O desfavor teve acesso a um material de valor histórico inestimável: Cópias de cartas datadas da época do descobrimento do Brasil. Várias delas assinadas por um ilustre desconhecido que assina como Tiago de Somir, aparentemente um dos tripulantes da esquadra de Pedro Álvares Cabral. Mas o que realmente chama a atenção é a transcrição de material criado por uma nativa chamada Sallerê. Todos os textos foram atualizados e/ou traduzidos na medida do possível para a divulgação.
TIAGO DE SOMIR
Vossa Majestade,
Este relato visa alertá-lo sobre o que realmente acontece nesta terra maldita. Ignore completamente a carta enviada por Pero, irremediavelmente corrompida pelo uso indiscriminado de ópio. Se realmente conseguimos uma vantagem estratégica contra os nativos, ela se deve a concessões perigosas de ambos os lados, tornando a situação atual um terrível ponto de partida para a colonização.
Logo após meu retorno ao acampamento praiano, fui-me reportar diretamente ao Capitão Cabral, certo de que meu depoimento sobre o canibalismo dos selvagens locais o faria recolher a tripulação e buscar reforços em nossa terra natal. Por alguns momentos, tive a impressão que seria esse mesmo o próximo passo de nossa expedição.
As coisas mudaram de figura, contanto, assim que entreguei o presente do nativo que me livrou da morte certa algumas horas antes. Capitão Cabral desenrolou a trouxa de pano e encontrou a pequena dose de ópio, consumida prontamente. O que não havia notado originalmente é que enrolado também se encontrava um pequeno bilhete, o qual o Capitão reagiu com um sorriso, mas impediu-me de conhecer o conteúdo.
Obrigou-me ainda a guardar segredo sobre os acontecimentos anteriores, ênfase no canibalismo nativo. Acreditei que era uma forma de não trazer pânico desnecessário para o já problemático convívio diário. Mesmo sem concordar, acatei.
Ordens são ordens, Majestade. Naquele momento, não sabia o que se encontrava escrito ali, ao contrário de vários documentos e mapas secretos, este não ficou jogado em cima da mesa de seus aposentos completamente desprotegido. O que eu sei é o que aconteceu na manhã seguinte:
Capitão reuniu praticamente todos os homens na praia, ordenou-lhes a retirada das vestes e fez um minucioso e desagradável teste físico, procurando por marujos de “pouca aptidão atlética “. Dez homens foram escolhidos, visivelmente mais rotundos do que o restante. Capitão disse então que faríamos uma visita oficial à tribo mais próxima, para tentar um acordo de paz duradouro.
Arrepios atravessaram minha espinha. Mantive-me calado para não estragar o disfarce em nome de Vossa Majestade, e também pela falta de vocação para morrer enforcado por desacato a maior autoridade local. Capitão Cabral, quatro soldados, os dez homens, especiarias diversas e um barril de vinho branco seguiram em direção à tribo Desfavorã.
Sim, Majestade, eu também fiquei horrorizado, carne humana é vermelha e obviamente não combina com vinho branco.
Como já conhecia o caminho, pude acompanhá-los de longe, sorrateiramente, até seu destino. Aqueles dez homens mal sabiam a maleficência que enfrentariam a seguir: Outro ritual de dança. Minhas preocupações com silêncio e furtividade se mostraram infundadas, curioso como os nativos e até mesmo visitantes civilizados ficam completamente distraídos quando jovens descobertas remexem seus quadris.
Há algo de muito errado nesta terra. Observei todo o ritual novamente, em nome da missão, e não posso dizer que o desfecho tenha sido surpreendente. Os homens escolhidos na praia pela manhã tornaram-se o prato principal da noite. Embora não corrobore de forma alguma com os meios, pode-se dizer com segurança que a oferta do Capitão surtiu efeitos positivos na relação com os nativos. O líder da tribo, chamado de Papapilha, parecia encantado com o nosso.
Enquanto estava distraído com a visão de um grupo de jovens nativas ensaiando uma de suas danças demoníacas, fui interpelado por uma voz conhecida. Urinã Piá parecia enojado, mas disse que pelo menos eu estava deixando as capivaras em paz. Já refeito e devidamente vestido, perguntei o que ele havia escrito no bilhete.
O nativo riu e mencionou que estava aproximando os povos. Logo após me aconselhou a sair de perto dali, já que as rondas noturnas estavam prestes a começar. Urinã voltou para a área coletiva da tribo logo a seguir, aproximando-se do Capitão e dizendo algumas palavras em seu ouvido.
Majestade, tenho a nítida impressão que nesta terra nada é o que parece ser e todos parecem querer levar vantagem. Retornei à relativa segurança do acampamento e pude presenciar a chegada do Capitão e seus soldados. Os homens pareciam preocupados com a ausência de seus colegas, o que contrastava totalmente com a expressão relaxada e por vezes risonha de nosso capitão. Sem nenhuma explicação, ele se recolheu aos seus aposentos.
Exaurido, segui o exemplo. Logo após o nascer do sol, o meu sono e de tantos outros foi interrompido por gritos dos vigias de plantão. Estávamos sendo atacados por nativos. Meus colegas foram mais rápidos e pegaram todas as armas à disposição antes que eu tivesse chance, o que me obrigou, e devo dizer a contragosto, a me esconder por detrás de homens mais bem equipados enquanto os selvagens faziam sua aproximação. Fiz questão de pegar minhas coisas e ficar preparado para uma retirada honrosa em caso de derrota.
