Raios!

O desfavor teve acesso a um material de valor histórico inestimável: Cópias de cartas datadas da época do descobrimento do Brasil. Várias delas assinadas por um ilustre desconhecido que assina como Tiago de Somir, aparentemente um dos tripulantes da esquadra de Pedro Álvares Cabral. Mas o que realmente chama a atenção é a transcrição de material criado por uma nativa chamada Sallerê. Todos os textos foram atualizados e/ou traduzidos na medida do possível para a divulgação.

TIAGO DE SOMIR

Vera Cruz, 1º de Maio de 1500

Vossa Majestade,

Este relato visa alertá-lo sobre o que realmente acontece nesta terra maldita. Ignore completamente a carta enviada por Pero, irremediavelmente corrompida pelo uso indiscriminado de ópio. Se realmente conseguimos uma vantagem estratégica contra os nativos, ela se deve a concessões perigosas de ambos os lados, tornando a situação atual um terrível ponto de partida para a colonização.

Logo após meu retorno ao acampamento praiano, fui-me reportar diretamente ao Capitão Cabral, certo de que meu depoimento sobre o canibalismo dos selvagens locais o faria recolher a tripulação e buscar reforços em nossa terra natal. Por alguns momentos, tive a impressão que seria esse mesmo o próximo passo de nossa expedição.

As coisas mudaram de figura, contanto, assim que entreguei o presente do nativo que me livrou da morte certa algumas horas antes. Capitão Cabral desenrolou a trouxa de pano e encontrou a pequena dose de ópio, consumida prontamente. O que não havia notado originalmente é que enrolado também se encontrava um pequeno bilhete, o qual o Capitão reagiu com um sorriso, mas impediu-me de conhecer o conteúdo.

Obrigou-me ainda a guardar segredo sobre os acontecimentos anteriores, ênfase no canibalismo nativo. Acreditei que era uma forma de não trazer pânico desnecessário para o já problemático convívio diário. Mesmo sem concordar, acatei.

Ordens são ordens, Majestade. Naquele momento, não sabia o que se encontrava escrito ali, ao contrário de vários documentos e mapas secretos, este não ficou jogado em cima da mesa de seus aposentos completamente desprotegido. O que eu sei é o que aconteceu na manhã seguinte:

Capitão reuniu praticamente todos os homens na praia, ordenou-lhes a retirada das vestes e fez um minucioso e desagradável teste físico, procurando por marujos de “pouca aptidão atlética “. Dez homens foram escolhidos, visivelmente mais rotundos do que o restante. Capitão disse então que faríamos uma visita oficial à tribo mais próxima, para tentar um acordo de paz duradouro.

Arrepios atravessaram minha espinha. Mantive-me calado para não estragar o disfarce em nome de Vossa Majestade, e também pela falta de vocação para morrer enforcado por desacato a maior autoridade local. Capitão Cabral, quatro soldados, os dez homens, especiarias diversas e um barril de vinho branco seguiram em direção à tribo Desfavorã.

Sim, Majestade, eu também fiquei horrorizado, carne humana é vermelha e obviamente não combina com vinho branco.

Como já conhecia o caminho, pude acompanhá-los de longe, sorrateiramente, até seu destino. Aqueles dez homens mal sabiam a maleficência que enfrentariam a seguir: Outro ritual de dança. Minhas preocupações com silêncio e furtividade se mostraram infundadas, curioso como os nativos e até mesmo visitantes civilizados ficam completamente distraídos quando jovens descobertas remexem seus quadris.

Há algo de muito errado nesta terra. Observei todo o ritual novamente, em nome da missão, e não posso dizer que o desfecho tenha sido surpreendente. Os homens escolhidos na praia pela manhã tornaram-se o prato principal da noite. Embora não corrobore de forma alguma com os meios, pode-se dizer com segurança que a oferta do Capitão surtiu efeitos positivos na relação com os nativos. O líder da tribo, chamado de Papapilha, parecia encantado com o nosso.

Enquanto estava distraído com a visão de um grupo de jovens nativas ensaiando uma de suas danças demoníacas, fui interpelado por uma voz conhecida. Urinã Piá parecia enojado, mas disse que pelo menos eu estava deixando as capivaras em paz. Já refeito e devidamente vestido, perguntei o que ele havia escrito no bilhete.

O nativo riu e mencionou que estava aproximando os povos. Logo após me aconselhou a sair de perto dali, já que as rondas noturnas estavam prestes a começar. Urinã voltou para a área coletiva da tribo logo a seguir, aproximando-se do Capitão e dizendo algumas palavras em seu ouvido.

Majestade, tenho a nítida impressão que nesta terra nada é o que parece ser e todos parecem querer levar vantagem. Retornei à relativa segurança do acampamento e pude presenciar a chegada do Capitão e seus soldados. Os homens pareciam preocupados com a ausência de seus colegas, o que contrastava totalmente com a expressão relaxada e por vezes risonha de nosso capitão. Sem nenhuma explicação, ele se recolheu aos seus aposentos.

Exaurido, segui o exemplo. Logo após o nascer do sol, o meu sono e de tantos outros foi interrompido por gritos dos vigias de plantão. Estávamos sendo atacados por nativos. Meus colegas foram mais rápidos e pegaram todas as armas à disposição antes que eu tivesse chance, o que me obrigou, e devo dizer a contragosto, a me esconder por detrás de homens mais bem equipados enquanto os selvagens faziam sua aproximação. Fiz questão de pegar minhas coisas e ficar preparado para uma retirada honrosa em caso de derrota.

Cacique Papapilha vinha na frente, o que diminuiu nossa preocupação com intenções violentas por parte deles. Capitão Cabral pediu passagem pelas nossas linhas de defesa enquanto ordenava que todos baixassem suas espadas. Para nosso espanto, Papapilha rendeu seu espalhafatoso adorno de cabeça ao nosso líder. Os outros selvagens começaram a saudar Capitão Cabral assim que ele trocou seu chapéu por aquela aberração cromática artesanal.

O que ocorreu a seguir foi uma grande comemoração: Os homens pareciam extasiados com o prospecto de ascendência sobre os… corrijo, as selvagens. Em resumo, um acordo de líderes colocou os nossos sob o risco constante do canibalismo nativo, e colocou os deles num caminho sem volta para a subserviência eterna. Espero que esse padrão de decisões que priorizam o bem estar de poucos privilegiados seja apenas um engano passageiro e não se torne uma constante nesta terra.

Mas não pude passar muito tempo filosofando. Um selvagem próximo de mim gritou “FUTUM!” a plenos pulmões. Os outros não demoraram muito a travar suas vistas na minha pessoa. O ódio no ar era tão palpável que pude sentir até mesmo nos meus fundilhos. Acredito que não seja possível esconder uma figura tão importante, um “Futum”, nem no meio de uma grande multidão. É o preço da fama.

Comecei a correr naquele momento mesmo. Não sei se corri rápido demais ou se a maldição do Abá Aí realmente tem fundamento, mas não precisei mais do que alguns metros para despistá-los completamente. Não podia mais voltar para o acampamento, não podia buscar refúgio entre os nativos.

Vaguei a esmo por mais algum tempo, tentando encontrar uma solução para meus problemas e água corrente para minhas ceroulas. Acabei encontrando tudo no mesmo local. Mais uma vez o destino me colocava frente a frente com Urinã Piá. Ele parecia desesperado. Sem nenhum sinal de cordialidade, abriu a conversa descrevendo uma jovem nativa, que pude reconhecer como aquela que nos recebeu na praia. Ele queria saber se eu a havia avistado recentemente.

Sallerê era o nome dela. Com minha negativa, acredito ter ouvido um palavrão em sua língua natal. Não posso confirmar, mas com aquela expressão e entonação, não poderia ser um elogio. Ele continuou repetindo palavras incompreensíveis e demonstrando fúria de forma inequívoca.

