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Flertando com o desastre: Tribo escondida.

| Somir | | 37 comentários em Flertando com o desastre: Tribo escondida.

Essa não é a primeira vez que esse tipo de imagem é divulgada, e provavelmente assim como as que foram expostas na mídia nos últimos anos, também não deve ser exatamente a realidade. Eu sei que o mundo é um lugar muito grande e que vastas áreas ainda não foram exploradas com a meticulosidade necessária para se definir que não existem povos escondidos… Mas o histórico recente não corrobora com a “virgindade” da tribo em questão.

Essas notícias costumam ser stunts publicitários de ONGs e pesquisadores autônomos caçando recursos para continuar seu trabalho. Não tenho as informações necessárias para cravar que é um desses casos, mas vamos tirar isso logo do caminho: É provável que seja uma meia-verdade.

E esse nem é o ponto do texto. Vamos considerar a partir de agora, para fins argumentativos, que a tribo em questão realmente nunca foi tocada pela civilização moderna. Agora, pense nos índios que vivem nessa comunidade isolada.

Pergunta: Esses índios são seres humanos?

Parece até pergunta retórica, mas toda vez que a ideia de um povo isolado vem à tona, muita gente parece ignorar completamente a noção de que essas pessoas são humanas e tem todos os direitos inatos que nós temos. A ladainha mais comum é que “devemos deixá-los em paz” e “não temos o direito de interferir em sua cultura e modo de vida”…

Gostaria de contra-argumentar com um documento que você talvez reconheça: A Declaração Universal dos Direitos Humanos. Sério, leia. Não, você não pode continuar lendo este texto até terminar… Desfavor é cultura, mesmo que na marra. Vai que o desfavor vai continuar aqui até você voltar.

Pronto? Pode-se argumentar que uma declaração dessas é quase um sonho no mundo onde vivemos, e que nenhum país está obrigado a seguir cada um desses pontos, mas vamos concordar que faz um imenso sentido como síntese do que deve ser a base de uma sociedade moderna? Não é dogma, é bom-senso e humanismo em uma das formas mais bem aceitas pela coletividade. Dos países modernos, boa parte segue (ou pelo menos meio que segue, como o Brasil) preceitos bem parecidos.

Afinal, são milênios de experiência nessa coisa toda de sociedade. Se você não vive debaixo de uma ditadura ou teocracia, goza (mesmo que em tese) de direitos muito parecidos com os definidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos. E fique feliz, você, independentemente da idade, é uma das primeiras gerações que sequer experimentou um mundo assim. Você nasceu e ganhou boa parte desses direitos, sem mexer uma palha.

E falando em palha, voltemos aos índios isolados. Você por algum motivo acha que eles não merecem ter esse mesmo pacote de direitos? Grandes merdas! Esse é o mundo moderno… Basta ser da espécie humana para ter esses direitos, independentemente da opinião alheia. Essa é a rede de segurança: Não é mérito, não se pode escolher quem vale ou não. É isso que protege, inclusive, a turma retardada (processa eu!) dos “direitos humanos para humanos direitos”.

Na posição de ser humano vivenciando as vantagens de não estar inserido numa sociedade bárbara, é no mínimo de um egoísmo impressionante não querer que façamos contato com essas tribos. Eles não tem culpa de terem ficado fora do mapa da civilização moderna até agora, e nunca tiveram a opção de viver de forma diferente. Pois é, não dava para chegar no nível que a gente encontrou quando nasceu apenas com meia dúzia de pessoas numa aldeia no meio do mato.

Sempre aparece um para dizer que não temos o direito de “aparecer” para uma tribo dessas. Sim, temos todo o direito. Se fosse realmente assim, ninguém poderia viajar, não? Nossa sociedade é baseada em contato e troca, evidente que algumas precauções, principalmente com doenças para as quais os índios não tem imunidade, precisam ser tomadas. Evidente que isso tem que ser feito de forma gradual e controlada, mas privá-los desse mundo de coisas que temos aqui nas selvas de pedra é justamente o inverso de respeito pelo ser humano.

Enfiem essa história de que “eles são felizes assim” e “é só o que conseguem compreender” no cu. Esse tipo de mentalidade que aliviou a consciência de exploradores e escravagistas pela nossa história, e se provou terrivelmente equivocada com o passar do tempo. Sem escolha, um ser humano deixa de ser humano.

É bonitinho dizer que seria mais feliz vivendo na natureza sem as preocupações da vida moderna, mas é uma afirmação vazia de gente que só diz as coisas por atenção. O caralho que viver numa sociedade pré-histórica é uma vantagem em relação ao que temos hoje em dia. Viver numa aldeia perdida no meio da selva não é sinônimo de férias relaxantes no campo.

Se temos padrões mínimos com os quais comparamos nossa sociedade para definir se as pessoas estão vivendo de forma digna e decente, faz algum sentido jogar tudo no lixo porque algumas pessoas nunca ouviram falar disso? O babaca enxerga a vida de índios isolados como um filme da Xuxa, com muito respeito pela natureza, paisagens paradisíacas, gente simples e feliz (e possivelmente alguns números musicais). SPOILER: Viver numa sociedade dessas faria a maioria dos mimadinhos da civilização pedir pela mãe em questão de semanas.

Quem se presta a usar o conteúdo do crânio enxerga pessoas sem acesso a educação de qualidade, medicina moderna, segurança e respeito aos direitos humanos. Índio enterra criança viva para melhorar a colheita. Índio mata e come índio rival… São humanos. Um misto de bom e ruim, como todos nós, mas alienados de quase tudo o que convencionamos (com muita lógica, até) como básico para qualquer ser humano.

