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Não acabou.

Não acabou.

| Desfavor | | 30 comentários em Não acabou.

A gente achou melhor nem focar em uma notícia, mas em uma percepção: o Brasil está começando a achar que a pandemia acabou. Desfavor da Semana.

SALLY

Em qualquer situação de crise, cada indivíduo adota uma postura diante da tragédia. Alguns conseguem ter a racionalidade de avaliar e decidir a postura que querem adotar, outros simplesmente são levados ou engolidos pela coletividade ou por sentimentos incontroláveis e entram no medo, na negação, na histeria e acabam empurrados para uma postura que nem ao menos tiveram condições de escolher.

Nós escolhemos, desde o dia 1 dessa pandemia, que seremos os chatos. Aqueles que repetem à exaustão que tem que se cuidar, que o vírus é real, que tratamento preventivo não funciona, que cloroquina, dióxido de cloro e ivermectina são fraudes, que o número de casos e de mortes no Brasil está muito subnotificado e é muito maior do que vocês imaginam, que está morrendo gente por falta de leito, de atendimento e de oxigênio. Nós somos aqueles que muitos escolhem chamar de “emissários do apocalipse” (ou qualquer outro termo pejorativo), vistos como pessimistas.

Por isso hoje, pela primeira vez em mais de uma década, o Desfavor da Semana não se escora em nenhuma notícia específica. Ele é genérico. Ele é uma ferramenta para, mais uma vez, agirmos como “chatos” e “pessimistas”, passando aqui para dizer que a pandemia não acabou. Não só não acabou, como pode estar entrando no seu pior momento, por causa das variantes preocupantes, em especial a de Manaus. E o desfavor da semana é que todo o seu entorno provavelmente vai se portar como se tivesse acabado, tornando ainda mais difícil a tarefa de se cuidar.

O brasileiro não está agindo de acordo com o que está acontecendo. Aulas estão voltando, estádios estão recebendo público para ver futebol, pessoas estão cada vez mais afrouxando os cuidados, quando a situação pede o contrário. Em países europeus os cuidados estão sendo redobrados: o distanciamento está sendo aumentado, há lockdown em muitos países, a recomendação é não usar mais máscaras comuns e sim N95, entre outras medidas.

É importante que vocês entendam que hoje o Brasil é uma bolha que age na contramão do mundo. O que se considera um brasileiro que “se cuida” seria, em outros países, um irresponsável descuidado. Máscara bem usada + álcool gel não é grandes coisa. Hoje, é preciso muito mais. Mas essa bolha de flexibilização contamina, faz parecer que o mundo todo está agindo assim, faz com que o corpo desligue o alerta de perigo.

Isso cria uma falsa sensação de normalidade que é extremamente perigosa, não apenas para cabeças-oca e pessoas sem instrução. Para todos. Está no nosso DNA pautar boa parte da nossa conduta por um espelhamento com o bando. Então, para se cuidar em um lugar como o Brasil, para começo de conversa, você tem que lutar contra seus instintos, que te levarão a crer que a coisa não está tão ruim assim, que é exagero da mídia, que não parece tão perigoso.

Não pode ser perigoso quando as praias estão lotadas, quando as pessoas estão todas ótimas postando foto do rolê em rede social, quando se concorda que pode haver volta às aulas, quando o Prefeito que está com câncer arrisca a ir a um estádio de futebol para ver um jogo. Não faz sentido que esteja acontecendo algo perigoso nesse entorno. Mas está.

É perigoso. Está mais perigoso do que nunca. E, apesar de um ano de esforços e sacrifícios, apesar de estar todo mundo muito cansado e de saco cheio, não é hora para abaixar a guarda. Não é o que todo mundo queria ler, não é o que nós gostaríamos de estar escrevendo, mas, vocês sabem, as coisas são como elas são, não como nós gostaríamos que elas fossem.

Poucas pessoas vão chegar para você e dizer que, apesar de todos os sacrifícios que você fez, tem que continuar se cuidando mais do que nunca, apesar de todos os exemplos errados que te cercam. É chato dizer isso. É má notícia. É ser o emissário da desgraça. Então, como poucas pessoas vão querer carregar essa pecha, vão querer ter sua imagem associada a uma restrição, a algo desagradável, a gente mata no peito e faz esse texto.

A pandemia não acabou. A pandemia está piorando. As vacinas, por melhores que sejam, não serão suficientes para vacinar todos os brasileiros este ano, e quem está vacinado pode não morrer de covid, mas transmite. Então, se você ou alguém da sua casa não estão vacinados, ainda estão correndo risco de vida. Vacina não vai erradicar o coronavírus. Pode demorar quase dois anos para que todos os brasileiros estejam vacinados e, provavelmente, teremos que nos revacinar mais vezes.

