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Abusos.

Abusos.

| Somir | | 24 comentários em Abusos.

Com as várias denúncias de abusos que vão se acumulando contra Saul Klein, filho do fundador das Casas Bahia, podemos ver como o ser humano pode ser terrível, especialmente se tiver dinheiro e poder para bancar suas vontades. Mas, não é que as vítimas aceitavam o convite, voltavam e às vezes até tinham uma espécie de relação com o vilão?

Acho muito importante começar o texto dizendo que não duvido das garotas que o denunciaram. E que os relatos demonstram uma pessoa que precisa sim receber uma punição exemplar pelos abusos que cometeu. A partir do momento que se estabelece o crime, não é para ficar relativizando merecimento. O meu ponto não é dizer que essas garotas não têm direito de reclamar, evidente que têm; mas sim falar sobre a bizarrice que foi o processo de aliciamento delas.

Bizarrice da qual, entendendo de verdade ou não, elas participaram. O esquema de Klein não consistia em sequestrar meninas na rua e levar para uma prisão escondida, e sim em prometer uma carreira de modelo que rapidamente se transformava em prostituição com muitos abusos. Os abusos estão sendo investigados e provavelmente terminarão em condenação (quando a mídia vai pra cima, fica difícil subornar polícia e judiciário), mas o esquema… bom, esse deve continuar funcionando para quem quiser, e claro, puder pagar.

Porque segundo a lei brasileira, você pode pagar para uma pessoa em troca de sexo. Não é um contrato executável por vias legais, afinal, nenhuma pessoa pode ser obrigada a fazer sexo, mas caso as partes sejam adultas e sigam com a troca, não aconteceu um crime. Klein já se ferrou, e muito, por ter feito essa proposta (por intermédio de terceiros) para garotas menores de idade, mas o conceito geral não é criminoso. Com as menores de idade, não tem nem o que argumentar: crime e ponto desde a primeira proposta sexual. Mas algumas eram maiores.

E é aqui que temos que começar a pensar melhor sobre a situação que se desenvolvia: as jovens eram aliciadas com promessas de uma carreira de modelo, e já nos testes recebiam a indicação que o “dono da empresa” poderia fazer o que quisesse com elas, inclusive ter relações sexuais. Aqui existe uma zona cinza que precisa ser esclarecida: se não houve coação direta ou indireta nesse momento, eram mulheres aceitando se prostituir.

Porque não tem malabarismo mental que justifique fazer sexo para passar num teste para modelo, mesmo que a pessoa ache que faz parte do processo, isso se chama prostituição. Se não havia elemento externo forçando-as a continuar o teste que não fosse o desejo de conseguir mais dinheiro, não tem muito o que se argumentar sobre o que ocorria ali. Troca de sexo por dinheiro. Prostituição.

Abusos cometidos durante esse ato são crimes, novamente não tem o que discutir. Pode até existir tolerância de fazer sexo em troca de dinheiro, mas não existe tolerância para sofrer violência física: não pode e ponto final. O contrato é nulo porque o “produto” nunca poderia ser vendido para começo de conversa. Não adianta dizer que a pessoa sabia que iria apanhar ou sofrer qualquer tipo de violência sexual antes. Então, novamente, não é nesse ponto que eu estou tocando: crime é crime.

O que me incomoda é algo que todos sabemos aqui, mas não podemos falar: tudo indica que praticamente todas as garotas que denunciaram Klein acharam que estavam tendo uma vantagem nessa troca, pelo menos por um tempo. Não ligou um alarme na cabeça delas dizendo que aquilo poderia dar muito errado muito rápido. Ou, se ligou, não foi forte o suficiente para impedi-las de voltar a vender seu corpo para o empresário seguidas vezes.

Não estamos falando de mulheres que estavam passando fome, vivendo na rua, estamos falando de mulheres que muitas vezes sofreram um abuso e voltaram para ganhar mais dinheiro. O assunto é espinhoso porque muita gente pega essa mesma base que eu peguei para dizer que elas sabiam muito bem o que estavam fazendo, tiraram vantagem até serem trocadas por outra e agora estão processando para ganhar mais dinheiro. Como se fosse uma relação de igualdade que está sendo explorada por mais uns trocados e biscoitos de rede social.

Não era uma relação de igualdade. Era exploração de gente em posição de vulnerabilidade. E eu digo isso mesmo achando, de verdade, que a maioria sabia que o estava fazendo e veio reclamar porque a fonte secou. Eu não consigo confiar que essas mulheres eram mesmo capazes de tomar as decisões que tomaram. Tenho certeza que muitas das aliciadas pularam fora quando viram onde estavam se metendo, e que algumas mais calejadas sequer acusaram o golpe: dinheiro fácil com um velho tarado.