O que se pensa quando se encontra um grupo de lavradores presos numa fazenda perdida trabalhando em regime de semi-escravidão? Eles trabalham apenas para subsistência, não tem direitos, não tem para onde ir… Não achamos feio quando sabemos que alguém perde a capacidade de escolher os rumos da própria vida? Os índios não poderiam nem saber se a vida deles é uma merda (ou maravilha, para os babacas). Não é humano deixá-los no escuro de propósito.

E a escrotidão do argumento de que não se deve se aproximar dessas tribos isoladas passa muito pela ideia de que diríamos algo muito parecido sobre um grupo de chimpanzés no meio da floresta. No quesito de capacidade de construção intelectual, animais irracionais são fotos e seres humanos são filmes. É razoável acreditar que um macaco não vá realmente ganhar muito sendo trazido para a civilização, mas quando se aponta esse tipo de mentalidade para outros seres humanos, a coisa começa a ficar muito errada.

Principalmente porque vivemos trazendo (voluntaria ou involuntariamente) animais irracionais para o nosso convívio. Porra, a humanidade moderna criou um ambiente de sonho para as baratas (nunca foi tão fácil para elas), mas vai deixar de esticar a mão para pessoas? Pode domesticar cachorro, deixá-los gordos e mimados, mas oferecer ao menos a possibilidade dos confortos da vida moderna para outro ser humano é moralmente errado? Parafraseando Sally: Vão se foderem.

É querer que outro ser humano fique na merda (sociedade pré-histórica é uma merda, se não fosse teríamos nos contentado com ela) só para termos alguém para quem apontar. Me arrisco a dizer que esse tipo de opinião tem muito a ver com a necessidade do ser humano médio acreditar que está sempre mais fodido que os outros, que seus dramas são sempre maiores e seus esforços sempre mais grandiosos. Cidadão acha que ele que está vivendo a vida difícil e que o índio está deitadão na rede comendo uma fruta exótica e beliscando a bunda de uma jovem peladona.

Isso alimenta aquele sonho de que não depende de si mesmo para melhorar de vida, que tudo é destino e que vai se dar bem automaticamente depois que morrer. Deus nos livre das responsabilidades, amém!

E nem comecem com a história da “rica cultura” que pereceria. Cultura de povos isolados assim é basicamente a mesma coisa há séculos, senão milênios. Basta catalogar e tacar num livro, filme ou disco para não perder. Não vai rolar alguma grande mudança se deixarmos os indígenas quietos. Culturas são seres vivos, nascem, vivem e podem muito bem morrer. Se a cultura do povo encontrado bater as botas por causa da nova apresentada pelo homem civilizado, é a natureza em curso. Vamos forçar o índio a continuar se prestando àqueles papéis ridículos (sério, folclore costuma ser queimação de filme pura, as pessoas seguem cada vez menos tradições antigas porque elas são bregas e sem graça mesmo… meritocracia cultural tem que valer para os índios também…) só porque é divertido e curioso de observar? Se eles quiserem atuar para as pessoas, que pelo menos tenham essa escolha.

E nos casos onde a cultura dos povos indígenas apresenta características que ferem o que julgamos como ético? Vale a pena ver uma criança ser mutilada num ritual inútil só para fins de preservação? O padrão ético de um povo que criou a Declaração Universal dos Direitos Humanos é claramente melhor do que a do povo que ainda nem pensou na roda… Não estou pregando atropelamento, estou dizendo que não é presunçoso achar que esses índios podem sim se beneficiar com o contato. E também que deixar de oferecer oportunidades de absorção pela cultura civilizada é negar para eles os direitos que deveríamos todos ter…

Artigo 2°

Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação. Além disso, não será feita nenhuma distinção fundada no estatuto político, jurídico ou internacional do país ou do território da naturalidade da pessoa, seja esse país ou território independente, sob tutela, autônomo ou sujeito a alguma limitação de soberania.

Se eles nem sabem que isso existe, é repulsivo não tentar nem expor. São direitos. Se depois de confrontados com as informações relevantes, alguns quiserem tentar a vida longe do mato, que tenham essa possibilidade.

Não confundam, por favor, com a forma impositiva como missões religiosas invadem comunidade indígenas e praticam estelionato espiritual com pessoas sem os subsídios necessários para reagir de forma adequada. A escolha da qual falo hoje não é submissão ou danação eterna. Antigamente era na base “adore Jesus ou resolva direto com ele”, não duvido que ainda existam exemplares dessa mentalidade catequizando pobres coitados por aí.

Claro que a aculturação dos nativos feita por nossos antepassados foi desastrada, claro que podemos ver a presença do europeu como uma invasão injusta… Mas tem um velho ditado indígena que diz: “Agora a merda está feita.”

Sabemos como fazer do jeito certo muito por causa dos absurdos de quem veio buscar ouro e deixar Gezuiz na cabeça dos peladões originais desta terra. Agora, isso não é desculpa para assumir uma postura cretina de desumanização de gente que não se parece com… a gente. Se o padrão de humanismo atual prega que todos temos direitos, TODOS temos direitos. Inclusive de saber quais são eles.

Não estou querendo só pegar no pé de quem faz comentários piegas sobre notícias do tipo que ilustra esta postagem, podemos olhar para dentro da nossa sociedade e perceber como de certa forma, toda favela é uma tribo isolada (à força).

Não tem caminho que preste para a nossa espécie que passe pela desumanização seletiva. Escolher conscientemente manter alguém em estado de subsistência, sem educação e dignidade é tratar gente como bicho. E ninguém tem esse direito.

Para dizer que adoraria que eu fosse para o Peru ensinar índio a usar iPhone e ficasse por lá, para reclamar que não vai mais se achar sábio(a) ao papagaiar essas merdas de que vida simplória que é boa, ou mesmo para dizer que meus textos são programa de índio: somir@desfavor.com


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