Sem nenhum lugar melhor para ir, esperei até que o selvagem se acalmasse e voltasse a proferir palavras num idioma mais familiar. Urinã explicou-me o motivo de sua cólera e por consequência o que realmente motivou a entrega do poder de Papapilha para o Capitão Cabral: O saque no dia de nossa chegada não fora relatado para sua tribo. Apenas ele e mais alguns selvagens sabiam que nosso valioso estoque de ópio estava em seu poder.

Urinã ofereceu algumas doses do ópio para seu Cacique, escondido do resto da tribo, pelos últimos dias. O selvagem fingiu que havia acabado o estoque e disse para Papapilha que precisaria de cem moedas de ouro para conseguir mais dos mercadores espanhóis.

Papapilha, enfraquecido pelo vício, foi convencido a vender o que tivesse para levantar tal quantia.

O bilhete na trouxinha enviada ao Capitão Cabral era uma oferta de venda da tribo, e por consequência todo o estoque de ópio, por cem peças de ouro e dez homens rechonchudos. Agindo como tradutor, Urinã selou o acordo “impossível” entre os líderes naquela noite da visita do Capitão.

Cabral entregou o ouro a Papapilha, Papapilha mais tarde entregou o ouro a Urinã, que prometeu trazer o ópio o mais rápido possível. Seu plano era pegar o ouro e fugir para a Europa com os espanhóis.

E é aí que entra a nativa Sallerê. Ele já desconfiava de suas intenções, tanto que havia interceptado e modificado todos seus relatórios para o Cacique até então. Mas independente do local de nascimento, homens são homens.

Urinã conta que enquanto fazia seus preparativos para fugir, ela adentra sua casa, ou o que eles chamam de casa, parecendo muito disposta a tornar realidade suas coreografias durante os rituais.

O selvagem bota as duas mãos na testa enquanto relembra que aquele coco estava com um gosto estranho. Ele me conta que só conseguiu recobrar os sentidos pela manhã, com um bilhete agradecido no lugar da sacola com as moedas. Nenhum sinal de Sallerê.

Assim que ele me diz que não pode mais voltar para nenhum dos grupos, demonstro conhecimento de causa. Após alguns momentos de lamentações, me vem a ideia de usar o ópio para comprar nosso perdão. Urinã deixa escapar um longo suspiro e revela que os barris foram roubados pela tribo rival, os Carijós. Já adianta que o melhor que fazemos é ficar longe, muito longe deles.

E é assim, Majestade, que seu leal servo está seguindo em direção ao sul junto ao selvagem, em busca de outros colonizadores. Quando mencionei uma certa animosidade entre portugueses e espanhóis, ele me disse que tinha um plano infalível, mas ainda não revelou detalhes.

Além de não ter muitas opções, também me interessa muito o trabalho de tradução dos escritos de Sallerê com o qual Urinã está me ajudando. Continuarei com minhas cartas enquanto puder. Tenho plena confiança que assim que Vossos Olhos se depararem com este material, essa colonização baseada em acordos escusos, traições e abuso de poder tomará um rumo completamente diferente.

A história será minha testemunha.

Do seu leal servo,
Tiago de Somir

Raios!

O desfavor teve acesso a um material de valor histórico inestimável: Cópias de cartas datadas da época do descobrimento do Brasil. Várias delas assinadas por um ilustre desconhecido que assina como Tiago de Somir, aparentemente um dos tripulantes da esquadra de Pedro Álvares Cabral. Mas o que realmente chama a atenção é a transcrição de material criado por uma nativa chamada Sallerê. Todos os textos foram atualizados e/ou traduzidos na medida do possível para a divulgação.

SALLERÊ

Desfavorã, 30 de abril de 1500

Cacique PapaPilha,

É inaceitável sua decisão de nos obrigar a conviver com estes animais burros, sujos e porcos que desembarcaram em nosso litoral. Os eventos de ontem ilustram perfeitamente a sequencia de absurdos que me fazem pensar desta forma.

Convidar o cacique dos Carijós para nosso ritual de dança eu compreendo, afinal, se aproximar do cacique antes de invadir sua tribo é uma estratégia comum. Mas convidar aqueles animais imundos foi inaceitável, ainda mais após a falta de respeito perpetrada por aquele asqueroso conhecido como Futum que defecou em nossa árvore sagrada. Acredito que não escaparemos da maldição. Se as próximas gerações se tornarem lentas, preguiçosas, de fala arrastada e pouco trabalhadoras, saberemos a quem culpar. Temo que dentro de algum tempo todos nos apontem e gritem “Aba Aí! Aba Aí!” e sejamos referência de inoperância, incompetência e lerdeza.

Fosse ao menos coerente sua decisão… mas não. Deglutimos alguns, os de menor hierarquia, enquanto o Capitão e os demais da alta hierarquia se juntavam ao evento. Todos deveriam ter sido mortos e servidos, esta é a norma da tribo! Em vez disto, tive que aturar olhares doentios partindo do Capitão deles e o deboche do cacique Ti Xã, compondo músicas que escarneciam de nossa tribo: “Ti Xã vem contar, o que a história não contou, que por uma índia Desfavorã, Cabral se apaixonou”. Francamente, insustentável.

Independente deste incidente, não posso compreender em que pode nos interessar uma amizade com estes animais atrasados. Ou por acaso seria benéfico para nossa aldeia instituir aqueles rituais maçantes celebrados em outro idioma, para ao final ser cobrado algum pertence por algo que deveríamos adorar apenas com o coração? Ou talvez seja de bom tom começar a defecar na nascente dos rios, de modo a contaminar a água de toda a aldeia? Estes animais são um retrocesso para nosso povo e devem ser afastados o quanto antes do nosso convívio.

Ontem pude presenciar cenas que embasam meu temor. Durante a noite, ao final de nosso ritual de dança, estava me recolhendo quando vi Urinã Piá correndo pela aldeia. Imediatamente fui atrás, não para investigar e sim porque queria cobrar a realização de suas tarefas, visto que se encontrava ausente de seus afazeres por dias, obrigando-me a executá-los. Quando finalmente o alcancei, percebi que ele estava dialogando com “Futum”, aquele animal imundo que defecou na árvore sagrada que nos protegia da maldição. Tentei escutar o que eles conversavam, mas o idioma me era estranho. Só pude perceber que Urinã Piá libertou o prisioneiro e ambos saíram juntos em direção à selva. Não tive escolha a não ser segui-los, afinal, libertar um prisioneiro sem anuência do cacique é algo grave.

Urinã acompanhou Futum até o litoral. Travaram um diálogo do qual não pude compreender uma única palavra. Porém, segui Futum até sua embarcação, que se encontrava nas proximidades. Nadei até ela e subi por uma corda sem ser vista.

Cacique, o que encontrei ao entrar me fez sentir náuseas e tristeza. Completa falta de higiene. Os ocupantes vivem ali como animais. Se entorpecem com as mais diversas substâncias tornando-se não apenas incapazes para as tarefas que lhes compete como ainda uma ameaça aos outros companheiros. É isto que queremos para nossa tribo? Um hábito nefasto que por muitas vezes nos faça atacar os próprios colegas? Que nos leve a violência e dor, da qual posteriormente nos arrependeremos e não teremos como desfazer? Dois deles brigavam por um líquido escuro da cor de uma açaí e acabaram se agredindo com objetos pontiagudos. Ao que pude notar, se tratava de pai e filho. Não quero conviver com animais que atacam seus próprios filhos por causa de uma bebida. Atacar a própria cria é absurdo, é contra a natureza e contra a sobrevivência.

Como estavam quase todos sob efeito desta bebida, pude investigar a embarcação com calma. E o que vi, Cacique, o que vi me fez desejar que eles nunca tivessem chegado a nossas praias. Uma espécie de oca desenvolvida para depositar suas necessidades fisiológicas! A pior parte é que TODOS depositavam suas necessidades no mesmo local, uma por cima da outra! Pelo que pude entender, estes excrementos são atirado dali para o mar. Cacique, que tipo de povo joga suas fezes no mar? O mar que nos alimenta com os mais diversos tipos de peixes, o mar que nos refresca! Atirar excrementos no mar é atuar contra a própria sobrevivência! Ao ver a cena, sentei-me no chão e chorei. Como podem existir criaturas tão torpes?

