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Autocuidado e saúde.

Autocuidado e saúde.

| Sally | , | 10 comentários em Autocuidado e saúde.

Desde que o mundo é mundo, quem é elite procura diferenciais para deixar bem claro que é elite e, com isso, conseguir uma aura de exclusividade, importância e status. Ao longo dos séculos, isso vem sendo feito de diferentes formas: ostentar bens, comportamentos e até privilégios faz com que as pessoas se diferenciem.

Não faz muito tempo, com o surgimento da publicidade institucionalizada, esse processo ficou mais organizado: a publicidade te diz o que você precisa ter para se destacar da massa. A publicidade dita qual é o conteúdo, bem ou comportamento do momento que te coloca como uma elite, que te dá status, que te diferencia “do resto”. Se tem uma coisa que o ser humano adora, é se sentir especial.

Durante muito tempo, esse status foi conseguido através da ostentação de bens: um carro caro, um perfume caro, um relógio caro… os exemplos são muitos. Os bens que traziam status se revezavam, fazendo com que as pessoas sempre desejassem um objeto de consumo novo para se sentirem especiais, bem-sucedidas, admiradas ou parte de uma elite. É o chamado mercado de luxo.

Poderia ser um texto criticando este mecanismo, mas seria uma obviedade, já foi dito por muita gente muitas vezes. E a proposta do Desfavor é falar sobre o que ninguém está falando, ou, ao menos, falar sobre o que se está falando com um novo ponto de vista. Então, a crítica ao mecanismo a gente deixa para o mainstream.

O que queremos falar hoje é sobre uma mudança nos objetos de consumo, que já vem se desenhando faz tempo, mas agora toma contornos nítidos o suficiente para ser apontada com clareza. O mercado de luxo vai passar a te vender outra coisa daqui para frente, e você talvez nem tenha reparado ainda.

Como dissemos, durante muito tempo reinaram os bens materiais, as marcas, a ostentação pela compra de um produto determinado. Porém, o tempo passou e países asiáticos foram capazes de reproduzir quase todos os bens e marcas que geravam status, barateando-os a ponto de que qualquer pessoa comum tenha acesso a eles também.

Se todo mundo tem, não gera status, exclusividade, não serve como diferencial. Durante bastante tempo as marcas tentaram correr atrás do prejuízo e fazer a manutenção de seus produtos como símbolo de status. Iniciativas como colocar selos holográficos nos produtos (para que fique mais difícil copiá-los) até fazer produtos com edição numerada, foram tentativas de manter a exclusividade tão necessária para que essa dinâmica continue funcionando.

E não funcionou. Dificilmente hoje uma marca consegue manter seu produto exclusivo, com poucos exemplares à venda, com pouca circulação. Muitos fatores contribuíram para isso, mas, o principal é que quase todas as marcas fabricam seus produtos em países asiáticos, onde a mão de obra é bem mais barata (vocês já devem imaginar o motivo) e, estas mesmas fábricas, pegam o modelo e fabricam também falsificações perfeitas.

O mercado de luxo ficou sem produtos de luxo, pois todos foram parar no camelô, na Temu, na Shopee. Surgiu um gap de consumo. Está cada vez mais difícil ostentar com produtos. Mas a publicidade, meus amigos, não dorme. Todo espaço livre acaba sendo preenchido de alguma forma. Assim como não há vácuo de poder, também não há vácuo de produto.

A confluência desses fatores e de outros menos interessantes, fez surgir um novo símbolo de status: a sua aparência. Sim, a aparência sempre foi importante, mas agora ela foi mercantilizada no seu mais alto patamar e com um modelo muito claro. Um corpo sarado, um sorriso perfeito, uma pele impecável… tudo isso se tornou o novo sinal de status de diferencia a elite do “resto”. E tudo isso está sendo abraçado pelo mercado de luxo. O novo luxo é investir na sua aparência, vendido como “autocuidado” ou “saúde”.

A gente consegue observar isso vendo como eram os milionários 20 anos atrás e hoje. Bezos, Zuckerberg e muitos outros estão aparecendo sarados, com sorriso perfeito e branco e com pele de porcelana. Muitas vezes usam sempre a mesma calça jeans e a mesma blusa preta, o que mostram que estão cagando para roupa, o luxo é o tempo e dinheiro que investem em cuidar da sua aparência. O novo status é ter uma aparência predeterminada, com corpo definido, aspecto jovem e zero imperfeições.