Mas as que realmente ficaram com sequelas desses abusos provavelmente não eram tão espertas como imaginavam, ou pior: não entendiam mesmo o que estava acontecendo. E essa é a minha preocupação. Quanta gente assim existe nesse país? No mundo? Gente que se enfia nessas situações, apostando numa loteria do sucesso financeiro, que como toda loteria, premia poucos. É gente que não tem noção de probabilidades que tende a apostar em loterias. E mais cruel: são algumas delas que ganham, o que perpetua essa ideia de que é uma saída viável.

Eu tenho uma discussão antiga com a Sally sobre prostituição: eu tenho uma mente mais libertária e acho que não pode ser proibida. Seria o Estado regulando o que o cidadão faz com seu corpo, o que nunca me agrada. Mas cada vez que eu presto atenção em casos como esses, paira uma dúvida: até que ponto a maioria desse povo é capaz de entender as consequências dos próprios atos? Eu não demorei mais que um piscar de olhos para achar todas as propostas que Klein e seu estafe fizeram às moças muito erradas. Eu vi de longe o esquema de prostituição, e que dizer que “fazer companhia numa festa” era código para fazer sexo com ele.

Não é possível que elas não tenham visto tudo isso também, né? Cada vez mais eu duvido que vivemos num mundo onde a maioria percebe essas coisas claramente: porque tem dois níveis nessa história, no primeiro a pessoa é inocente ao ponto de acreditar mesmo no papo furado de aliciadores, no segundo a pessoa sabe que tem sexo envolvido, mas acha que pode sair por cima ou enrolar quando chegar a hora.

Dois tipos de mentalidade que geram vítimas. E que podem ser neutralizadas com uma criação mais atenciosa e companhias mais racionais. Tenho certeza que as mulheres que leem e comentam o Desfavor já estão fora dessa faixa de vulnerabilidade, por exemplo. Por que não é só sobre ter dinheiro para não precisar disso, é sobre ter um mínimo de noção sobre como o mundo funciona e não assumir riscos que não pode calcular.

Então, sim, Klein cometeu abusos e precisa pagar por eles, por mais que as moças envolvidas tenham voltado seguidas vezes para suas garras, provavelmente por interesse financeiro; há algo de muito errado na incapacidade de muitas delas de quebrar o ciclo. E não vai ser a prisão do empresário que vai evitar que esse problema se repita. É apenas sintoma de uma doença muito mais séria.

No Brasil e em vários outros países pobres, o abandono intelectual de jovens é um problema terrível: formamos homens e mulheres que não conseguem se defender de predadores sociais, que não tem pensamento de longo prazo desenvolvido e pior, que por falta de relações com pessoas mais capazes, acabam acreditando que são muito espertas. Não são. São alvos fáceis. A era da comunicação deixou quase todos eles alcançáveis por quem quer que queira tirar vantagem.

O golpe do “teste para modelo” já deveria ser fato consumado na mente de todo mundo a essa altura do campeonato. Mas não é. O conhecimento não está passando como deveria, e talvez a “cultura da prostituição online” com influencers esteja só piorando isso: mais e mais gente acredita que a fama está próxima, que todo mundo vai ter uma chance, é só pagar o módico preço de um abuso ou outro no caminho.

Toda essa história de #metoo pode até ter ajudado atrizes de Hollywood, mas parece ter feito pouco pelas mais humildes. Empoderamento sem dinheiro e educação é só uma hashtag. Na vida real, ainda temos muita gente sem condição de lidar de forma racional com golpes óbvios como o que Klein aplicava naquelas moças. Aí, ficamos com a tentação de só olhar para um vilão e achar que derrubar ele resolve alguma coisa, ou, talvez até pior, exagerar no cinismo e achar que elas mereceram tudo o que sofreram.

Nem uma coisa, nem outra. Isso não acaba com a prisão de um predador, isso não se corrige com o sofrimento de mais pessoas nas mãos de outros (mesmo que elas tenham entrado nesse esquema de abuso pensando em tirar vantagem). Isso é resultado de abandono sistemático de pessoas por um sistema que valoriza desigualdade, que faz todo mundo querer ser esperto para burlar o golpe um do outro, e que promete fama e dinheiro para quem não tem nada além de uma bunda para mostrar.

Era para esses casos estarem em queda, mas cada dia que passa, estoura mais um escândalo. Talvez nem estejamos vendo um crescimento, porque hoje em dia tudo é mais público, mas é preocupante mesmo que o número de casos fique estagnado. Quer dizer que a evolução que vemos em vários aspectos da vida em sociedade está limitada a uma minoria privilegiada. Nos corredores estreitos da vida mais humilde deste planeta, ainda tem muita gente que cai no conto do empresário tarado… e se acham muito espertas de entrar nele até as coisas ficarem terríveis.

Torço para que tenhamos menos um em atuação logo, mas nada parece estar mudando para evitar o próximo caso.

Para dizer que eu estou culpando a vítima (vulgo nemli), para dizer que preferia quando eu era mais escroto nesses casos, ou mesmo para dizer que se fosse rico faria o mesmo: somir@desfavor.com


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