Skip to main content

Flertando com o desastre: Escrava do lar.

| Sally | | 59 comentários em Flertando com o desastre: Escrava do lar.

Lerê, lerê...Ter uma empregada doméstica naqueles moldes tradicionais, vivendo na sua casa com você, é incorreto, desumano e escroto.

Comecei rasgando de propósito. Agora que já tenho a sua atenção (e sua raiva e revolta), vamos desenvolver o tema.

Uma empregada doméstica que resida na sua casa, em um quartinho micro nos fundos que muitas vezes nem janela tem e que te atenda 24h por dia não difere muito de escravidão. Só porque se paga um salário (que não é grandes coisa) e se aboliram as correntes, não quer dizer que seja correto e ético manter outro ser humano nessas condições. Para mim só tem um nome uma porra dessas: barbárie.

Uma pessoa cuja vida e rotina é cuidar dos bens de outras pessoas, quando ela própria não tem quase nada, não pode deixar de sentir ressentimento. Coloque-se no lugar dela. Você em uma casa onde as pessoas vivem com conforto tem que lavar, passar, cozinhar e arrumar para uma famílias, quando a SUA família está sozinha e não tem tanta mordomia. Como pedir que uma pessoa nessas condições não sinta inveja, ressentimento, revolta e outros sentimentos negativos?

“Mas a Fulana que trabalha aqui em casa já é da família, a gente trata ela como se fosse da família”. Vai desculpar mas eu duvido muito. Ela senta na mesa com toda a família para comer ou come na cozinha? Ocupa um quarto no mesmo setor da casa ou dorme em um micro-quarto na cozinha? Se bobear o cachorro da casa é mais bem tratado e dorme no seu quarto com ar condicionado enquanto ela tem que dormir em um quartinho dos fundos passando calor com um ventilador. Tratar com humanidade e educação é OBRIGAÇÃO, e não bondade de quem a trata como se fosse da família. Ela é mesmo da família? Ok, então quando a sua avó vai na sua casa, ela fica nas mesmas condições que a empregada?

Reparem que não falo da diarista que vai, faz seu serviço e vai embora viver a sua vida. Isto é uma prestação de serviços como qualquer outra, com uma jornada de trabalho com hora para começar e acabar que te permite ter uma vida pessoal em paralelo. Falo daquelas pessoas que ficam escravizadas em um cantinho da casa porque esta é a única forma que tem de ganhar dinheiro. Pessoas que passam uma semana longe de seus filhos para poder sustentá-los. Você acha bonito deixar uma pessoa longe dos filhos a maior parte de sua semana em nome do seu conforto? Eu acho abominante.

Sem contar o estranhamento que me causa que as pessoas se sujeitem a coabitar com alguém que bem ou mal é estranho. Uma pessoa com cultura costumes completamente diferentes esbarrando com você na sua casa. Só eu acho isso desconfortável? Pessoas pensam mil vezes antes de ir morar com o namorado ou com uma amiga com a qual vão dividir apartamento porque não sabem se vão se adaptar, mas não tem qualquer problema em enfiar uma pessoa estranha para trabalhar nos serviços domésticos. Talvez porque a empregada fique em condição de subordinação hierárquica trancada na senz… digo, na cozinha e te deva obediência. Fico constrangida só de me imaginar fazendo isso com alguém.

Talvez isso me choque porque no meu país de origem simplesmente não existe nada do tipo. Ninguém aceitaria ficar morando na casa de outra pessoa full time e atendendo-a full time. Talvez uma governanta em uma mansão de alguém muito rico. Mas jamais em um buraquinho na área de serviço de uma família classe média. Ter que servir café da manhã na hora em que o patrão acorda, não importa se são seis da manhã ou onze da manhã. Gente… escravidão foi abolida, ok?

Morro de vergonha desse tipo de coisa. Eu faço meu café da manhã na hora em que acordo e se estou na casa de alguém onde há uma empregada, faço do mesmo jeito, porque fico profundamente constrangida de ter outro ser humano à minha disposição me servindo. Sem contar que me bate um medo tremendo de me acostumar com essa mordomia (a gente se acostuma rápido ao que é cômodo) e depois virar um esforço para mim fazer coisas que julgo serem minhas obrigações pessoais e intransferíveis.