Então, eu sei que é pedir muito, mas ainda é hora de esforços, de redobrar os cuidados, de fazer o possível e o impossível para não sair de casa, de não mandar seus filhos para escola, de se colocar em lockdown voluntariamente. O mundo passou dos cem milhões de casos de covid e de dois milhões de mortes. No Brasil estão morrendo quase 1500 pessoas por dia, em números oficiais (na verdade, morrem muitos mais). O risco de uma pessoa morrer caso pegue covid no Brasil é quase quatro vezes maior do que no resto do mundo.

Vocês estão no olho do furacão. Em um país onde a prevenção é precária e, se contraída a doença, correm o risco de ficar sem remédios, sem anestésico, sem leito e sem oxigênio. Nesse exato momento tem pessoas morrendo por falta de atendimento, e não apenas em Manaus. Eu sei que todo o resto do seu entorno aponta para uma normalidade e falsa sensação de segurança, mas vocês têm que lutar contra isso: não está seguro, não está normal. Os cuidados precisam ser redobrados daqui em diante.

“Não adianta, você não vai me convencer”. Nem é minha intenção. Este texto não é panfletagem nem doutrinação. É uma ferramenta. Quem acha que serve, pega e usa. Quem acha que não serve ou não precisa dela, deixa guardada e ignora. Na real, eu só tenho interesse em falar com quem tem interesse em usar este texto como uma ferramenta, para o resto eu não faço a menor questão de perder meu tempo escrevendo de graça todo santo dia.

Antes de acontecer uma tsunami o mar recua muitos metros. É um espetáculo lindo, pois você pode ver partes que antes eram cobertas pelo mar, com conchas e outras coisas que até então estavam escondidas. É o que a maioria dos turistas na Indonésia fizeram quando o mar recuou quase 20 metros: ficara maravilhados contemplando e catando conchinhas. Uns poucos começaram a gritar que tinha que sair dali e ir para as montanhas. Obviamente foram ignorados e até desprezados. Foram os que sobreviveram.

O mar está recuando. A maior parte das pessoas não entende bem o que isso significa. Nós estamos te dizendo que é sinal que vem uma tsunami e que a única forma de se proteger é não sair de casa. O recado está dado, escuta quem quer. Não é nossa intenção assustar ou colocar qualquer pessoa no medo, nossa intenção é dizer que tem sim como se proteger e que é burrice se arriscar nessa altura, quando já tem vacina no mercado.

A mente cria mil desculpas e mecanismos de autoconvencimento para nos levar a fazer o que é mais agradável. O ser humano não gosta de fazer sacrifício. Sua mente vai tentar relativizar, minimizar ou inventar desculpas estilo “mas é pela minha saúde mental”. Não caia. Você controla sua mente, e não ela a você. Não se deixe sugar pela falsa sensação de normalidade ou pela relativização das medidas de segurança.

A única forma efetiva de se proteger agora (e de proteger as pessoas que você ama) é não sair de casa. Eu queria que fosse diferente, mas a realidade não se importa com o nosso querer. É hora de ter mais cuidado do que nunca. Faça esse esforço, pois a outra opção é muito pior.

Para agradecer por estragar e deprimir seu final de semana, para dizer que vai reler este texto quando estiver começando a pensar em flexibilizar os cuidados ou ainda para dizer que o vírus está indo embora: sally@desfavor.com

SOMIR

As vacinas começando a ser aplicadas foram uma ótima notícia, talvez boa até demais. Estamos vivendo um fluxo de anticorpos contra a preocupação com a pandemia se espalhando pelo país. Com certeza é melhor ter uma luz no fim do túnel, mas é muito importante lembrar que o túnel não vai terminar tão cedo. Não para a maioria de nós.

Tratar uma doença altamente contagiosa solta pelo mundo é uma tarefa gigantesca. Estamos falando de umas 16 bilhões de doses das vacinas (até o momento, todas usam 2 doses) distribuídas ao redor do mundo. As linhas de produção não vão dar conta de tudo isso em poucos meses, e muito menos a rede de distribuição. Até mesmo países que em tese tem a capacidade de produzir e entregar essas vacinas como o Brasil (acredite ou não) lidam com diversos outros problemas paralelos.

2021 vai ser um ano de pandemia. Possivelmente com uma redução lenta e constante de acordo com a vacinação, mas um ano de pandemia mesmo assim. O estado mental necessário para lidar com essa situação não permite acreditar que está tudo acabando e que logo logo vamos voltar ao normal.