Cacique Papapilha vinha na frente, o que diminuiu nossa preocupação com intenções violentas por parte deles. Capitão Cabral pediu passagem pelas nossas linhas de defesa enquanto ordenava que todos baixassem suas espadas. Para nosso espanto, Papapilha rendeu seu espalhafatoso adorno de cabeça ao nosso líder. Os outros selvagens começaram a saudar Capitão Cabral assim que ele trocou seu chapéu por aquela aberração cromática artesanal.
O que ocorreu a seguir foi uma grande comemoração: Os homens pareciam extasiados com o prospecto de ascendência sobre os… corrijo, as selvagens. Em resumo, um acordo de líderes colocou os nossos sob o risco constante do canibalismo nativo, e colocou os deles num caminho sem volta para a subserviência eterna. Espero que esse padrão de decisões que priorizam o bem estar de poucos privilegiados seja apenas um engano passageiro e não se torne uma constante nesta terra.
Mas não pude passar muito tempo filosofando. Um selvagem próximo de mim gritou “FUTUM!” a plenos pulmões. Os outros não demoraram muito a travar suas vistas na minha pessoa. O ódio no ar era tão palpável que pude sentir até mesmo nos meus fundilhos. Acredito que não seja possível esconder uma figura tão importante, um “Futum”, nem no meio de uma grande multidão. É o preço da fama.
Comecei a correr naquele momento mesmo. Não sei se corri rápido demais ou se a maldição do Abá Aí realmente tem fundamento, mas não precisei mais do que alguns metros para despistá-los completamente. Não podia mais voltar para o acampamento, não podia buscar refúgio entre os nativos.
Vaguei a esmo por mais algum tempo, tentando encontrar uma solução para meus problemas e água corrente para minhas ceroulas. Acabei encontrando tudo no mesmo local. Mais uma vez o destino me colocava frente a frente com Urinã Piá. Ele parecia desesperado. Sem nenhum sinal de cordialidade, abriu a conversa descrevendo uma jovem nativa, que pude reconhecer como aquela que nos recebeu na praia. Ele queria saber se eu a havia avistado recentemente.
Sallerê era o nome dela. Com minha negativa, acredito ter ouvido um palavrão em sua língua natal. Não posso confirmar, mas com aquela expressão e entonação, não poderia ser um elogio. Ele continuou repetindo palavras incompreensíveis e demonstrando fúria de forma inequívoca.
Sem nenhum lugar melhor para ir, esperei até que o selvagem se acalmasse e voltasse a proferir palavras num idioma mais familiar. Urinã explicou-me o motivo de sua cólera e por consequência o que realmente motivou a entrega do poder de Papapilha para o Capitão Cabral: O saque no dia de nossa chegada não fora relatado para sua tribo. Apenas ele e mais alguns selvagens sabiam que nosso valioso estoque de ópio estava em seu poder.
Urinã ofereceu algumas doses do ópio para seu Cacique, escondido do resto da tribo, pelos últimos dias. O selvagem fingiu que havia acabado o estoque e disse para Papapilha que precisaria de cem moedas de ouro para conseguir mais dos mercadores espanhóis.
Papapilha, enfraquecido pelo vício, foi convencido a vender o que tivesse para levantar tal quantia.
O bilhete na trouxinha enviada ao Capitão Cabral era uma oferta de venda da tribo, e por consequência todo o estoque de ópio, por cem peças de ouro e dez homens rechonchudos. Agindo como tradutor, Urinã selou o acordo “impossível” entre os líderes naquela noite da visita do Capitão.
Cabral entregou o ouro a Papapilha, Papapilha mais tarde entregou o ouro a Urinã, que prometeu trazer o ópio o mais rápido possível. Seu plano era pegar o ouro e fugir para a Europa com os espanhóis.
E é aí que entra a nativa Sallerê. Ele já desconfiava de suas intenções, tanto que havia interceptado e modificado todos seus relatórios para o Cacique até então. Mas independente do local de nascimento, homens são homens.
Urinã conta que enquanto fazia seus preparativos para fugir, ela adentra sua casa, ou o que eles chamam de casa, parecendo muito disposta a tornar realidade suas coreografias durante os rituais.
O selvagem bota as duas mãos na testa enquanto relembra que aquele coco estava com um gosto estranho. Ele me conta que só conseguiu recobrar os sentidos pela manhã, com um bilhete agradecido no lugar da sacola com as moedas. Nenhum sinal de Sallerê.
Assim que ele me diz que não pode mais voltar para nenhum dos grupos, demonstro conhecimento de causa. Após alguns momentos de lamentações, me vem a ideia de usar o ópio para comprar nosso perdão. Urinã deixa escapar um longo suspiro e revela que os barris foram roubados pela tribo rival, os Carijós. Já adianta que o melhor que fazemos é ficar longe, muito longe deles.
E é assim, Majestade, que seu leal servo está seguindo em direção ao sul junto ao selvagem, em busca de outros colonizadores. Quando mencionei uma certa animosidade entre portugueses e espanhóis, ele me disse que tinha um plano infalível, mas ainda não revelou detalhes.
Além de não ter muitas opções, também me interessa muito o trabalho de tradução dos escritos de Sallerê com o qual Urinã está me ajudando. Continuarei com minhas cartas enquanto puder. Tenho plena confiança que assim que Vossos Olhos se depararem com este material, essa colonização baseada em acordos escusos, traições e abuso de poder tomará um rumo completamente diferente.
A história será minha testemunha.
Do seu leal servo,
Tiago de Somir