mais recompensa que dinheiro e poder. Sim, podemos entender que os EUA empurraram essa ideia de terra da liberdade porque era mais inteligente ganhar aliados e fãs do que apenas colocar medo nos outros países, mas é claro que é um ganho secundário serem vistos dessa forma, como defensores da liberdade e da justiça democrática.
É um país, mas são pessoas. O americano médio gosta dessa imagem, meio como o brasileiro gosta de ser reconhecido como povo feliz. Essas coisas vão virando parte da identidade nacional, e todo mundo pega um pouco disso ao passar um tempo dentro da cultura local. Dito isso, é uma imagem. O poder dos EUA ainda existe pelo ângulo militar e econômico. Eles podem te matar de tiro ou de fome a qualquer momento.
Passamos por décadas e décadas em que os governos da superpotência tentaram manter esse aspecto menos explícito. A última grande demonstração de força foi no massacre do Iraque, onde os americanos atacaram com força quase máxima por alguns dias e destruíram um país inteiro. Algo que é pouco dito é a diferença entre os EUA da Guerra do Vietnã para os EUA da Guerra do Golfo. Na época do ataque ao país do sul asiático os EUA eram mais fortes que a concorrência, na época do ataque ao Oriente Médio, eles estavam em outro universo de poder.
Foi um salto imenso de força militar em comparação com o resto do mundo. Por mais que vejamos exércitos que aparentam ter alguma paridade com o americano na Rússia e na China, eu argumento que ainda não chegou o ponto onde esses dois países realmente achem que possam competir. Podem incomodar e se mostrar um alvo muito custoso de acertar, mas não é como se Putin ou Xi Jinping achassem que dá para ganhar numa guerra aberta.
Porque muito provavelmente não dá. Vão queimar metade do mundo no processo, mas não vão tirar os EUA de combate. Ninguém invade e conquista os EUA com a tecnologia atual. Você só vai ter um bicho ainda mais raivoso mirando seu país com bombas atômicas. Esse é o poder real dos EUA. Eles podem usar essa vantagem para anexar basicamente qualquer país nas Américas, podem tomar a Europa, a África, a Oceania… só a Ásia que seria mais complicada, mas dado tempo suficiente, acho que só a China restaria, e mesmo assim, sitiada.
Trump tem o maior porrete nas mãos. O custo de usar é transformar a superpotência da liberdade que criaram na mente do resto do mundo virar tirania e garantir que o império caia no futuro. Mas Trump tem mais 4 anos de governo e claramente não liga para o que acontece no futuro distante. Não quer dizer que ele vá usar esse porrete para forçar o mundo a aceitar tudo o que quiser fazer, mas quer dizer que depois de tantas décadas, alguém está finalmente falando o que todo mundo estava pensando. Eles podem mais se você resolver fazer vistas grossas para os valores que os americanos passaram tanto tempo empurrando com sua indústria cultural e escolhas diplomáticas.
E Trump ganhou a eleição porque mais da metade dos americanos com direito a voto queria alguém que tivesse um plano para melhorar suas vidas. O plano de Trump não era muito complexo: exibir o porrete e lembrar o resto do mundo que o país estava se segurando o tempo todo. Que a “Pax Americana” é uma escolha do maior exército e economia do mundo. Talvez até pela simplicidade e obviedade do plano, convenceu a maioria.
Então, é curioso ver como Lulas e Petros da vida vão lidar com essa realização. Em tese, deveriam saber que assim como Maduro, só não são esmagados porque não valem o esforço. Na prática, mesmo que com o porrete econômico, Trump mostrou que algo mudou na ordem mundial, que o país mais poderoso vai usar seu poder óbvio por não ter mais medo de perder a imagem de líder benevolente da democracia moderna.
Eu sinto que vai ser aquele efeito cachorro latindo com o portão fechado e mansinho quando aberto. O sistema funcionava até aqui com uma troca: os EUA deixavam líderes de países mequetrefes latirem à vontade desde que não pulassem a cerca. Lula foi um dos mais beneficiados pela prática: latiu e latiu por décadas, ameaçando pular a cerca sem fazer de verdade. Trump pode ser um imbecil em mil elementos diferentes, mas não é cego para obviedades, Lula é um dos que quer ter alternativas ao dólar, junto com as ditaduras da Rússia e da China.
E isso é mais do que latir. Trump avisou imediatamente que ele estava passando do limite. Não é por nada não, mas o papo de uma moeda alternativa para os BRICS perdeu o fôlego imediatamente. Ele achou que poderia continuar latindo, mas a resposta rápida e agressiva contra seu colega de cargo colombiano demonstra que nem isso está liberado.
Ache justo ou não, o poder real dos EUA é muito, mas muito mais opressivo do que crescemos vendo. Eles escolheram seguir por outro caminho mirando em controle cultural, mas com a monocultura ianque sendo substituída mundo afora, o risco de o porrete reaparecer é muito maior. Eu acho que Lula entendeu isso ou alguém mais safo em política internacional avisou que não era hora de latir. Ruim com os EUA fingindo serem bonzinhos, pior sem essa fachada.
O “mundo pacífico” sob o controle americano é uma ilusão, não ilusão de ter mais poder que realmente tem, mas uma ilusão criada por eles mesmos que não vão exercer esse poder todo. Podem fazer isso a qualquer momento, e não tem muito o que fazer para parar. Não deixa de ser algo parecido com uma Síndrome de Estocolmo: fomos sequestrados e nos convencemos que o sequestrador é uma boa pessoa.