Percebam que a publicidade é sorrateira. Ela não te diz “Faça isso”, pois essa postura costuma causar mais resistência do que dar resultado. Ela vai inserindo, aos poucos, a ideia na sociedade.

Pessoas que são referência começam a apresentar esse layout. Mídias que são referência começam a, gradativamente, falas muito sobre o assunto. Quando você vê, o mundo à sua volta está praticamente todo pautado nisso e isso entrou na sua mente sem que você sequer se dê conta. Gradativamente, o mercado de luxo para de te empurrar bolsa, roupa e sapato e passa a te empurrar produtos como cremes, suplementos e outros voltados para sua aparência.

O mais cruel é que isso é revestido de “saúde” e “autocuidado”, o que faz com que as pessoas o abracem sem culpa e até se sintam culpadas por não abraçar. Qual é o seu problema? Você não gosta de você mesma? Você não quer se cuidar? Por isso não quer comprar um creme que custa 500 reais que vai te deixar linda? A publicidade é baixa, meus amigos. Esse subtexto está em muitos produtos.

Um corpo flácido, meio gordinho, com barriguinha, está virando sinal de desleixo, de pessoa que se odeia, de pessoa que se faz mal. Não dou cinco anos para as pessoas com esse corpo serem tratadas com o mesmo recriminar usado com fumantes. Se seu corpo não é definido, tonificado, sem barriga, você é desleixado. E não se ama. E não pertence a uma elite, é um pobre qualquer sem tempo para cuidar de si mesmo.

E não é apenas sobre ser atraente para parceiros. É sobre credibilidade, confiança. A coisa não é processada na esfera do racional, como vou falar aqui, mas a sensação que as pessoas passam a ter é “por qual motivo eu confiaria nessa pessoa que não consegue nem manter o próprio corpo em ordem”. Não é algo consciente, mas acontece. Veremos muita rejeição a quem não “se cuida” e, por se cuidar, queremos dizer manter esse padrão de aparência jovem, tonificado e perfeito. E esse patamar é muito difícil de alcançar.

Quem é leitor antigo sabe que eu sempre militei a favor de modelar o corpo, inclusive molhei o pé nesse mundo de competição de Wellness e fisiculturismo, então, tenho conhecimento de causa para falar: é um corpo que só é alcançável para quem tem muito tempo e dinheiro. E não necessariamente é sinônimo de saúde.

Veja bem, poucas pessoas são mais vaidosas do que eu neste mundo, então, por favor, não encarem este texto como uma crítica hippie de ter que amar seu corpo como ele é. Não é sobre isso. É sobre entender que um corpo sarado e definido, sobretudo quando você passou dos 30, não é fácil nem barato, justamente por isso virou ostentação.

É preciso gastar meio período do seu dia com ele, pois não bastam apenas exercícios. É preciso gastar uma pequena fortuna em alimentação, suplementos e procedimentos complementares. Quase ninguém tem tempo e dinheiro para isso. Se você treina como é necessário para ter esse corpo, não vai dar conta das obrigações do dia a dia de uma pessoa comum.

Mas todo mundo quer, pois hoje é isso o que a publicidade te vende como sendo status. O corpo do Bezos. O corpo do Zuckerberg. O que acontece? Surgem substitutos mágicos para muito tempo e esforço prometendo resultados similares sem precisar de tempo e esforço. Tudo golpe, é claro.

Mas quem não tem tempo e dinheiro para construir essa aparência, acaba caindo, no desespero por atender aos padrões de status da vez. Compra remédio mágico para emagrecer, suplemento mágico para derreter gordura, creme mágico para acabar com celulite e muito mais. Hoje a indústria que promete corpo e rosto dentro dos padrões é uma das que mais movimenta dinheiro no mundo. E vai piorar.

Novamente: nada contra que você busque corpo e rosto perfeitos, desde que seja uma escolha sua em um processo consciente e não uma lavagem cerebral indireta massificada pela mídia e pela publicidade. Este texto não é para te mandar fazer ou não fazer algo, é para que você observe o quanto dos seus desejos são genuinamente seus e o quanto é influência do entorno.