Procurei afastar-me o mais rápido possível daquela parte da embarcação e no caminho me deparei com uma cena terrível: um deles deitado no chão grunhindo e soltando espuma pela boca sem conseguir respirar. Seus sentidos rudimentares e suas ambições equivocadas os fazem esquecer de sua tribo, pois nenhum deles percebeu a ausência deste membro nem se preocupou em ajudá-lo. Muito pelo contrário, vi vários passando por ele sem ao menos notá-lo. Pareciam encarar com indiferença o sofrimento de um semelhante. Quando me vi sozinha com ele, me aproximei e o fiz comer algumas das ervas curativas que sempre carrego comigo. Ele pareceu surpreso por alguém ajudá-lo. É este tipo de indiferença para com aqueles que nos cercam que queremos em nossa aldeia? NÃO! Estes forasteiros são má influência e devem ser retirados de nossas terras.

Após tentar ajudar, tive que me esconder novamente, pois um grupo se aproximava. Entrei em uma espécie de compartimento e me escondi atrás de um longo pedaço de pano que pendia do teto ao chão cobrindo um orifício na embarcação. Pude ouvi-los conversando. Estavam realizando a divisão de alguns metais. Inicialmente me pareceu que estavam dividindo de forma igualitária, porém, quando um deles se virou, o outro tomou para si de forma sorrateira parte dos metais que não lhe correspondia! Como pode uma aldeia onde os próprios membros se saqueiam? Como esta aldeia desunida conseguirá conquistar outras aldeias se entre eles paira sempre a desconfiança? Como pode desconhecerem o sentimento de coletividade e trair um irmão por ambição e egoísmo? Os laços que os unem não valem nada. Repito: essa gente tem que ser afastada antes que contamine nosso povo com estes atos bárbaros.

Em outra área da embarcação vi um grupo deles com desenhos de mulheres para os quais apontavam e pareciam escarnecer. Jamais vi tamanho tratamento desrespeitoso a mulheres em qualquer situação. Por acaso esses animais não sabem que quem lhes deu a vida foi uma mulher? Quem os alimentou, educou e criou mereceria um pouco mais de respeito e consideração. Mas eles não respeitam, eles parecem acreditar que são superiores apenas por serem homens. Pior do que isso: eles estabelecem papéis para homens e mulheres em sua aldeia e qualquer um que saia destes papéis é segregado. Os membros não tem a opção de realizar as tarefas para as quais se sentem mais aptos.

Em nossa aldeia os homens que desejem podem se juntar às mulheres e realizar as atividades femininas sem que com isto sejam segregados, agredidos ou obrigados a adotar outras funções. Cada qual desempenha a atividade para a qual tem aptidão, sem amarras, sem imposições. Como é possível viver em uma aldeia que te limita as atividades que podem ser realizadas de acordo com seu sexo? Pior do que isso, delega funções tidas como menos importantes ás mulheres. Pois eu queria ver um deles carregar um filho nove meses em seu ventre e depois pari-lo. Seus valores são doentiamente distorcidos.

Mais adiante vi um dos membros com dificuldades para caminhar. Se apoiava em um bastão e tinha cabelos brancos. Parecia ser de idade avançada, mas ainda assim, os demais não mostraram qualquer respeito! Escarneciam de sua dificuldade em caminhar e o deixavam um tanto quanto segregado. Como podem ser tão burros de desprezar o membro mais experiente da aldeia? Aquele que mais vivenciou e experimentou desafios? Não era tratado como um sábio e sim como um imprestável. Seus colegas lhe viravam as costas e pareciam não dar importância ao que ele dizia. Enquanto em nossa tribo eles são tratados como sábios, consultados e ouvidos, estes animais os tratam como restos de um passado que já foi glorioso.

E as comidas? Todas com odores fortíssimos e aparência estranha. Pouco daquilo pode ser encontrado na natureza. Modificaram alimentos que a natureza já nos deu prontos para o consumo, tornando-os desagradáveis e nocivos ao organismo. Seus corpos inchados e peles oleosas mostravam sinais de intoxicação. Pude reparar em diversos outros sintomas de intoxicação neles, sobretudo nas mãos e unhas. Pior: eles parecem saber que estes alimentos trazem um efeito negativo, ao menos seus corpos inchados eles devem perceber. Ainda assim, insistem em ingerir alimentos prejudiciais à sua saúde, destruindo seu mais precioso bem: seu corpo, no qual terão que viver o resto de suas vidas. Que animais idiotas são estes que se condenam a viver em um corpo doente? São muito burros, Cacique.

Após ver morte, doença, injustiça e desonestidade tratadas com a maior normalidade, decidi sair dali o mais rápido possível. No caminho de volta, encontrei com Urinã Piá na selva e cobrei-lhe da realização de suas tarefas, explicando como sua ausência prejudicaria a aldeia. Para minha surpresa, ele se portou de forma diferente, respondendo de modo agressivo. Ao inquiri-lo sobre as razões para ter libertado o prisioneiro, ele me informou que agora eles são nossos amigos, recomendando que eu me acostume com a idéia. Mas o pior foi quando manifestei minha opinião contrária. Ele simplesmente deu a entender que por pensar o contrário do que ele acredita ser verdadeiro, eu não sabia pensar. Sugeri uma votação e ele disse que a questão já estava decidida. Nunca vi nada parecido com isto em nossa aldeia. Estava alterado, não sei se cego pela ganância ou dominado por alguma substância maligna. Urinã está virando um deles.

Quanto aos Carijós, não faz muita diferença agora. O cacique Ti Xã abandonou a tribo. Acredito que foi alvo de uma conspiração das mulheres da aldeia na noite passada. Esta tribo não nos interessa mais, pois seus membros não serviriam nem ao menos como alimento de tão podres que são. Recomendo que os deixe por lá, eles mesmos se encarregarão de destruir a aldeia. O cacique Ti Xã se encontra em local incerto.

É por isso, Cacique, que decidi partir. Não sem antes deixar este aviso, o qual afixei em área de visibilidade em nossa aldeia. Aqueles que não compactuarem com os princípios dos forasteiros virão comigo. Rumaremos para o Sul, onde acreditamos que estes animais ainda não tenham chegado. Vamos descobrir são verdadeiras todas as lendas que existem sobre as maravilhas das terras do Rio da Prata. Pretendo ali residir e constituir família. Talvez comecemos nossa própria tribo. Não ficarei aqui para ver estes animais imundos destruírem nossa cultura e arruinarem nossas terras e não me calarei, afinal, é meu dever nesta aldeia informar aos membros o que se passa. Virão comigo os índios Chegue Vara, Evi Tá e Embatis Tuta. Espero que possamos iniciar uma aldeia melhor.

É com pesar que deixo minha amada aldeia, na expectativa de que os expulsem antes que eles os contaminem com seus hábitos repulsivos. Em que pese minha partida, ainda não é tarde para me escutar: EXPULSEM ESTES ANIMAIS DAS NOSSAS TERRAS, antes que acabemos ficando como eles.

Sallerê

Raios!

O desfavor teve acesso a um material de valor histórico inestimável: Cópias de cartas datadas da época do descobrimento do Brasil. Várias delas assinadas por um ilustre desconhecido que assina como Tiago de Somir, aparentemente um dos tripulantes da esquadra de Pedro Álvares Cabral. Mas o que realmente chama a atenção é a transcrição de material criado por uma nativa chamada Sallerê. Todos os textos foram atualizados e/ou traduzidos na medida do possível para a divulgação.

TIAGO DE SOMIR

Vera Cruz, 29 de abril de 1500

Vossa Majestade,

Desta vez te trago uma informação em primeiríssima mão: Não somos o único povo civilizado nesta terra. Mas permita-me situar melhor este relato.