Engraçado que para a média dos sequestradores, não deixa de ser um dos mais razoáveis. Mas ainda é um sequestrador. Eu entendo quem não gosta dos EUA e de seu poder quase que absoluto, eu só não entendo quem defende opções que são apenas trocar esse sequestrador por um ainda mais autoritário e violento! O que a gente ganha se trocar os EUA por China ou Rússia? Ou nos livramos de sequestradores ou ficamos com esse que pelo menos sabemos como conversar.
Eu acho uma merda que tenhamos um país tão mais poderoso que os outros, mas essa é a merda real. Passamos muito tempo debaixo de uma liberdade de crítica baseada em irrelevância do crítico, que políticos populistas de esquerda usaram para formar suas imagens em países latino-americanos; mas agora eu vejo os EUA repensando esse acordo e exigindo mais. E não deveria ser surpresa para ninguém: eles podiam fazer isso a qualquer momento. Vão fazer.
E se os governantes eleitos pelos latino-americanos não souberem lidar com isso, quem paga o preço, adivinha só… é o povo mais fraco. Pode achar os americanos uns filhos da puta se quiser (eu ainda acho que é mais complexo do que isso), mas tem que entender que qualquer ilusão de poder sobre eles é só isso: ilusão. Criada e mantida por décadas e décadas de doutrina de dominação cultural, algo que eu até acho inteligente, mas que não dura muito quando o preço do ovo por lá começa a subir…
Eles não são amigos como a direita diz, eles não são nem inimigos como a esquerda diz, eles são mais fortes e naturalmente nos deslocam com os movimentos que fazem. Por um lado, eu não quero que o Brasil seja burro de bater de frente com o Trump e pagar caro economicamente, por outro eu estou babando para ver o Lula bancando o presidente arrogante de República das Bananas para cima dele. Escolhas, escolhas…
A melhor decisão seria aproveitar a onda anti-imigração do Trump e tentar tornar essa bagaça aqui mais atrativa para imigrantes qualificados. Aquele pessoal chinês e indiano da tecnologia, por exemplo, mas não só. Dependendo da idade deles, de repente dava até pra prolongar o bônus demográfico. Seria uma boa oportunidade pra fazer acordos e tentar tirar a indústria nacional da era de fazer nas coxas e colar com cuspe, mas isso é muito coisa de mundo ideal.
No mundo real, a gente vai exaurir o agro em poucas décadas e afundar assim que não der mais pra depender dele. Vão continuar ladrando e engolindo sapos, mesmo sabendo que a melhor estratégia seria aproveitar a nossa própria insignificância pra fazer algo que realmente seria útil daqui alguns anos.
“(…)Petros resolveu apostar tudo ao se rebelar contra os EUA, recusando receber os seus deportados. Tomou uma invertida imediata de Trump, que (…) basicamente deu a escolha entre engolir o sapo ou destruir a economia do seu país até os locais os expulsarem do poder”.
Curiosa essa postura do presidente da Colômbia de recusar os deportados. Lembremos que a Colômbia, assim como alguns outros países, permite a deportação de seus próprios cidadãos para responder crimes no exterior, mais especificamente relacionados ao tráfico de drogas (sendo inclusive proativamente levados de avião por agentes do DEA, que atuam dentro do seu próprio quintal, para serem julgados nos EUA) e, agora, não quis receber de volta seus cidadãos que cometeram objetivamente ilegalidades no exterior.
Ou seja, um indicativo de que o país não tem estrutura (técnica, social, moral, jurídica, econômica ou todas elas em conjunto) para lidar sozinho com as mazelas de sua própria sociedade e sempre vai precisar dos EUA para limpar a bunda.
Parece aquela piada do Robin Williams em que os franceses vivem metendo o pau na falta de classe e de cultura dos americanos até que alguém fala que os nazistas estão chegando…”Hello, Americans, we love you”.
(não que sejamos muito melhores do que os colombianos…)
Em caso de guerra, nós inclusive somos muito amigos dos americanos. Nós temos um tratado de defesa mútua, do qual a Colômbia e vários outros países da América Central e Latina fazem parte, com termos parecidos com os da OTAN. Segundo meus contatos no exército, esse tratado é uma das razões pelas quais nossas forças armadas só têm munição pra uma hora de guerra: dificilmente teremos conflito armado, e se tivermos, os EUA são obrigados a nos armar e nos defender. O tratado foi feito depois da II Guerra, para evitar alinhamento com a URSS. Sei que alguns países denunciaram esse acordo há algumas décadas, mas os EUA nunca sequer fizeram ameaças a respeito, e duvido que mesmo o animal mais irracional do nosso governo seria maluco de ameaçar sair.
Fora que nós também temos um passado sombrio com deportações no Brasil, basta perguntar aos descendentes da Olga Benário…
Muito bom o seu comentário, Paula.
“Em caso de guerra, nós inclusive somos muito amigos dos americanos. Nós temos um tratado de defesa mútua, do qual a Colômbia e vários outros países da América Central e Latina fazem parte, com termos parecidos com os da OTAN. Segundo meus contatos no exército, esse tratado é uma das razões pelas quais nossas forças armadas só têm munição pra uma hora de guerra: dificilmente teremos conflito armado, e se tivermos, os EUA são obrigados a nos armar e nos defender”.
Olha, taí uma coisa que eu não sabia…
Sim, Somir. Sem dúvida, manda quem pode (os EUA desde sempre e mais ainda agora, na nova adminstração Trump). O ruim é quando quem deveria obedecer (os “Lulas e Petros da vida”) não tem juízo. E, para piorar, os imbecis supracitados também se recusam, por burrice, teimosia e/ou egolatria, a recolherem-se às suas respectivas insignificâncias.
Que merda…