E, com pessoa que já participou desses campeonatos de “corpo malhado”, permitam dizer uma coisa: não é saúde, não é saudável. Isso não quer dizer que você não possa fazer. Eu fiz. Apenas saiba que não é saudável. Para que um corpo fique sequinho nos padrões de beleza, é preciso reduzir muito o padrão de gordura corporal, o que não é saudável, especialmente para as mulheres, que naturalmente tem mais gordura corporal. Faça se quiser, mas ciente de que não é saudável, muito pelo contrário.

E não digo isso para te desencorajar, é sem julgamentos. Todos nós fazemos escolhas pouco saudável em algum momento: tem que fume, tem quem beba, tem que coma porcaria, tem quem durma pouco, tem quem se mantenha sedentário e muito mais. Não quero cagar regra sobre saúde. Quero apenas te dizer que se você treina regularmente e não consegue o corpo que quer não é sua culpa, você não está errando, você não é um fraco sem força de vontade ou tem genética ruim. Você é apenas humano. Para conseguir esse corpo que é padrão atualmente, só fazendo coisas pouco saudáveis e dedicando ao menos seis horas do seu dia a isso.

Um treino que vai te deixar com esse corpo vai te incapacitar para um dia totalmente produtivo. Você vai acabar o treino nauseado, passando mal e vai se sentir uma bosta o resto do dia. Você quer? Beleza, eu já quis também, quando não tinha tantas responsabilidades como tenho hoje. Você quer? Vai fundo. Não é um texto para te desencorajar, é um texto para contar a real, para te dar um botão “estou ciente e quero continuar”.

O mesmo vale para o rosto. O padrão que se vende é inalcançável, a menos que a pessoa invista uma pequena fortuna mensalmente. Pele humana tem imperfeições, tem manchas, tem rugas, tem poros. E quanto mais passa o tempo, mais tem. É possível atenuar até algum ponto, mas, de certo ponto em diante, só causando danos à saúde e deformidades. E já está acontecendo.

Por isso eu digo sem medo que a questão física é o de menos. O mais grave virá na saúde mental. Como foi dito, é um ideal de beleza inalcançável, então, temos que nos perguntar o que vai acontecer com quem não vai conseguir alcançar este ideal, que será a maioria.

Quem tem dinheiro para manter os dentes totalmente brancos e alinhados, seja os próprios dentes, seja com lentes de contato dentais? Quem tem dinheiro para inúmeros procedimentos no rosto para tentar manter a pele sem manchas, sem poros e sem rugas? Quem tem dinheiro para mexer nos lábios, nos olhos e em qualquer parte do rosto até ficar com aparência de filtro de rede social? Poucos. E mesmo quem tem, não vai conseguir disfarçar os sinais do tempo para sempre.

Quem não tem vai procurar alternativas mais baratas e elas nem sempre são boas, honestas ou seguras. Normalmente, o que mais chama a atenção em matéria de anúncios no Brasil são opções “milagrosas”, atalhos que permitem chegar aonde a pessoa quer de forma rápida. A pessoa fica tão feliz, tão inebriada, tão deslumbrada com a possibilidade que acredita, por mais absurda que pareça.

Aquele corpo ou aquele rosto que estão marcados no seu inconsciente como sinônimo de sucesso, como um diferencial, como a resposta para todos os seus problemas, agora está acessível para ela! Sim, tem muita gente pensando que só vai ser feliz quando tiver o rosto X ou o corpo Y. Essa pessoa quer acreditar, ela não vai ler os sinais. E será enganada, sacaneada, roubada e até mutilada.

O que acontece com a saúde mental de quem não consegue fazer nenhum procedimento ou, mesmo fazendo, não alcança os resultados mágicos esperados? Frustração, baixa autoestima e coisas piores. A pessoa foi excluída, taxada de desleixada, considerada feia. Tem que apenas observar um mercado de luxo de autocuidado do qual ela não pode participar e se sentir muito mal por isso.

E o que acontece com quem tem dinheiro, mas, pelo decurso do tempo não consegue mais atender a esses padrões, não importa o quanto gaste? Fica deformado, nessa busca impossível por estética e juventude. Olhem para o rosto da esposa do Bezos, provavelmente uma das mulheres mais ricas do mundo. O rosto dela grita falta de saúde mental.

Mais uma vez, não estamos tentando ser radicais aqui. Vivemos em sociedade e temos que nos adequar de alguma forma. Se você trabalha com público e quiser ser bem-sucedido, precisa observar as imposições atuais e se adaptar dentro do que você considera razoável. Porém, de forma consciente, por escolha, não por desespero ou lavagem cerebral.

E entenda que, daqui para frente, por algum tempo, o mercado de luxo e as imposições estéticas vão giram em torno disso: da estética travestida de autocuidado e saúde. Não é nem um, nem outro. É possível se cuidar sem gastar uma fortuna. É possível ter saúde sem gastar uma fortuna. Durante séculos pessoas viveram bem sem nada disso.

Não atender a esses padrões ou não ter essas prioridades não é ser desleixado. Sim, quanto mais você se alinhar com isso, com essa filosofia de wellness, de “se cuidar”, mais bem-sucedido você parecerá aos olhos dos outros. Mas não necessariamente será bem-sucedido por isso. Ou saudável.

Palavra de quem circulou por anos nesse projeto: dificilmente uma pessoa comum precisa de suplementos, vitaminas ou qualquer outra coisa que não seja uma alimentação balanceada. A menos que você seja um fisiculturista que treina muitas horas por dia, é dinheiro jogado fora. A publicidade vai te convencer que você precisa e que isso vai fazer milagres pelo seu corpo. Não vai. Quer tomar? Tome. Mas observe se realmente está funcionando ou é apenas um placebo caro. Spoiler: é um placebo caro para você sentir que tem status ou que está se cuidando.

Alimento orgânico. Alimento sem glúten. Alimento colhido por freiras virgens nos alpes nevados. Tudo publicidade. Se cuidar não é pagar caro por um alimento etiquetado com algum modismo, isso é ser otário mesmo. Suplemento de colágeno, complexo vitamínico, suplemento para pele e cabelo… Não confundam se cuidar com atender a propaganda. Coma alimentos que saíram da natureza para o seu prato, sem muita intervenção humana e isso basta.

Daqui para frente a tendência é piorar. É o novo mercado de luxo: ter tempo e dinheiro para “se cuidar”. A publicidade e a mídia vão te empurrar tudo quanto é produto voltado a “cuidar” do corpo e do rosto, vendendo junto o conceito de cuidado, bem-estar e saúde.

Não é. Dá para ser saudável sem isso. Quer consumir? Maravilha, consuma. Mas esteja ciente de que é perfeitamente possível se cuidar e ter saúde sem essa enxurrada de produtos.

Seu rosto precisa de limpeza, hidratação e proteção solar. Seu cabelo precisa de limpeza e hidratação. Seu corpo precisa de alimentos naturais. Não é tão difícil. Mas vão tentar te convencer de que você precisa de mais, se não, não está cuidando bem de você mesmo. Vão te convencer que se você fizer mais pertence a uma elite. Não pertence.

Vão criar produtos que não fazem sentido, coisas como perfume para cabelo ou loção para cílios. Vão criar procedimentos que não fazem sentido, como harmonização escrotal, colocando botox para eliminar as rugas. Dia após dia você será bombardeado com estímulos que relacionam tudo isso a privilégio, a pertencer a uma elite, ser bem-sucedido. Não é.

Ter não é ser. Ter um corpo X ou um rosto Y é apenas isso: ter um corpo X ou um rosto Y. O que você é, o seu valor, independe disso. Nenhum produto externo vai te ajudar se você não estiver bem internamente. Nenhum creme, pílula ou procedimento é a resposta para o sucesso ou para se sentir bem. Não está com o corpo e rosto que queria? Vá até onde dá sem comprometer sua saúde e sua vida, e aprenda a fazer as pazes com o que você tem.

É um modismo, vai passar, como todos os outros passaram. Em algum momento a indústria vai conseguir oferecer tudo isso a preços baixos, os reles mortais vão poder fazer também e as elites vão perder o interesse, aí o mercado de luxo se volta para outro nicho. Mas, enquanto não passa, esteja ciente do mecanismo e não se deixe sugar.

Quanto você quiser consumir alguma coisa (produto ou serviço) ligará a autocuidado e saúde, sempre se pergunte de onde vem a motivação para os esse desejo e para como você se vê. Por qual motivo você acha que precisa disso? O que te move a querer consumir isso? É realmente um desejo real seu ou é algo que surgiu influenciado por um entorno?

Sejam vigilantes com vocês mesmos e não se deixem sugar pela publicidade que faz lavagem cerebral. Conselho de quem trabalha nela.

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