Peço perdão antecipadamente pela quantidade de opiniões expressadas nesta carta. Apesar de incumbido com a tarefa de apenas relatar fatos, acredito piamente que sem este contraponto aos devaneios de Pero e Capitão Cabral, Vossa Majestade possa ser induzida ao erro. Esta terra é amaldiçoada e nada de bom poderá brotar deste solo com a forma irresponsável que os líderes desta excursão tratam a colonização.

Depostos de defesas e mantimentos após o saque perpetrado pelos selvagens locais, fomos obrigados a desembarcar a grande maioria dos homens e começar nossa ocupação em solo veracruzense. Alimentos não são problema, praticamente todos os pés estão carregados de frutos curiosos, mas comestíveis. A caça, embora de pequeno porte, também abunda e mantém nossos homens alimentados. Perdemos apenas metade do vinho, o que mantém a maioria dos homens sob controle. O problema está no sumiço de todo o estoque de ópio.

A maioria dos usuários pertencia ao topo da hierarquia da tripulação, o que está nos causando sérios problemas de comando. O principal é o envio frequente de grupos de busca com o único propósito de recuperar os barris roubados. Curioso como aqueles seres atrasados sabiam exatamente quais eram nossos estoques mais valiosos.

Ainda preso pela manutenção de meu disfarce, não pude desobedecer o Capitão Cabral quando enviado selva adentro num desses grupos de busca. Nenhum havia retornado até o momento, e agora eu entendo os motivos.

Neste exato momento, escrevo esta carta em condições precárias, amarrado por uma corda rudimentar, porém resistente, dentro de uma das cabanas infestadas por insetos que os bestiais nativos julgam moradias. Sim, Majestade, sou refém dos selvagens. Peço para que releve o possível cheiro emanado por esta correspondência, consegui alguns pedaços de papel e uma pena, mas nenhuma tinta…

Mesmo ciente de minhas condições atuais, posso me julgar agraciado pela sorte se comparado com meus companheiros de grupo. Se suas almas estão com Deus, seus corpos ainda precisarão esperar a digestão dos nativos para voltar à terra. Estes animais praticam o canibalismo. Os grupos de busca anteriores tiveram o mesmo destino horrível, a julgar pela pilha de ossos ensanguentados e roupas em farrapos que orna a área comum desta tribo maldita.

Como eu fui poupado? Majestade pode ficar tranquila, não contei nenhum segredo estratégico e não cooperei de forma alguma com os selvagens. Até porque bastam poucos minutos com qualquer um dos beberrões no acampamento principal para saber até a cor das ceroulas de Capitão Cabral. Imagino que a barreira linguística seja a nossa maior proteção no momento.

Voltemos à emboscada: Algumas horas mata adentro, decidimos descansar numa das raras clareiras neste inferno verde. Enquanto os outros esticavam as pernas e discutiam sobre as vergonhas das nativas, senti o chamado da natureza. Nunca fui muito afeito a me aliviar na presença de outros, então decidi me aventurar um pouco mais pela selva em busca de privacidade.

Foi quando encontrei um lugar ideal. Uma árvore excepcionalmente grande que repousava sobre uma pequena nascente, que por sua vez desembocava num poço alguns metros à frente. A disposição de proteção, água corrente e um buraco me pareceu tão perfeita para fazer minhas necessidades que não pude evitar. Obrei lá mesmo. Enquanto estava de cócoras, pude notar alguns desenhos rústicos encravados na madeira de árvores adjacentes. Talvez os nativos também utilizassem este local como cagador, só o tédio explicaria tantos símbolos e representações de animais estranhos no mesmo lugar. Reconheci os seres ao olhar para cima. Animais peludos que se moviam de forma muito lenta pelos galhos. Como eles mal se moviam, não senti nenhuma ameaça.

Ainda ocupado, escutei alguns gritos. Pareciam meus colegas de jornada. Temi pelo pior, mais uma emboscada dos saqueadores. Fiz o que qualquer pessoa corajosa faria, Majestade, pensei em acudi-los. Infelizmente minhas entranhas resolveram desatar algum nó e não pude evitar de ficar mais alguns minutos resolvendo… meus negócios.

Enquanto esperava valorosamente pela chance de lutar pela minha pátria, pude escutar passos cada vez mais próximos e o distinto som da língua selvagem. Como planejava atacar de surpresa, fiquei imóvel, quase que paralisado, aguardando a passagem daqueles nativos. Já podia observá-los passando por mim, quando o senso acurado de olfato de um daqueles animais captou minha presença.

“Futum”, ou algo muito parecido, disse um deles. Os outros começaram a repetir o som e procurar ao seu redor. Quando um deles finalmente me notou, uma das maiores provas de hipocrisia que já vi até hoje. Aquele bando de desavergonhados, com suas lanças balançando livremente, agiu de forma absolutamente horrorizada ao me ver agachado, com as calças arriadas. Eles gritavam, choravam e se debatiam com a cena de um homem fazendo algo tão banal. Apontavam para a árvore, para os desenhos, para o alto. Berravam “Abá Aí, Abá Aí, Abá Aí!”.

Disse para eles que eu “abá” onde eu bem quisesse, e que eles não tinham moral nenhuma para me repreender. As minhas palavras não surtiram muito efeito. Aproveitando o choque deles, resolvi me limpar com aquela conveniente água. Não bastasse continuar me olhando, ainda fizeram mais estardalhaço. Um deles até desmaiou. Foi só quando me aproximei mais um pouco, já devidamente vestido, que um deles me amarrou e me carregou junto com os outros até sua aldeia.

Logo na chegada, já fui tratado de forma diferente. Conversavam aos berros, apontando para mim e imitando a posição característica de uma… obrada. Mais uma vez, repetiam “Abá Aí, Abá Aí…” O líder do grupo, facilmente notado pelo adorno exagerado de penas na cabeça, quase entrou em choque quando informado da história de minha captura. Dois selvagens precisaram segurá-lo para que ele não partisse para cima de mim. Incrível como os selvagens são ciumentos com seus cagadores. Sou mantido isolado ao ar livre durante mais algum tempo. Meus companheiros são despidos, banhados e presos a estacas fincadas no chão.

Os nativos ficam a me encarar por horas. Pude perceber que fui batizado como Futum. Devo ser importante para esse povo atrasado. No cair da noite, presencio um ritual dantesco: Começam a aparecer selvagens de todos os cantos e se aglomerar no centro da aldeia. Todos pintados com cores exageradas, adornados com uma infinidade de restos animais como penas, ossos e peles, e para piorar, sem nenhum senso de modéstia. Com toda a honestidade, Majestade, o hábito da nudez tem lá seus méritos em jovens nativas, mas nada… NADA compensa a visão dos corpos maltratados pelo tempo dos idosos locais chacoalhando suas vergonhas à plena vista.

E o chacoalhar é constante. Sem o menor senso musical, os nativos acreditam fazer música apenas tamborilando pedaços de madeira e gemendo de forma assustadora. Minha maior preocupação era enfrentar a morte sem nunca mais ouvir o doce som de um violino ou de um piano. Alheias ao horror dos sons, algumas jovens praticam uma dança extremamente vulgar, que consiste em simular gestos e posições típicas do momento da cópula. Algumas das rotinas fariam corar até mesmo uma cortesã parisiense.

Os nativos são de um mal gosto impressionante. Meu único alento é que nenhum povo civilizado pode manter tais hábitos durante muito tempo. Ainda não concordo com a colonização, mas reconheço que somos sua única chance.

Após algum tempo daquela pouca vergonha, finalmente o evento principal: O banquete. Como já mencionado, meus ex-companheiros estavam no menu. Assisti horrorizado homens, mulheres, adultos, crianças e idosos deglutindo carne humana como se fosse a mais saborosa iguaria disponível. Acompanhei-nos apenas porque fui obrigado. Repeti para não despertar suspeitas.

Com uma tinta mais digna de Vossa Majestade, continuo meu relato: Acreditei ter conquistado a confiança da tribo, mas foi durante a madrugada que entendi melhor o que ocorrera: Havia sido a bem afortunada vítima de um engano. Enquanto todos pareciam dormir, eu me mantive alerta dentro de minha prisão. Esperava por uma equipe de resgate e acredito que o João me deu um pouco de gases.

As folhas que me serviam como grades começaram a se mexer. Todos pareciam dormir, então presumi que seria uma visita daquela bela nativa que nos dera boas vindas na praia e que dançara de forma tão… sugestiva na cerimônia canibal horas antes. Vossa Majestade, eu percebi como ela me olhava, percebi como dizia “Futum” e sorria na minha direção. Fazia sentido. Fechei meus olhos e me preparei para beijá-la. Tudo em nome de boas relações diplomáticas, é claro.

“Cabrón? Cabrón?”. Para minha surpresa era uma voz masculina. Resolvi não abrir os olhos, não estava em posição de negociar. Um tapa nos meus lábios selou a intenção da visita. Um nativo familiar, o mesmo que liderou o grupo dos saqueadores dias atrás, estava frente a frente comigo. Com um gesto bem característico, mandou-me ficar em silêncio e começou a falar num improvisado, mas definitivamente surpreendente castelhano.

Seu nome era Urinã. Urinã Piá. Embora eu não seja totalmente versado no idioma espanhol, fui capaz de compreender boa parte da história. Urinã disse-me que aprendera a língua com um grupo de homens barbudos feito eu há muito tempo atrás. Pediu desculpas pelo saque, dizendo que eram apenas negócios. Perguntado sobre o motivo de minha captura sem intenções alimentícias, a resposta veio em tom sarcástico. Urinã tentava segurar o riso enquanto dizia que seu povo acreditava que aquela árvore era sagrada, e que os animais que viviam nela tinham uma importante função: Manter uma maldição sob controle.

Enquanto aquela árvore fosse adorada, a natureza se encarregaria de passar o fardo da letargia apenas para aqueles seres estranhos que havia avistado enquanto me aliviava. Evidente que como bom cristão, apenas ri daquela superstição boba. Um animal se sacrificar pelas pessoas? Que conceito estúpido!

Urinã também achava uma bobagem, mas foi direto ao mencionar que para os outros, a coisa era muito séria. Eu teria cometido um crime horrível ao utilizar a árvore e a nascente sagradas como cagador. Com medo de que todo o povo local se tornasse tão lerdo como o “Abá Aí”, o nome do bicho em questão na língua local, tentariam me sacrificar pela manhã. Mas Urinã poderia me salvar por um preço.

Preço que paguei com prazer. Não, Vossa Majestade, não prazer no sentido… De qualquer forma, o selvagem queria saber como fazer mais daquele pó marrom que roubara de nós. Percebendo que ele se referia ao ópio que procurávamos, expliquei que não daria para fazer mais, não aqui em Vera Cruz. Para a sorte dele, estavam usando de forma totalmente errada, bastou uma aula simples para perceber que os dois barris poderiam sustentar um usuário por anos a fio. Os olhos dele brilharam, como se estivesse formulando um plano infalível.

Troquei conhecimento pela liberdade. Urinã me escoltou até a praia do acampamento principal. Ao chegarmos, disse que tinha um presente para meu Capitão. Uma trouxinha com algumas gramas de ópio. Generoso.

Mas não me deixo enganar, esses selvagens jogam apenas pelas próprias regras. Ele me contou sobre a forma que os outros homens barbados, claramente os espanhóis, tratavam os nativos. Sem perdão. Instalavam-se e matavam qualquer um que não aceitasse a escravidão. E até mesmo os que aceitavam. Duvido que sua simpatia dure muito tempo. São eles ou nós, Majestade. Eles ou nós!

E da forma que estamos tratando esta ocupação, começo a entender os motivos deles. Daqui a nove meses já teremos nativos portugueses, se é que me faço claro. Se misturar com esse povo bárbaro não vai dar certo.

Do seu servo,
Tiago de Somir

Raios!

O desfavor teve acesso a um material de valor histórico inestimável: Cópias de cartas datadas da época do descobrimento do Brasil. Várias delas assinadas por um ilustre desconhecido que assina como Tiago de Somir, aparentemente um dos tripulantes da esquadra de Pedro Álvares Cabral. Mas o que realmente chama a atenção é a transcrição de material criado por uma nativa chamada Sallerê. Todos os textos foram atualizados e/ou traduzidos na medida do possível para a divulgação.

SALLERÊ

Desfavorã, 27 de abril de 1500

Cacique PapaPilha,

É a presente para cientificá-lo de que na data de ontem participei de um ritual estranho organizado pelo povo sujo e burro que desembarcou em nossas terras. Contarei desde o começo o ocorrido para sua apreciação.

Tudo começou quando caminhava pela floresta para alimentar nossos papagaios oferecendo-lhes seu prato favorito, a Kumba, mistura de diversas sementes. Foi quando observei uma movimentação estranha no litoral, maior do que a habitual. Os homens sujos estavam desembarcando diversos pertences e pareciam estar preparando algum ritual. Aproximei-me, por curiosidade, antes mesmo de alimentar as aves. Quando me viram, começaram a dizer palavras que, ao que pude entender, eram ordens para realizar trabalhos.

Continuei olhando inerte. Achei ingrato que os tenhamos acolhido em nossas terras e ainda por cima sejamos obrigados a trabalhar para montar a tribo deles. Não movi uma palha e pude sentir o ar de desprezo deles por isso. Gritaram comigo algumas vezes e me mantive imóvel, até que desistiram e continuaram sozinhos. Nós não lhes pedimos ajuda com nossos afazeres, porque eles se sentem neste direito? Bastante preguiçosos, não acha? Além de tudo burros, pois começaram a trabalhar em um momento em que uma grande tempestade estava por vir. Eles só prestam atenção em si mesmos, não percebem nada em seu entorno.

Em um primeiro momento, achei que estavam preparando uma festa ou uma homenagem ao povo de Desfavorã, afinal, permitimos que usem nossas terras com hospitalidade, nada mais justo. Mas posteriormente percebi que se tratava de um ritual particular deles, por sinal muito cansativo e sem propósito. Tudo começou quando cravaram na areia um tronco de árvore esculpido em uma área decorada para o evento (decoração de péssimo gosto, diga-se de passagem) e começaram a se reunir em torno dele. Fizeram sinais para que me junte a eles e eu cometi o erro de aceitar, acreditando que me fariam uma homenagem. Foram as horas mais desinteressantes e sem propósito da minha vida. Alguns companheiros Desfavorãs foram chegando e se juntarando a mim. Observamos o ritual dos homens sujos e burros.

Um deles, que capitaneava a cerimônia, apareceu trajando um roupa estranha, branca, com um objeto nas mãos. O objeto representava um homem coberto de sangue preso a um tronco de árvore pelas mãos. De imediato percebi a falta de veracidade. Nós sabemos muito bem ser impossível afixar alguém pelas mãos em um tronco, pois estas não suportam o peso do corpo, sendo o correto afixar pelos punhos, como fazemos quando assamos os membros das tribos inimigas. A credibilidade do evento já começou a ruir a partir daquela imagem. Outros homens trajando as mesmas vestes brancas se juntaram a ele e começaram as pregações.

Todos se reuniram em torno dos homens de branco, aparentando um interesse inicial. Foi quando o homem de branco começou a falar. Ele usava outro idioma diferente do que era falado pelos homens burros e sujos. Os ouvintes não pareciam entender e muitos deles adormeceram durante o evento. Sinceramente, não entendo o objetivo de um evento onde a platéia não compreende o que está sendo dito. Em determinado momento, todos se levantaram e levantaram as mãos. Acompanhei-os, por questão de educação e todos me olharam maravilhados. Um povo simplório e fácil de agradar, basta reproduzir seus rituais de fácil execução. Quando eles se sentaram, sentei-me novamente.

