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Flertando com o desastre: Vera Cruz Credo!

| Somir | , | 32 comentários em Flertando com o desastre: Vera Cruz Credo!

Raios!

O desfavor teve acesso a um material de valor histórico inestimável: Cópias de cartas datadas da época do descobrimento do Brasil. Várias delas assinadas por um ilustre desconhecido que assina como Tiago de Somir, aparentemente um dos tripulantes da esquadra de Pedro Álvares Cabral. Mas o que realmente chama a atenção é a transcrição de material criado por uma nativa chamada Sallerê. Todos os textos foram atualizados e/ou traduzidos na medida do possível para a divulgação.

TIAGO DE SOMIR

Vera Cruz, 29 de abril de 1500

Vossa Majestade,

Desta vez te trago uma informação em primeiríssima mão: Não somos o único povo civilizado nesta terra. Mas permita-me situar melhor este relato.

Peço perdão antecipadamente pela quantidade de opiniões expressadas nesta carta. Apesar de incumbido com a tarefa de apenas relatar fatos, acredito piamente que sem este contraponto aos devaneios de Pero e Capitão Cabral, Vossa Majestade possa ser induzida ao erro. Esta terra é amaldiçoada e nada de bom poderá brotar deste solo com a forma irresponsável que os líderes desta excursão tratam a colonização.

Depostos de defesas e mantimentos após o saque perpetrado pelos selvagens locais, fomos obrigados a desembarcar a grande maioria dos homens e começar nossa ocupação em solo veracruzense. Alimentos não são problema, praticamente todos os pés estão carregados de frutos curiosos, mas comestíveis. A caça, embora de pequeno porte, também abunda e mantém nossos homens alimentados. Perdemos apenas metade do vinho, o que mantém a maioria dos homens sob controle. O problema está no sumiço de todo o estoque de ópio.

A maioria dos usuários pertencia ao topo da hierarquia da tripulação, o que está nos causando sérios problemas de comando. O principal é o envio frequente de grupos de busca com o único propósito de recuperar os barris roubados. Curioso como aqueles seres atrasados sabiam exatamente quais eram nossos estoques mais valiosos.

Ainda preso pela manutenção de meu disfarce, não pude desobedecer o Capitão Cabral quando enviado selva adentro num desses grupos de busca. Nenhum havia retornado até o momento, e agora eu entendo os motivos.

Neste exato momento, escrevo esta carta em condições precárias, amarrado por uma corda rudimentar, porém resistente, dentro de uma das cabanas infestadas por insetos que os bestiais nativos julgam moradias. Sim, Majestade, sou refém dos selvagens. Peço para que releve o possível cheiro emanado por esta correspondência, consegui alguns pedaços de papel e uma pena, mas nenhuma tinta…

Mesmo ciente de minhas condições atuais, posso me julgar agraciado pela sorte se comparado com meus companheiros de grupo. Se suas almas estão com Deus, seus corpos ainda precisarão esperar a digestão dos nativos para voltar à terra. Estes animais praticam o canibalismo. Os grupos de busca anteriores tiveram o mesmo destino horrível, a julgar pela pilha de ossos ensanguentados e roupas em farrapos que orna a área comum desta tribo maldita.

Como eu fui poupado? Majestade pode ficar tranquila, não contei nenhum segredo estratégico e não cooperei de forma alguma com os selvagens. Até porque bastam poucos minutos com qualquer um dos beberrões no acampamento principal para saber até a cor das ceroulas de Capitão Cabral. Imagino que a barreira linguística seja a nossa maior proteção no momento.

Voltemos à emboscada: Algumas horas mata adentro, decidimos descansar numa das raras clareiras neste inferno verde. Enquanto os outros esticavam as pernas e discutiam sobre as vergonhas das nativas, senti o chamado da natureza. Nunca fui muito afeito a me aliviar na presença de outros, então decidi me aventurar um pouco mais pela selva em busca de privacidade.

Foi quando encontrei um lugar ideal. Uma árvore excepcionalmente grande que repousava sobre uma pequena nascente, que por sua vez desembocava num poço alguns metros à frente. A disposição de proteção, água corrente e um buraco me pareceu tão perfeita para fazer minhas necessidades que não pude evitar. Obrei lá mesmo. Enquanto estava de cócoras, pude notar alguns desenhos rústicos encravados na madeira de árvores adjacentes. Talvez os nativos também utilizassem este local como cagador, só o tédio explicaria tantos símbolos e representações de animais estranhos no mesmo lugar. Reconheci os seres ao olhar para cima. Animais peludos que se moviam de forma muito lenta pelos galhos. Como eles mal se moviam, não senti nenhuma ameaça.

