Noview: The Batman

Cansei de review, agora vou fazer noview. Foi lançado mais um filme do Batman, e apesar de algumas boas recomendações, eu simplesmente não estou com vontade de ver. Mesmo achando que pode ser muito bom, não quero ver. Seria o texto mais inútil de todos os tempos se eu não tentasse explicar o motivo… talvez ainda seja. Boa sorte para quem clicar em continuar lendo.

Eu não tenho nenhum motivo sólido para achar que vai ser um filme ruim. Não tenho nem bronca do ator que escolheram, que ficou famoso fazendo um vampiro que brilha… eu nunca vi os filmes do Crepúsculo e minha última memória dele é no excelente O Farol. O diretor fez vários filmes que eu gostei muito como os novos Planeta dos Macacos, então também não é por isso. Nem mesmo a DC está em baixa comigo: Pacificador foi de longe a melhor série de quadrinhos que eu já vi.

Mas quando eu penso em mais um filme do Batman, eu fico de saco cheio só de pensar. Eu preciso ver a história sendo contada mais uma vez? Eu preciso ver como vão fazer o uniforme e o carro dele de novo? Ou como vai ser a cara do Coringa dessa vez? Não, estou de boa. Este texto poderia ser uma crítica sobre a falta de imaginação da indústria do entretenimento moderna, como ficam repetindo as mesmas coisas sem parar. Poderia, mas já se fala tanto sobre isso que nem faz mais diferença.

O filme do Batman já faturou centenas de milhões e garantiu o retorno financeiro. Enquanto tiver gente disposta a pagar para ver, vai ter gente disposta a fazer as mesmas coisas, sem parar. Não adianta criticar o tédio da indústria cultural moderna se essa indústria continua sendo economicamente viável. E, nunca se esqueçam: todo dia milhares de pessoas fazem 12 anos de idade e estão próximas de ver a coisa mais bacana da vida delas num filme, série ou mesmo canal de YouTube. Entretenimento se repete porque todo dia nasce gente que nunca viu as mesmas coisas que você já está de saco cheio de ver.

Então, não, eu não quero focar nisso. Eu quero falar sobre a dúvida que pairou na minha cabeça sobre ver ou não o filme novo do Batman. Uma parte da minha mente dizia que era algo que eu provavelmente ia gostar, mas outra me disse que isso não é tão importante assim. Estou escutando essa segunda parte agora, e isso abriu minha mente para outros temas da vida moderna.

Todo dia a gente recebe indicações de mil coisas diferentes para ver, ouvir, ler, experimentar… algumas são uma porcaria, mas tem muita gente produzindo coisa bacana nesse mundo. Coisas que a gente com certeza gostaria se dedicasse o tempo necessário. Eu não sei se você já parou para pensar nisso, mas eu só consegui trazer à tona da mente recentemente: a gente nunca vai conseguir ter, consumir ou fazer todas as coisas que gostaria.

E é muito mais do que não ter dinheiro ou tempo pra fazer, é a quantidade absurda de coisas que existem nesse mundo. Um herdeiro bilionário com o dia todo livre não consegue fazer tudo, imagine só nós em condições mais normais de renda e ocupação. Mas não é que algo acaba nos dizendo que estamos deixando de aproveitar as oportunidades? Eu não deveria ter sequer pensado se valia a pena ou não ver o filme do Batman: se tivesse vontade, veria, se não tivesse, não veria. Não tem nada na minha vida que dependa disso.

Mas essa pergunta, em suas mais diversas variações, acaba encontrando o seu caminho de volta para o meu estado mental: o que eu deveria estar fazendo agora? O que eu estou perdendo? Será que tem alguma coisa que eu deveria estar fazendo? Talvez seja minha ansiedade patológica falando, mas não faz sentido que só eu e outras pessoas que sofrem desse problema estejam lidando com isso.

Afinal, se não fosse extremamente comum que o ser humano tivesse esse “buraco fundamental” para consumir (sim, é a parte dois do texto de quarta, te peguei!), boa parte da economia sequer existiria. Se a necessidade fosse puramente por entretenimento, não teríamos saído de um modelo de meia dúzia de canais de TV para milhões de horas de conteúdo sendo publicadas por semana no mundo. Aliás, bota uma pessoa pra rebolar no meio de uma multidão e boa parte da humanidade já está suficientemente entretida. Somos fáceis assim na profundidade do conteúdo.

Mas não somos na variedade dele. O problema de uma pessoa rebolando no meio de uma multidão é que só ela está recebendo atenção. Tem muito mais gente que queria ser esse foco de atenção, tem gente que quer que a pessoa rebole diferente, ou ao som de outra música. O ser humano pode até ser previsível no que gosta ou não gosta, mas se a revolução da comunicação pós-internet nos mostrou algo, é que todos nós podemos nos revezar no papel de multidão e pessoa rebolando.

E o mundo nunca rebolou tanto. Eu deveria sair dessa analogia, mas ela está engraçada, então… lidem com isso. Em cada residência desse mundo, há o potencial de alguém chacoalhar o traseiro para quem quiser ver. As redes sociais viraram (quase que literalmente) um bufê infinito de bundas em movimento.

“Somir, esse texto começou com o filme do Batman, você está tendo um AVC?”

Calma, tudo se conecta: eu precisei pensar um pouco para aceitar que não tinha problema nenhum comigo por não estar com vontade de ver o filme do Batman. Eu tive que colocar em termos claros na mente que mesmo que seja um filme muito bom, não faz o menor sentido ficar preocupado em estar perdendo. Já estou perdendo milhões de horas de conteúdo que potencialmente me interessariam, todos os dias. Deve ter uma série finlandesa que eu adoraria, talvez uma banda de metal da Mongólia faça músicas que eu acharia o máximo. Mas e daí? Sempre vai ter algo faltando na minha coleção de conteúdos interessantes.

A ideia de ir buscar todo o conteúdo que você gosta fazia muito sentido durante boa parte da nossa história. Especialmente do meio para o final do século passado, com a globalização nos dando acesso a coisas que sequer imaginávamos existir. Mas estamos em 2020. Uma das únicas barreiras que ainda existe é a da língua: e olha que você resolve quase tudo se souber inglês. O conteúdo de todos os povos e nações dá um jeito de chegar até você, e cada vez mais pessoas os produzem.

Vou contar uma das minhas maluquices de conteúdo: existe um jogo chamado Warhammer 40K, um treco que se joga com miniaturas num tabuleiro. Eu nunca joguei e não tenho a mínima vontade de jogar, mas se você pegar meu histórico do YouTube, vai achar que eu jogo. Tem um canal que conta a história do universo onde o jogo acontece (que é gigantesca, escrita há décadas) e eu adoro. Eu consigo passar quase duas horas escutando alguém falar sobre um mundo de fantasia só com algumas imagens passando na tela e acho entretenimento.

Mas um filme que custou centenas de milhões de dólares e conta a história de uma das minhas personagens favoritas já não me faz mais diferença. Tudo o que eu escrevo aqui não é uma análise de qualidade de um conteúdo ou outro, é apenas um exemplo prático de como o mundo moderno permite que façamos escolhas totalmente diferentes nesse tipo de consumo.

E talvez pela lentidão na qual as mudanças tecnológicas reverberam no comportamento humano, ainda exista a ilusão em muitos de nós que é possível entrar em contato com todo tipo de conteúdo que nos interessa. Talvez nos anos 80 você conseguisse fazer uma coleção de vídeos de bandas que gostava, mas na segunda década do século XXI? Tem tanta gente produzindo e tanta facilidade para publicar que é certeza que você vai deixar a maioria dos conteúdos que gostaria passarem por você.

A Sally escreveu sobre FOMO em 2013, e apesar do termo ter saído da moda, ainda é extremamente descritivo sobre a forma doentia como muitos de nós lidam com o mundo atual. O FOMO é o medo de perder novidades e notícias se você estiver desconectado da internet ou distraído com outras coisas. É uma das fontes mais cruéis de ansiedade, e uma boa parte dessa síndrome está conectada com o desejo irracional de estar ligado em tudo o que acharia interessante.

Oras, é impossível. Tudo bem não consumir o que você provavelmente gostaria, não cabe tudo no seu tempo e no seu bolso. Não cabe nem uma fração disso, pra falar a verdade. Você vai perder quase tudo o que acontece no mundo, você vai estar de fora de quase todas as modas e manias, você vai ficar sem entender piadas internas, você não vai ter visto a coisa mais bacana do mundo segundo a opinião de outra pessoa.

E você não vai querer ver um filme por motivos de sei lá. Talvez amanhã eu mude de ideia, mas que não seja por medo de estar perdendo. Como dizia a Dilma: todos vamos perder. E está tudo bem.

Foda-se o Batman.

Para dizer que hoje foi mais louco que o normal, para me dizer que eu tenho que ver o filme (não tenho), ou mesmo para dizer que gostou do noview e quer mais: somir@desfavor.com

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Comments (8)

  • Apesar do hype e de gostar do personagem Batman desde garoto, eu não senti a menor vontade de assistir a esse filme. Desta vez, simplesmente não me interessou. Já tem novidades demais neste mundo disputando a minha atenção mas ultimamente quase nada tem me atraído para valer em matéria de entretenimento. E eu também nunca fui muito ligado ao que está na moda, porque sempre me faltaram tempo, dinheiro e paciência para ficar por dentro de tudo. Por outro lado, eu também nunca tive a sensação de que estaria perdendo algo “importante”.

  • O texto e o tema são muito bons. Uma impressão que eu tenho há algum tempo é que uma das habilidades mais importantes a se aprender nos dias de hoje é a fazer escolhas bem fundamentadas e não sofrer com isso. Tento ensinar meus filhos e meus alunos a fazer isso. A paternidade e a docência ganharam um forte componente de curadoria de conteúdo nos dias de hoje.

    Sobre a vida, essa condição hereditária que sempre resulta em morte, uma das estratégias é ser minimalista. Se você sofre com escolhas, uma saída é fazer poucas. Escolher poucos livros, poucos tipos de música.

    No fundo, o que conta são as memórias. Eu tenho pensado muito a respeito disso e percebo que o maior gasto que a gente faz com entretenimento não é financeiro, é em tempo mesmo.

    Obrigado pela reflexão. Difícil pensar num conteúdo para um começo de domingo melhor.

  • Cavaleiro das Trevas pra mim já está de bom tamanho. E imagino o ódio do convencido Jared Leto que conseguiu ser menos memorável na franquia Batman do que o cara que fez um vampiro purpurinado.

    Agora sobre saturação de conteúdos, já tinha reparado isso em 2019 quando terminei um dos meus livrecos e coloquei no Wattpad em concorrência com milhares de outros.

    Quem leu uma amostra minha disse que não é ruim, no entanto… Ela não tem nada que se destaque nesse mar de conteúdo, e mesmo que tivesse… É humanamente impossível devotar tanta atenção assim mesmo ao que queremos ver, assim como para maioria dos escritores é impossível escrever sobre todas as ideias que têm.

    Mesmo que você invista (e pesado) em divulgação e marketing, a concorrência continua imensa.

  • Se essa sensação de que você nunca vai ver todas as peças de entretenimento que gostaria e que seriam perfeitas pra você já te deixa meio ansioso, imagina quando se aplica isso a pessoas.

    Imagina, a pessoa que seria perfeita pra você, e você pra ela, mora no Acre ou então passou por você nos corredores do supermercado.

  • “Entretenimento se repete porque todo dia nasce gente que nunca viu as mesmas coisas que você já está de saco cheio de ver.”

    Você escreveu um texto inteiro só pra se chamar e nos chamar de velhos?

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