Curiosamente os aborígenes sujos e burros pareciam ter muito respeito pelo homem que conduzia a cerimônia. Era este mesmo homem que eu presenciei fazendo sexo com o Capitão da embarcação dentro da selva, conforme narrado na última carta. Talvez por isso ele trajasse vestes típicas das mulheres daquela tribo. Sei que são vestes femininas pois vi diversas em reproduções pintadas que me foram mostradas. Eram vestes destinadas exclusivamente a mulheres! Creio eu que na carência de mulheres na embarcação ele desempenha o papel de mulher. Achei versátil. Acho pertinente contar que hoje pela manhã, também presenciei este mesmo homem de saias fazendo sexo com uma capivara às margens de nossa cachoeira. Eles são bem versáteis.

Em determinado momento da cerimônia, todos se ajoelharam no chão. Neste momento achei que aquilo já havia passado dos limites. Eu e três companheiros estávamos ali por horas e não havia sido oferecida nenhuma comida ou bebida e o evento estava monótono a ponto dos próprios colegas dos organizadores dormirem. Nos entreolhamos e começamos a debochar: ajoelhamos, levantamos as mãos, gritamos. Todos olharam maravilhados. Sua inteligência rudimentar não lhes permitiu perceber que estávamos ridicularizando seu ritual.

Quando acreditamos que estaríamos livres para sair, o homem de branco que substitui as mulheres para fins sexuais voltou a falar. O mais curioso era a reação de seus colegas: alguns dormiam, outros faziam trabalhos manuais como afiar facas ou esculpir madeira e outros conversavam entre si. Ora, se evento não despertou curiosidade nem mesmo daqueles que estavam familiarizados com ele, como poderia despertar a nossa curiosidade? Por pouco não tivemos um surto de má educação e saímos no meio daquela palhaçada, afinal, ainda teríamos que alimentar os pássaros e a tempestade parecia cada vez mais próxima.

Para minha surpresa, o ritual terminou sem que ocorra nenhum sacrifício, nenhuma dança, nenhuma votação. Nada. O evento não tinha razão de ser. Ninguém foi nomeado, destituído e não ocorreu nenhum ato significativo que justifique uma festa ou rito de passagem. Aparentemente todos se reúnem para ouvir o nativo que faz sexo com capivaras dizer algo, que nem ao menos interessante parecia, porque boa parte deles não compreendeu e não se manteve atento ao que era dito. Ao final, o homem vestido de mulher que faz sexo com outros homens passou um recipiente de pano, onde todos depositavam metais. Ao que pareceu, aqueles metais eram valiosos para eles. Ou seja, promovem uma cerimônia sem qualquer objetivo ou atrativo e ainda cobram por ela! Um povo bastante estranho.

Também não compreendi porque todos nos olham com espanto, sobretudo para nossos corpos descobertos, se o elemento de adoração deles, fincado naquele tronco, também se encontra praticamente nu. Adoram uma figura nua porém se cobrem e se espantam com a nudez. Não há coerência. Talvez o homem de branco que faz sexo com outros homens estivesse fazendo um discurso para convencer seu povo a se libertar destas vestes e de tanta repressão, afinal, um homem que faz sexo com pessoas e animais no meio da floresta e se veste com roupas femininas deve ter um pensamento livre, ao menos esta seria a linha coerente de raciocínio. Espero que ele consiga convencer seus seguidores a serem mais flexíveis e abertos como ele.

Para piorar, ao final ofereceram a um por um algum tipo de alimento, embebido em um líquido de cor escura. Os homens sujos e burros fizeram fila e o homem de vestes femininas os alimentava, um a um, com aquilo. Em que pese meu desejo de ser educada, recusei-me a comer, pois poucas horas antes, como disse, havia flagrado o homem de vestes brancas fazendo sexo com uma capivara na floresta e introduzindo seu dedo em um orifício nada higiênico da do animal. Não nos sentimos tentados a comer alimentos provenientes daquela mão. Impressionante como eles não tem a menor noção de higiene. Ao perceber que a qualquer momento a tempestade se iniciaria, nos levantamos em direção à floresta.

Quando nos viram saindo, os homens sujos e burros gritaram conosco apontando para todo o material do evento e para as embarcações, como se quisessem ajuda para a transportar seus pertences. Rimos. Somos livres e não fazemos a tarefa dos outros, ainda mais quando havia uma tempestade se aproximando. Cada qual tem a sua tarefa e cada qual que a execute. Um tanto quanto preguiçosos estes visitantes. Sempre que podem tentam nos empurrar suas tarefas! Em nossas festas, nós cuidamos da decoração sem pedir ajuda aos convidados, pois sabemos que isto seria rude. Esses selvagens tem muito a aprender em matéria de educação e higiene.

Olhavam intrigados para o grande prato de grãos que eu carregava. Falavam sobre ele, apontavam com curiosidade. Decidi me explicar, na tentativa de passar um pouco de nossa cultura para eles. Disse o nome do prato, para ver se eles aprendiam: “Kumba”. Todos ficaram olhando. Eu repeti: “KUM-BA!” e coloquei no chão, no local onde habitualmente alimentamos os papagaios. Eles pareciam não entender, então, resolvi apontar para o alto, para o topo de uma árvore onde se encontravam os papagaios e repeti o nome “kumba” apontando para cima diversas vezes, na tentativa de mostrar que era alimento para as aves. Foi quando finalmente começou a cair uma tempestade com raios e trovões.

A cena que se seguiu foi ridícula. Os homens sujos e burros imediatamente associaram a tempestade ao prato de comida, apontavam para o prato, para os céus e gritavam e corriam de medo. Ora, bastava olhar para os céus horas antes para saber que uma tempestade se aproximava. E bastava ser racional para saber que um prato de comida no chão não tem qualquer poder sobrenatural. Mas eles não entendiam nada, e ao não entender, em vez de estudar e buscar conhecimento, divinizavam. Espero que com o tempo estes homens sujos e burros acabem entendendo que uma tigela de comida no chão não pode causar mal a ninguém, apenas um homem pode causar mal a outro homem. É tão difícil perceber isso?

Em menos de uma noite o ocorrido virou mito. Hoje pela manhã vi um grupo deles andando nas proximidades do prato de comida. Quando perceberam que estavam próximos ao prato, começaram a gritar “Uma kumba! Uma kumba!” e desviaram seu caminho, com medo de passar próximos a um inocente prato cheio de sementes. Sinceramente, talvez seja hora de expulsá-los de nossas terras. Sua burrice está tornando o convívio insuportável. Sem contar que cada vez mais deles estão chegando. Devemos agir enquanto somos maioria.

Depois de presenciar tanta covardia e ignorância, desisti dos forasteiros e me dirigi à Tribo dos Carijós para realizar meu relatório diário destinado a orientar nossa invasão. Continuo afirmando que será muito fácil invadi-los, pois são desunidos e despreparados. Seu cacique Ti Xã, como sempre, encontrava-se repousando. Os outros membros discutiam entre si de forma agressiva. Ao que tudo indica, amanhã haverá uma competição importante naquela tribo, que acabará gerando a expulsão de um dos membros. Sinceramente, espero que a mulher seja expulsa da tribo. Ela é quase tão chata quanto a cerimônia que presenciamos hoje.

A fragilidade da tribo é tanta que o seu índio mais jovem, que deveria ser o mais destemido e ousado, se assustou com alguns ruídos da selva e se recusou a apagar sua tocha para dormir. Também se recusou a proteger mulheres da tribo que aparentavam medo, alegando que não era homem. Ele disse “Não tem nenhum homem aqui”. Talvez ele seja convidado para vestir a roupa feminina preta e pregar aos nossos visitantes burros e sujos, pois ele seria uma boa mulher. Observarei se ele faz sexo com capivaras para verificar se atende aos requisitos.

Curioso é que, mesmo depois de ter proferido que não era homem, o mesmo índio se desentendeu com um dos patriarcas da tribo e bateu no próprio peito afirmando que era homem e manifestando seu desejo de embate corporal. Vale lembrar foi este mesmo índio que solicitou a expulsão de uma índia da tribo porque esta o teria agredido. Desculpe, Cacique Papapilha, se meu relato aparenta contradições, mas esta tribo dos Carijós não tem a menor coerência. Fica impossível depreender qualquer padrão de comportamento ou de pensamento. A única certeza é a de que eles estão se matando entre si e isto só irá prejudicá-los.