Ainda ocupado, escutei alguns gritos. Pareciam meus colegas de jornada. Temi pelo pior, mais uma emboscada dos saqueadores. Fiz o que qualquer pessoa corajosa faria, Majestade, pensei em acudi-los. Infelizmente minhas entranhas resolveram desatar algum nó e não pude evitar de ficar mais alguns minutos resolvendo… meus negócios.

Enquanto esperava valorosamente pela chance de lutar pela minha pátria, pude escutar passos cada vez mais próximos e o distinto som da língua selvagem. Como planejava atacar de surpresa, fiquei imóvel, quase que paralisado, aguardando a passagem daqueles nativos. Já podia observá-los passando por mim, quando o senso acurado de olfato de um daqueles animais captou minha presença.

“Futum”, ou algo muito parecido, disse um deles. Os outros começaram a repetir o som e procurar ao seu redor. Quando um deles finalmente me notou, uma das maiores provas de hipocrisia que já vi até hoje. Aquele bando de desavergonhados, com suas lanças balançando livremente, agiu de forma absolutamente horrorizada ao me ver agachado, com as calças arriadas. Eles gritavam, choravam e se debatiam com a cena de um homem fazendo algo tão banal. Apontavam para a árvore, para os desenhos, para o alto. Berravam “Abá Aí, Abá Aí, Abá Aí!”.

Disse para eles que eu “abá” onde eu bem quisesse, e que eles não tinham moral nenhuma para me repreender. As minhas palavras não surtiram muito efeito. Aproveitando o choque deles, resolvi me limpar com aquela conveniente água. Não bastasse continuar me olhando, ainda fizeram mais estardalhaço. Um deles até desmaiou. Foi só quando me aproximei mais um pouco, já devidamente vestido, que um deles me amarrou e me carregou junto com os outros até sua aldeia.

Logo na chegada, já fui tratado de forma diferente. Conversavam aos berros, apontando para mim e imitando a posição característica de uma… obrada. Mais uma vez, repetiam “Abá Aí, Abá Aí…” O líder do grupo, facilmente notado pelo adorno exagerado de penas na cabeça, quase entrou em choque quando informado da história de minha captura. Dois selvagens precisaram segurá-lo para que ele não partisse para cima de mim. Incrível como os selvagens são ciumentos com seus cagadores. Sou mantido isolado ao ar livre durante mais algum tempo. Meus companheiros são despidos, banhados e presos a estacas fincadas no chão.

Os nativos ficam a me encarar por horas. Pude perceber que fui batizado como Futum. Devo ser importante para esse povo atrasado. No cair da noite, presencio um ritual dantesco: Começam a aparecer selvagens de todos os cantos e se aglomerar no centro da aldeia. Todos pintados com cores exageradas, adornados com uma infinidade de restos animais como penas, ossos e peles, e para piorar, sem nenhum senso de modéstia. Com toda a honestidade, Majestade, o hábito da nudez tem lá seus méritos em jovens nativas, mas nada… NADA compensa a visão dos corpos maltratados pelo tempo dos idosos locais chacoalhando suas vergonhas à plena vista.

E o chacoalhar é constante. Sem o menor senso musical, os nativos acreditam fazer música apenas tamborilando pedaços de madeira e gemendo de forma assustadora. Minha maior preocupação era enfrentar a morte sem nunca mais ouvir o doce som de um violino ou de um piano. Alheias ao horror dos sons, algumas jovens praticam uma dança extremamente vulgar, que consiste em simular gestos e posições típicas do momento da cópula. Algumas das rotinas fariam corar até mesmo uma cortesã parisiense.

Os nativos são de um mal gosto impressionante. Meu único alento é que nenhum povo civilizado pode manter tais hábitos durante muito tempo. Ainda não concordo com a colonização, mas reconheço que somos sua única chance.

Após algum tempo daquela pouca vergonha, finalmente o evento principal: O banquete. Como já mencionado, meus ex-companheiros estavam no menu. Assisti horrorizado homens, mulheres, adultos, crianças e idosos deglutindo carne humana como se fosse a mais saborosa iguaria disponível. Acompanhei-nos apenas porque fui obrigado. Repeti para não despertar suspeitas.

Com uma tinta mais digna de Vossa Majestade, continuo meu relato: Acreditei ter conquistado a confiança da tribo, mas foi durante a madrugada que entendi melhor o que ocorrera: Havia sido a bem afortunada vítima de um engano. Enquanto todos pareciam dormir, eu me mantive alerta dentro de minha prisão. Esperava por uma equipe de resgate e acredito que o João me deu um pouco de gases.

As folhas que me serviam como grades começaram a se mexer. Todos pareciam dormir, então presumi que seria uma visita daquela bela nativa que nos dera boas vindas na praia e que dançara de forma tão… sugestiva na cerimônia canibal horas antes. Vossa Majestade, eu percebi como ela me olhava, percebi como dizia “Futum” e sorria na minha direção. Fazia sentido. Fechei meus olhos e me preparei para beijá-la. Tudo em nome de boas relações diplomáticas, é claro.

“Cabrón? Cabrón?”. Para minha surpresa era uma voz masculina. Resolvi não abrir os olhos, não estava em posição de negociar. Um tapa nos meus lábios selou a intenção da visita. Um nativo familiar, o mesmo que liderou o grupo dos saqueadores dias atrás, estava frente a frente comigo. Com um gesto bem característico, mandou-me ficar em silêncio e começou a falar num improvisado, mas definitivamente surpreendente castelhano.

Seu nome era Urinã. Urinã Piá. Embora eu não seja totalmente versado no idioma espanhol, fui capaz de compreender boa parte da história. Urinã disse-me que aprendera a língua com um grupo de homens barbudos feito eu há muito tempo atrás. Pediu desculpas pelo saque, dizendo que eram apenas negócios. Perguntado sobre o motivo de minha captura sem intenções alimentícias, a resposta veio em tom sarcástico. Urinã tentava segurar o riso enquanto dizia que seu povo acreditava que aquela árvore era sagrada, e que os animais que viviam nela tinham uma importante função: Manter uma maldição sob controle.

Enquanto aquela árvore fosse adorada, a natureza se encarregaria de passar o fardo da letargia apenas para aqueles seres estranhos que havia avistado enquanto me aliviava. Evidente que como bom cristão, apenas ri daquela superstição boba. Um animal se sacrificar pelas pessoas? Que conceito estúpido!

Urinã também achava uma bobagem, mas foi direto ao mencionar que para os outros, a coisa era muito séria. Eu teria cometido um crime horrível ao utilizar a árvore e a nascente sagradas como cagador. Com medo de que todo o povo local se tornasse tão lerdo como o “Abá Aí”, o nome do bicho em questão na língua local, tentariam me sacrificar pela manhã. Mas Urinã poderia me salvar por um preço.

Preço que paguei com prazer. Não, Vossa Majestade, não prazer no sentido… De qualquer forma, o selvagem queria saber como fazer mais daquele pó marrom que roubara de nós. Percebendo que ele se referia ao ópio que procurávamos, expliquei que não daria para fazer mais, não aqui em Vera Cruz. Para a sorte dele, estavam usando de forma totalmente errada, bastou uma aula simples para perceber que os dois barris poderiam sustentar um usuário por anos a fio. Os olhos dele brilharam, como se estivesse formulando um plano infalível.

Troquei conhecimento pela liberdade. Urinã me escoltou até a praia do acampamento principal. Ao chegarmos, disse que tinha um presente para meu Capitão. Uma trouxinha com algumas gramas de ópio. Generoso.

Mas não me deixo enganar, esses selvagens jogam apenas pelas próprias regras. Ele me contou sobre a forma que os outros homens barbados, claramente os espanhóis, tratavam os nativos. Sem perdão. Instalavam-se e matavam qualquer um que não aceitasse a escravidão. E até mesmo os que aceitavam. Duvido que sua simpatia dure muito tempo. São eles ou nós, Majestade. Eles ou nós!

E da forma que estamos tratando esta ocupação, começo a entender os motivos deles. Daqui a nove meses já teremos nativos portugueses, se é que me faço claro. Se misturar com esse povo bárbaro não vai dar certo.

Do seu servo,
Tiago de Somir


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