E gente que bota a empregada para lavar suas calcinhas e/ou cuecas? Não tem vergonha não? E gente que termina de comer, levanta e vai assistir televisão e nem tira o prato da mesa e o leva até a pia? Uma coisa é ter alguém que te AJUDE, outra é ter um escravo que faça tudo. E gente que a qualquer hora do dia ou da noite pede para a empregada cozinhar porque está com fome? Não consigo ver esse tipo de coisa, fico muito revoltada.

O mais legal é o auto-perdão com o qual as pessoas encaram esse tipo de exploração. Sim, a palavra é essa: EXPLORAÇÃO. Não é porque você está pagando que passa a ser justo que uma pessoa tenha que ficar morando na sua casa a semana toda te atendendo. Pode ter certeza que se a pessoa tivesse outra opção ela não estaria ali. Quem mantém uma empregada de segunda a sexta (ou até mesmo todos os dias da semana) a está tratando como um animal de estimação que lava e passa. Está privando-a de uma vida pessoal plena e de um convívio com sua família, se aproveitando do seu despreparo para o mercado de trabalho e da sua necessidade econômica. Muita vergonha alheia por quem faz isso e ainda acha que está fazendo um grande favor dando casa e emprego à pessoa.

Graças a esse tipo de aberração vemos famílias onde os filhos da patroa são criados pela empregada, já que a patroa faz filho mas sai de casa de manhã e só volta à noite, enquanto que os filhos da empregada estão sendo criados pela televisão ou pela rua. Muitas vezes o filho mais velho da empregada (nove, dez anos) tem a responsabilidade de cuidar dos seus (muitos) irmãos mais novos. Daí não sabem porque estas crianças em sua maioria acabam mal, metidas em crimes, drogas e outras merdas. Acabam assim porque VOCÊ prendeu a mãe deles na sua casa, não com as tradicionais correntes dos escravos, mas com as novas correntes do século XXI, o DINHEIRO. E você, você mesmo que fez isso, critica quando um dos filhos dela é mostrado tomando um flagrante de prisão por portar drogas na TV, dizendo que “vagabundo tem que prender mesmo” ou que “Não tem que deixar na rua não, tem que prender, vai que vende drogas para o meu filho”.

O que as pessoas não pensam, no seu egoísmo idiota, é que amanhã ou depois o filho desta empregada que mantiveram em cárcere privado em troca de dinheiro pode estar colocando uma arma na cabeça do seu filho. Valeu todo esse conforto de ter alguém preparando suas torradas e seu café de manhã? Se todos os brasileiros pudessem cuidar dos filhos de perto, talvez o país fosse menos merda. Se todos os brasileiros ganhassem o suficiente para não ter que se sujeitar a esse tipo de emprego, talvez o país fosse mais decente.

Daí um dia a empregada faz a limpa na casa e foge. A patroa fica pau da vida, quer até matar. Corre para a delegacia injuriada chamando a empregada de ingrata. Ok, eu não defendo roubo (furto, no caso), mas porra, você achou o que? Que a pessoa vendo os filhos andando com sapato furado porque não tem dinheiro para comprar um par de sapatos novos ia se conformar em ver seus filhos com dez pares de sapatos, entubar tudo isso e continuando a limpar os dez pares de sapatos dos seus filhos? Uma pessoa que passa necessidades, uma pessoa que está endividada, uma pessoa que não pode atender aos pedidos dos filhos, fica em um estado de desilusão e desespero que a faz esquecer facilmente o limite entre o certo e o errado. É certo roubar? NÃO, mas porra, é muito previsível que acabe acontecendo em uma situação como essa. E ainda assim, as pessoas preferem correr o risco em troca de uma escrava pessoal.

Empregada doméstica que resida com os patrões fere a dignidade da pessoa humana e deveria ser considerado ilegal. Quem já tem uma empregada residindo consigo, beleza, não vai jogar a criatura no olho da rua que a lei não está aí para ferrar com as pessoas. Mas, DAQUI PRA FRENTE (Lei do Ventre Livre II), isso não deveria mais ser permitido. Empregada doméstica tem que cumprir jornada de oito horas como qualquer outra profissão e se o patrão quiser alguma coisa fora dessas oito horas ele que levante a bunda da cadeira e faça sozinho. Ou então, que pague três empregadas diferentes para se revezar em turnos de modo a estar sempre sendo atendido. O que não pode é colocar um único ser humano para atender outro ser humano full time, porque mesmo pagando, isto é sim ESCRAVIDÃO. Mesmo que não se façam pedidos full time, só o fato de deixar a pessoa de prontidão full time é cruel.