Apesar da invasão ser fácil, sinto-me no dever de informar que as condições da aldeia são precárias. Em função da incompetência dos índios, a mesma se encontra suja e mal cuidada. Além disto, no caso de invasão, sugiro que os índios sejam destinados à alimentação de nossa aldeia, pois não é possível uma convivência pacífica com os Carijós e estes jamais se adaptariam a nossos costumes. A exceção seria o cacique Ti Xã, que por sua sabedoria poderia ser mantido entre nós. Já presenciei belíssimos rituais de dança e canto comandados por ele e ficaria honrada em participar de um deles.

A inaptidão dos aborígenes Carijós é notória. No trato com um animal de grande porte, uma das índias foi mordida nas costelas. Em matéria de higiene eles também são precários: além de manter as instalações da aldeia imundas, ainda tem o hábito de urinar no mesmo local onde dormem e guardam seus pertences. Não há como adaptar criaturas tão rústicas ao nosso convívio. Além disso brigam entre si todos os dias, se ofendem, fazem ruídos altos. Vivem em um ciclo doentio de ofensas, perdão e mais ofensas. Por isso, sugiro que o cacique Ti Xã seja mantido prisioneiro para nosso aprimoramento musical e os demais sejam servidos em uma refeição.

Acredito que na grande disputa de poder que será realizada amanhã teremos mais indícios para avaliar a melhor estratégia de invasão. Aguarde por mais relatos.

Novamente reitero que estou realizando diversas tarefas sozinha. A situação prossegue a mesma. O índio Urinã Piá continua desaparecido e não me auxilia em nada. A situação beira o insustentável. Solicito com urgência auxílio em minhas tarefas e recomendo que seja traçado plano para retirar os homens sujos e burros de nossas terras. Com todo o respeito que lhe devo, informo que se não forem adotadas providências em breve não será possível prosseguir com meu trabalho.

Sallerê

Raios!

O desfavor teve acesso a um material de valor histórico inestimável: Cópias de cartas datadas da época do descobrimento do Brasil. Várias delas assinadas por um ilustre desconhecido que assina como Tiago de Somir, aparentemente um dos tripulantes da esquadra de Pedro Álvares Cabral. Mas o que realmente chama a atenção é a transcrição de material criado por uma nativa chamada Sallerê. Todos os textos foram atualizados e/ou traduzidos na medida do possível para a divulgação.

Sally e Somir analisaram as cartas, mas ainda não chegaram num consenso sobre qual dos dois parecia mais civilizado. E é aí que entram vocês, leitores.

Tema de hoje: Índios ou portugueses, quem foi o maior desfavor?

TIAGO DE SOMIR

Nau capitânia São Gabriel, 22 de Abril de 1500

Vossa Majestade,

Venho por meio desta realizar mais um relatório de viagem secreto sobre a expedição “Atalho para as Índias”. Posso confirmar agora que a informação passadas pelos seus conselheiros procede: Pero Vaz de Caminha realmente romantiza por demasia seus relatos. Tendo a oportunidade de ler em primeira mão a carta que será enviada para sua Corte, pude perceber uma enormidade de manipulações nos fatos revelados.

Vossa Majestade pode ficar tranquila, pois o disfarce deste aqui permanece muito bem mantido. Pero e Cabral mal desconfiam que seja eu versado nas artes da escrita. Os longos períodos de embriaguez de ambos e tantos outros contribuem demais com minhas análises independentes pela madrugada.

Se me é permitida uma opinião pessoal, a sugestão de riquezas infindáveis que será vista na carta parece uma tentativa escusa de mascarar as inúmeras inconsistências desta longa e improdutiva jornada. Imagino que será um choque para todos descobrir que não estamos nas Índias neste dado momento. Nosso navegador principal, Pêro Escobar, parece ter dificuldades de compreender que mapas precisam estar com o Norte apontado para o Norte, e não para o Sul. A viagem que deveria contornar a África foi simplesmente na direção oposta.

Uma quantidade tão grande de homens e ninguém percebe que as estrelas estão “ao contrário”? A diferença entre esquerda e a “outra esquerda” deveria ser notada com maior antecedência. Mas para a sorte de quem não desejaria terminar seus dias navegando a esmo com uma tripulação de beberrões incapazes de fazer direito até mesmo a única coisa que fazem da vida, encontramos terra firme.

A paisagem só não é mais exuberante do que excruciante. Nem mesmo toda a beleza natural local releva o calor infernal, a umidade nauseante e a quantidade avassaladora de insetos sedentos por sangue. Era de se esperar que nenhum homem seria capaz de viver dignamente num local destes, mas para minha surpresa, não demorou para que fôssemos recebidos pelos locais.

Sim, Vossa Majestade, este inferno é habitado. Enquanto seguíamos pelos botes em direção à praia, pudemos perceber que alguém saía de dentro da linha das árvores. Avisados por inúmeros gritos dos marujos ainda embarcados, tememos pelo pior: Uma emboscada. E como se já não fosse o bastante que nosso intrépido e embriagado Capitão seguisse no primeiro bote paramentado de forma claramente distinta a seus subordinados, o que denota pouco ou nenhum conhecimento de estratégia militar, ele ainda manda seus remadores apertarem o ritmo e dispara na frente.

Logo depois eu percebo o motivo: A figura solitária na praia era uma mulher. Nua. Arriscar a segurança de todos numa suposta emboscada só para chegar primeiro numa mulher com as vergonhas expostas? Devo ser honesto, também remei com muito mais afinco depois, afinal, foram meses com a companhia exclusiva de homens fedorentos. Mas eu não sou o Capitão.

Logo após o desembarque, uma decepção. Apesar de formosa, a nativa era demasiadamente pequena e… descoberta. A perturbadora semelhança com uma criança nos manteve mais controlados. Assim como eu, os outros marujos também estão mais acostumados a esperar pelo menos pelo nascimento do primeiro bigode nas mulheres. Sem contar que a presença do frei Henrique não facilitava. As inúmeras silhuetas humanas escondidas por detrás das árvores ajudaram a selar de vez a proteção da honra da nativa, contanto.

A tentativa de contato inteligente se mostrou infrutífera, a selvagem parecia incapaz de compreender sinais simples como “viemos de Portugal”, “o lugar onde você mora se chama Vera Cruz”, “a partir de agora vocês são católicos” ou “vocês ficam chateados se eu me aliviar naquele arbusto?”. A desavergonhada nativa mantinha seu rosto inclinado para o lado, tentando fazer sentido da situação, isto é, se é que esses seres são capazes de fazer sentido. Deixar as vergonhas expostas numa terra dominada por insetos não fala maravilhas sobre a inteligência de alguém.

Parecendo completamente alheia à sua vantagem estratégica, a nativa se aproximou lentamente e tentou render suas armas a nós. A situação já era perigosa como estava, fazer uma refém provavelmente seria nossa sentença de morte. Não esperava muito de uma tripulação capaz de errar um CONTINENTE, mas aceitar aquele arco era estúpido demais até para eles! Gritei “não!” para avisá-los do erro, e de uma certa forma funcionou: Acreditaram que estavam sendo atacados e dispersaram aos berros.

Não foi um grande momento para nossa história, Majestade. Dezenas de marujos barbados se jogando ao chão e berrando em frente de uma nativa menor que um bacalhau. Percebendo a situação constrangedora, tentei apaziguar os ânimos com uma boa e velha oferenda. Meu chapéu parecia o mais adequado, já que aqueles nativos pareciam precisar descobrir o couro o quanto antes. Ela retribuiu. Jogou um adorno que levava na cabeça em minha direção. Excelente, troquei um chapéu caro por um monte de penas que ela provavelmente encontrou caídas no chão. Espero que Vossa Majestade encontre alguma simpatia por este pobre escritor e reembolse-me.

Apesar do susto inicial, aquele pareceu o momento em que as coisas finalmente melhoraram. Capitão Cabral mandou buscar uma galinha na nau mais próxima, aparentemente para fazer um escambo com um belo exemplar de papagaio sentado ao ombro da nativa, talvez para repor o seu. Como eu duvido que isso vai ser mencionado na carta de Pero: Paco, o papagaio do Capitão, sumiu misteriosamente após teimar em repetir “Isso, Henrique, isso, Henrique”… Algo me diz que esta terra não vai ser muito bem abençoada.

Pois bem, a nativa parecia um tanto quanto desanimada ao trocar seu papagaio por uma galinha, mas acabou cedendo. Mal sabe ela que um espécime destes vale uma fortuna em Portugal. Pelo menos parece que a inocência dos selvagens nos trará algumas vantagens. Ainda servimos nossa comida à nativa, mas ela também não parecia muito afeita ao nosso banquete. E pensar que nosso cozinheiro amassou aquele pão ANTES de fazer suas necessidades, honraria que poucos puderam receber nestes últimos meses.

Após sua retirada, os outros nativos finalmente se aproximaram. Estes já sem tanto apego ao conceito de trocas. Difícil argumentar quando todas nossas armas ficaram no navio. Pero provavelmente vai se esquivar de relatar esta falha, mas sugiro que em viagens futuras carreguemos a pólvora em compartimentos um pouco mais à prova d’água do que o convés.

Não pudemos fazer nada quando os selvagens sequestraram nosso cozinheiro, provavelmente pelas suas habilidades. Afinal, para que mais ter o trabalho extra de carregar o tripulante mais rechonchudo da expedição como refém? Sem armas, sem ração, sem cozinheiro e aparentemente sem nenhuma simpatia dos locais. Continuarei meus relatos, mas não estou muito confiante no sucesso desta empreitada. Só uma carta de Pero mesmo para fazer isto aqui parecer uma boa coisa.

Do seu leal servo,
Tiago de Somir

SALLERÊ

Desfavorã, 22 de abril de 1500

Cacique Papapilha,

Acabo de experimentar um evento impensado. Estava vagando pelas redondezas da Tribo de Desfavorã, que segue próspera graças a seu comando e sábias decisões, exercendo a função que a mim foi delegada. Circundei a aldeia diversas vezes durante o dia e listei as ocorrências mais importantes sua apreciação, exercendo minha função recentemente denominada “Diurna Lista”. Em uma destas caminhadas, me deparei com algo diferente na região costeira. Porém, antes de narrar o ocorrido, venho manifestar minha insatisfação em função da carga horária trabalhada. Como o nome prega, eu sou uma Diurna Lista, a listagem dos eventos noturnos não cabe a mim e sim ao índio Urinã Piá, que vem faltado com seus afazeres, me obrigando a trabalhar dobrado. Solicito que, como líder dos Desfavorã, tome providências quanto ao caso.

Aos fatos. Ao perceber movimentação estranha no litoral dirigi-me em direção à praia. Lá chegando, deparo-me com uma cena grotesca: criaturas alegoricamente vestidas gritavam do alto de uma grande embarcação como animais. Suas vestes, completamente inapropriadas para a temperatura do dia, os fazia transpirar com um odor nunca antes visto por esta Diurna Lista que vos escreve. Um odor fétido, apodrecido, tóxico. Foi difícil permanecer ao lado de criaturas de tão pouca civilização e higiene, mas em nome da confiança depositada em mim, me aproximei para investigar.

As criaturas se assemelham a nós, exceto pelo odor insuportável, corpos estufados e pele de coloração rosácea. Acredito que estejam doentes, por isso não seria recomendável a ninguém da tribo comê-los. Gritavam e comemoravam por razão desconhecida. Ao contrario dos últimos visitantes dos quais se tem relato em Desfavorã, estes não tem cabelos claros nem utilizam chapéus com chifres de animais. Pareciam muito contentes por desembarcar em nossas praias, a razão eu desconheço pois não pude entender uma palavra do dialeto rudimentar que eles falam.

Ao perceber minha presença, todos se calaram. Me olhavam com espanto. Olhei-os de volta. Desconfio que sejam um tanto quanto frágeis, pois aparentaram sentir medo de mim, em que pese minha baixa estatura e o fato de me encontrar sozinha. Tentei travar um diálogo e me aproximei dizendo-lhes que eram bem vindos às nossas terras e convidando-os a conhecer nosso líder. Continuaram mudos e sem reação. Pude perceber que olhavam fixo para eu arco e flecha, então, decidi desarmar-me como prova de boa vontade. Foi em vão, assim que puxei o arco para oferecê-lo aos visitantes estes começaram a correr e gritar.

Um deles me chamou a atenção em especial. Parecia estar realizando apontamentos e quando todos se desesperaram estendeu a mão e tomou a frente da situação. Por razões que desconheço atirou em minha direção a veste que usava na cabeça. Continuei sem compreender o ato do selvagem mas decidi retribuir da mesma forma, me adequando a seu costume bárbaro, atirei-lhe de volta meu cocar. Todos gritaram. Mas após o ocorrido, caminharam em minha direção.

Disseram muitas palavras que eu desconheço, porém apenas uma me ficou na memória, provavelmente pelo excesso de repetição: “Vera Cruz” eles diziam e apontavam para o solo. Talvez estivessem se referindo ao nome das vestes que utilizavam nos pés. Sim, eles utilizavam vestes nos pés. Não sei informar a razão.

Olhavam curiosamente para Tili Kum, minha ave de estimação que repousava sobre meu ombro. Percebendo a curiosidade, posicionei Tili Kum nos ombros de um deles, que ficou maravilhado e prontamente foi mostrar aos demais. Será de grande valia, uma vez que quando ela retornar, poderá repetir as palavras ditas pelos selvagens para sua interpretação.

Em retorno, me trouxeram um exemplar da ave deles, uma criatura disforme, que de tão estufada sequer conseguia voar. Não cantava, apenas emitia ruídos irritantes. Confesso que a princípio tive ressalvas em tocá-la, pois me pareceu desagradável, porém eles insistiram através de gestos e eu recolhi o animal, que se encontra na oca do Diurna Lista disponível para sua observação. Ao final, não me devolveram Tili Kum e me deixaram ficar com a ave disforme. Acredito que tentaram realizar uma espécie de troca rudimentar. Aparentemente não tem raciocínio para perceber que em breve Tili Kum voará de volta para casa, talvez porque a ave deles não voe. Assim que ela retornar, reproduzirá os diálogos que presenciou.

Tentavam se comunicar grunhindo em sua fala rudimentar. Esforcei-me para entender mas não foi possível. Como eu tenho inteligência para saber que falamos idiomas distintos, calei-me, pois sei que seria em vão tentar emitir qualquer opinião. Foi quando me estenderam um alimento nunca antes visto. Uma fruta com aroma estranho desagradável não apenas ao paladar como também ao tato. Por educação, provei aquela fruta áspera que praticamente se desfez quando a levei à boca. Desconfio que estivesse estragada. Temo que este alimento estragado os esteja deixando doente, bem como a sua ave, todos com o corpo estufado e odor fétido.

Ao final me entregaram mais objetos, que se encontram à sua disposição na Oca da Diurna Lista e se retiraram. Este é o relato. Em função do ineditismo do evento e da não colaboração do índio Urinã Piá que deveria dividir tarefas comigo, hoje não pude verificar aquela tribo que pretendemos invadir, os Carijós. Porém, analisando o histórico de minhas investigações, creio que não seja difícil, visto que são muito burros e desunidos. Como já relatei, o único cuidado que se deve ter é com o Cacique deles, Ti Xã.

Reitero meu protesto por estar acumulando funções de forma desnecessária. Relembro que além de Diurna Lista também me compete a função de Liga Lista apaziguando as divergências internas da tribo colocando-os em contato para mediar e dirimir os conflitos e ainda me cabe as apresentações de dança nos rituais. Não posso continuar assim, necessito de auxílio para cumprir todas as minhas tarefas, peço por favor que oriente o índio Urinã Piá a realizar sua parte, conforme acordado.

Minhas mais sinceras honrarias
Sallerê