O efeito “sapo na panela” funciona ao contrário também. Quando as coisas pioram devagar, é possível que você nem perceba e continua com a mentalidade original; quando as coisas melhoram devagar, é comum que você não consiga registrar da mesma forma. Eu digo isso porque apesar dos pesares, quanto mais gente vai sendo vacinada, melhores as coisas ficam. Não ficam melhores ao ponto de você poder voltar a fazer o que fazia em 2019, mas é algo que acumula.

É um ano para treinarmos nossa capacidade de lidar com transições lentas, ao invés de esperar que exista um botão de “desligar pandemia” pronto para ser apertado a qualquer momento. A mente humana não é feita para entender estados intermediários, por isso sempre queremos saber se sim ou se não. O que está entre os dois é incerto e gera angústia.

A pandemia acabou? 90% não, 10% sim. É claro que essa porcentagem é impossível, mas é bom ir se acostumando com essa falha na lógica da percepção humana. Há poucos meses atrás, era 100% não. E sinto dizer que não vai virar 100% sim tão cedo, talvez nunca vire, considerando negadores e os lugares mais pobres e abandonados desse mundo, mas é bem razoável imaginar que vamos ver essa porcentagem se inverter e ter de volta várias das coisas que abdicamos até aqui.

Igual ao passado não vai ser. Toda pandemia gera mudanças permanentes na humanidade, mas tecnologias e cultura também. Eu lembro de um mundo sem internet. Eu lembro de um mundo onde médico fumava no consultório com o paciente. Eu lembro de mulher pelada em comercial durante o Jornal Nacional. E quem é mais velho do que eu lembra de muito mais coisas que simplesmente não existem mais. O mundo muda. Bola pra frente.

É por isso que achamos importante escrever um texto sobre o clima que vai se instalando no Brasil com o prospecto de uma vacinação contra o Covid. Tem muita gente achando que o mundo não mudou em 2020 e que é hora de voltar ao normal de antes. Não só a doença não se importa com as nossas expectativas, matando gente em números recordes (não só no Brasil), como as variantes estão colocando uma complexidade maior no processo. Tomara que não, mas essa pode muito bem não ser a última vacina contra o coronavírus que vamos tomar, quando pudermos tomar.

A humanidade pós-Covid não é a mesma. Não tem um mundo para voltar, tem um mundo novo para construir. Claro, muito parecido com o antigo, mas não exatamente igual. Enfrentar a doença é parte da nossa rotina diária, e quem estiver negando essa necessidade não só está colocando em risco as pessoas ao seu redor como está atirando no próprio pé: cada vez que teima em trazer o mundo do passado de volta, mais cria dificuldades para poder viver no mundo do presente.

Se não tratarmos do mundo de 2021 com a seriedade que ele exige, o mundo de 2022 vai continuar complicado. Cidadão acha que porque pegou uma vez acabou, mas não acabou: existem provas de reinfecção, e a cada vez que uma pessoa deixa o vírus se multiplicar, novas variações podem aparecer. É brincar de roleta russa com a natureza. E a natureza vai apertar o gatilho todas as vezes que puder.

Quem briga para abrir um bar em 2021 está pedindo para passar por tudo de novo em 2022. Quem está “aglomerando com segurança” está pedindo por mais e mais dificuldades com o passar dos meses. Talvez seja impossível convencer quem está em negação, afinal, é um sentimento que costuma vir do medo, mas sabemos para quem escrevemos: gente que se dá ao trabalho de ler textos longos (para a média da internet) e se informar quando pode.

Por isso, é importante que pelos menos nós saibamos que esse clima de “acabou” que vai se formando mesmo com as notícias cada vez mais terríveis vem de quem estava negando no começo, dizendo que não era nada demais no primeiro pico de contágio e mortes, e que ficou falando mal da vacina até aqui. Esse povo muda o foco, mas não a base: não conseguiram aceitar que surgiu algo que mudou o mundo que conheciam e estão lutando até não poder mais contra isso.

Não acabou, estamos no meio desse processo. Tome sua vacina, a segunda dose, espere um tempo para gerar imunidade e só aí comece a relaxar, mas sem esquecer que você não está voltando para 2019, está num mundo novo. E nesse mundo novo, tem um vírus rodando por aí que pode mudar a qualquer momento e te colocar em posição de defesa de novo.

Para dizer que estava precisando de uma dose de desesperança, para dizer que lembra do começo da AIDS e isso é fichinha, ou mesmo para dizer que nem liga para o mundo que ficou para trás: somir@desfavor.com


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