Muito me admira que as pessoas não apresentem nenhum tipo de estranhamento e continuem achando isso normal. São as mesmas que reclamam horrores dos seus chefes quando estes as obrigam a fazer hora-extra. Dois pesos e duas medidas parece ser a especialidade do brasileiro. Quando enfiam meia trolha no seu rabo dói e é um escândalo, quando você enfia uma trolha inteira no rabo de outra pessoa é frescura se ela gritar.

E quando a empregada vai envelhecendo e continua tendo que executar os serviços domésticos? Mesmo com dificuldade, continua sendo exigido que ela faça trabalhos braçais. Qual opção ela tem, já que passou a vida toda enfurnada naquela casa e não teve outra oportunidade? Nenhuma, a não ser continuar fazendo um trabalho braçal quando o corpo pede descanso. Ou então pior ainda, quando já não pode desempenhar todas as suas funções, periga de ir parar no olho da rua, em uma idade onde dificilmente terá acesso ao mercado de trabalho.

Pessoas que fazem isso com outros seres humanos não se sentem mal? Engraçado, são as mesmas pessoas que morrem de pena de um cachorrinho abandonado na rua e que resgatam gatinhos xexelentos. E se acham super boas pessoas. Uma novidade para vocês: não são. Sujeitar um ser humano a te servir 24h por dia, mesmo pagando, é escravidão, goste você ou não. Infelizmente nosso ordenamento jurídico não evoluiu ao ponto de dar respaldo ao meu argumento, também, pudera, quem faz e aplica as leis é quem adora ter uma escrava servindo 24h por dia.

No final das contas, não sei o que é mais bizarro: não ter o constrangimento e vergonha de fazer isso com outro ser humano ou não sentir estranhamento por ter uma pessoa estranha vivendo debaixo do seu teto, com todas as implicações que isto pode gerar, desde não poder andar pelado dentro de casa até ter esta pessoa educando e cuidando dos seus filhos. Pelo visto o conforto está acima de tudo. Tudo MESMO.

Não sou idiota de achar que uma pessoa nos dias de hoje pode dar conta de ter uma casa limpa e arrumada e trabalhar de forma satisfatória. Um pouco de ajuda não faz mal e não fere a dignidade de ninguém. Como eu já disse, uma diarista com uma jornada de oito horas uma ou duas vezes na semana é bom para ambas as partes. Não estou mandando ninguém aqui ser super-mulher. Apenas seres humanos razoáveis.

O grande problema é que quando não parte da pessoa, espontaneamente, sentir constrangimento por esse tipo de escravização, dificilmente um argumento externo terá resultado. Se a pessoa não tem uma trava que separe o certo do errado, o digno do não digno, o aceitável do inaceitável, não serão estas quatro páginas que vão fazê-la mudar de idéia. Muito mais fácil achar que eu sou maluca/escrota/histérica ou qualquer um dos demais adjetivos que costumam me chamar do que refletir e tentar perceber o absurdo da situação.

Podem continuar se enganando, achando que sua empregada-escrava é feliz nesse esquema, que você faz a ela um favor, que esse modelo de trabalho é perfeitamente normal e que você não fodeu com a vida dela. Mas não venha tentar enganar outras pessoas, porque não cola. Se você mantém uma empregada nessas condições você é uma pessoa horrível que se assemelha a um senhor feudal, a um senhor de escravos que, além de cagar e andar para o outro ser humano, ainda é um inútil por não saber ou não querer fazer tarefas básicas que pessoas com um pingo de vergonha na cara jamais delegariam.

“Mas Sally…”. Não, hoje não tem “Mas Sally”, hoje não tem argumento. Não consigo nem começar a conversar com quem pensa diferente.

Para dizer que é por essas e outras que ficam me chamando de comunista, para tirar tudo do contexto e provar ser analfabeto funcional me criticando porque eu sou contra qualquer tipo de serviço doméstico e para dizer que descolado mesmo é quem usa serviços de Personal Dish Washer: sally@desfavor.com


Comments (59)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Relatório de erros de ortografia

O texto a seguir será enviado para nossos editores: