Sorriso forçado.

+Ela foi a primeira mulher a aparecer em um dos esperados eventos anuais na Apple – aquele em que a empresa anuncia seus novos produtos. Mas não era de carne e osso. Tratava-se de uma fotografia. E como a moça mantinha um semblante bem sério, o diretor de design da empresa de software Adobe, Eric Snowden, editou sua imagem em pleno palco até que seus lábios carnudos e vermelhos se convertessem em um sorriso. (…) No entanto, enquanto o público aplaudia o sorriso da modelo no auditório, comentários pipocavam no Twitter questionando a apresentação.

Ofender-se está na moda. Qualquer motivo é válido, isso é, qualquer menos algum que realmente tenha méritos. Desfavor da semana.

SOMIR

Ultimamente eu consegui um avanço considerável na compreensão da questão do sexismo e dos problemas que as mulheres enfrentam diariamente. A minha simpatia pelo feminismo aumentou na mesma proporção. Muito embora eu ainda implique com o nome do movimento, afinal, é uma questão de direitos humanos, houve sim uma mudança na compreensão do valor dessa luta.

O que antes me parecia vitimização agora soa bem mais razoável. Mas, como sempre, as pessoas acham um jeito de desanimar quem resolveu levar o assunto a sério. É difícil estender a simpatia pelo movimento a quem enxerga abusos contra as mulheres até numa bobagem como essa. E pior, pra muita gente, só torna as feministas ainda mais caricatas no cômputo geral. De uma certa forma, é abusar da hospitalidade.

A história se desenrola da seguinte forma: a Apple está lançando um tablet de alto desempenho para quem trabalha com artes gráficas. Nessa área, ainda não estamos na era da mobilidade, eu mesmo desconfio bastante de quem usa algo como um notebook para trabalhar. Você precisa de uma tela grande e de um computador potente para realmente dar conta das minúcias do trabalho. Não estou dizendo que é impossível, mas… algo se perde nos limitados computadores móveis.

Seja como for, é importante entender como nessa apresentação o público-alvo não era o usuário médio. Queriam empurrar o produto para pessoas como eu, por exemplo. Quem já modifica imagens de pessoas para ganhar a vida. Porque nada mais comum do que mudar expressões ou mesmo rostos e corpos inteiros quando se monta uma imagem para fins comerciais. Fazemos homens, mulheres e crianças sorrirem. Se achamos que a foto de uma família está estragada por causa de uma criança que achamos pouco estética, colocamos outra no lugar. Pode até tratar o assunto com o preciosismo de ser contra essas alterações pela artificialidade do produto final, mas há de se entender que nesse caso a genitália da modelo em questão é irrelevante.

Achar que a ideia era reforçar um estereótipo de mulher sendo forçada a sorrir pelos homens ao seu redor é demonstrar ignorância sobre o mercado da produção gráfica. Pior, é procurar pelo em ovo só para se fazer de ofendida nesse (pouco) admirável mundo novo da indústria da ofensa. Eu até concordo que mulher acaba tendo menos direito a ser séria na nossa sociedade, mas daí a esperar que a solução seja “respeitar” a expressão da foto de uma modelo é demonstrar incapacidade de compreensão de contextos.

Esse tipo de estresse indiscriminado só faz mal para os envolvidos. Parece e é exagero. Como se o inverso da mulher que sorri para agradar a sociedade seja uma feminista ridícula implicando com tudo! Então mulher não tem direito a um meio termo assim como os homens? Ou é uma ferramenta para perpetuar sua infantilização, ou é uma chata mal humorada que se mete onde não foi chamada para reclamar? Oras, isso não reforça a ideia que mulheres são montanhas-russas emocionais incapazes de viver plenamente no mundo dos adultos?

Quem quer ser visto como uma criatura dotada de bom-senso pratica o bom-senso. Não adianta exigir ser vista de uma forma e agir contraditoriamente. As mulheres que piraram com esse sorriso feito numa tela estão apenas demonstrando como tem baixa compreensão do funcionamento de um mercado inteiro. Meninas mimadas querendo ser o centro das atenções. Se quer ser vista como adulta, aja de acordo.

Até porque se tem algo para tirar dessa história, é a popularização do poder de alteração das imagens. O produto foi feito para quem trabalha na área, mas logo logo esse poder vai estar nas mãos de quem não se esforçou por ele. Não, não quero amarrar Prometeu numa pedra, é natural que na sanha de facilitar a vida de profissionais algumas funções se tornem triviais o suficiente para o grande público fazer uso. Não é nem querer fazer reserva de mercado, até porque entre conseguir usar a ferramenta e saber o que fazer com ela vai muito chão.

Mas numa sociedade onde parecer começa a suplantar o ser, onde a vida da rede social tornou-se uma entidade paralela onde se ostenta felicidade e manipula-se as informações para exibir uma experiência diferente da real, o poder de manipular fotos consistentemente é um convite ao escapismo. Eu me divirto vendo as pessoas fazendo desastres no Photoshop ao tentarem diminuir pneus ou aumentar músculos, porque ainda é tremendamente óbvio até mesmo para olhos destreinados. Acho engraçado que alguém olhe para uma montagem horrível e ache bom o suficiente para soltar para o mundo.

É muito revelador: as pessoas tem imagens tão tortas sobre si mesmas que ignoram as evidências que deixam para trás ao alterarem suas fotos. Uma cegueira sobre tudo que não seja ela mesma. Você sabe exatamente as inseguranças de alguém de acordo com as alterações toscas que fazem sobre sua auto-imagem. Já temos muitas ferramentas e truques amplamente utilizados, o cidadão médio já aprendeu a se esconder em ângulos e filtros mais abonadores, mas ainda não sabia alterar a realidade na escala desejada.

Essa era está chegando. O fogo vai estar na mãos deles, Zeus gostando ou não. As pessoas vão ter essa ferramenta, seja lá para quê quiserem usá-la. Podemos ver uma era de avanços, mas provavelmente vamos ter vários incêndios. Até admito que gente modificando fotos profissionalmente criou esse desejo pela ilusão acima da imagem real, mas havia um certo controle de quem poderia ou não fazer uso desse poder. Quando ele cair nas mãos do grande público, a última barreira para que o virtual suplante o real cai junto.

Talvez percebamos o erro, talvez tenhamos incontáveis sorrisos forçados. Eu apostaria mais na segunda opção.

Para dizer que meu texto te oprimiu, para dizer que feminista de Twitter é que nem torcida organizada (caga pro time e só quer aparecer), ou mesmo para dizer que gostou do texto, mas forçado: somir@desfavor.com

SALLY

A Apple está disponibilizando em larga escala a possibilidade de alterar feições humanas ao alcance de todos. Complicado, muito complicado. Muito mais complicado do que reclamações sexistas sobre os males de fazer uma mulher sorrir. O aplicativo, chamado Photoshop Fix permite que leigos transformem com facilidade expressões faciais humanas através de um sistema que reconhece componentes do rosto, como no caso, a boca.

Isso pode mudar a forma como vemos a fotografia. Se já não era muito confiável quando usada para fins comerciais, devido aos inúmeros retoques de Photoshop, agora nenhuma fotografia será confiável e ponto final. Vamos entrar na era da mentira absoluta em matéria de imagens: uma foto do seu namorado(a) sorrindo ou piscando para uma mulher não terá valor algum, tudo pode ser emulado por um Brasileiro Médio applemaníaco.

Com isso, todos os registros de imagem perderão o valor. Vamos perder uma prova muito valiosa, que é a fotografia. Ela já salvou muitas pessoas e condenou muitos babacas. Estamos perdendo esse recurso. A fotografia como forma de retratar a realidade vai se perder. Toda a mentira e a falsidade que já contaminam a escrita nas redes sociais e na internet, onde as pessoas escolhem o que querem ser, vai migrar para as imagens.

Sim, o discurso sexista raivoso contra a demonstração foi péssimo, como bem apontou o Somir, inclusive por vir de nomes conceituados e não de Humanos Médios, como por exemplo da Editora de Tecnologia do jornal The Guardian. Foi péssimo pois além de equivocado e histérico, fez exatamente o que a Apple esperava: deu publicidade a um tablet ridiculamente caro (sem os impostos, que serão muitos, ele custaria 4 mil reais no Brasil). A burrice de divulgar o que se acha errado continua, e vem de cabeças que supostamente deveriam ser pensantes. Mas, nada supera a morte da credibilidade das fotos caseiras.

Você pode até alegar que exista o Photoshop, que ajuda pessoas comuns a modificarem suas fotos até elas ficarem quase que irreconhecíveis em redes sociais. Ok, hoje existe um recurso para retocar, para melhorar, mas não para modificar uma feição. Um programa que reconheça o rosto humano e emule sentimentos ao alcance do povão é uma bomba-relógio. Vamos perder o último resquício de humanidade nas fotos: as expressões.

Para que serve uma foto se não para capturar um momento do qual queremos lembrar em outras ocasiões? Para nada. Mas hoje em dia serve sim, serve para se promover, para se adorar, para se vender, para atrair olhares do sexo oposto (ou do mesmo sexo, não faz diferença), para conseguir uma resposta social que te beneficie alimentando seu ego ou despertando outros sentimentos que sejam convenientes (pena, raiva, etc). A foto de hoje é tirada pensando nos outros, na exposição.

Eu sou do tempo em que se tiravam fotos para você mesmo, para capturar o momento e relembrar dele depois, não para expô-lo. Tantas ferramentas para maquiar a realidade e conseguir a reação desejada quando da exposição da foto me chocam. Além de me parecer doentio tentar passar uma imagem do que não se é, me parece burro, pois qualquer um que chegar perto vai perceber que a realidade é bem diferente do que foi apresentado. Talvez por isso ninguém deixe ninguém chegar muito perto nos dias de hoje.

Lembro dos tempos onde a tecnologia era desenvolvida pensando no conforto do usuário. Era funcional, buscava facilitar e melhorar a vida de quem usava os eletrônicos, otimizar tempo, aumentar a segurança. Vendo as últimas inovações da Apple, a impressão que fica é a de que toda a tecnologia está sendo voltada para alimentar essa “secondlife”, a vida virtual, que em breve vai ser mais importante que a real, isso se já não o é.

Dói. Eu sou fã incondicional da vida real, do olho no olho. Perceber que todos os investimentos, que as novidades que ditam tendência estão voltadas para emular uma segunda vida virtual me mostra o que está por vir: ainda mais valorização para emulação no mundo virtual. Além de fazer meu sentimento de inadequação e não-pertinência aumentar, sinto que a humanidade perde com isso também. Sinto uma desesperança e a impressão que o que quer que esteja em uma tela de computador “é tudo falso”.

Ofendeu as mulheres fazerem uma foto de uma moça sorrir? Pois a mim ofende ao ser humano. Qual é a suposta utilidade de emular expressões humanas e sentimentos? Mentir, só pode. Por qual motivo eu vou querer emular um sorriso em uma foto de alguém que não estava sorrindo? Podem me chamar de antiquada (sou mesmo), mas para mim só serve se for sorriso sincero e voluntário, nenhum outro tem valor. Não é o sorriso em si e sim tudo que ele representa. Estou afrontada com esse novo brinquedinho da Apple.

Só eu. O mundo todo parece estar maravilhado pela tecnologia ou emputecido pelo “desrespeito” com as mulheres. Desculpa a arrogância, mas o ponto que eu critico me parece tão mais importante e profundo…

A Apple está “certa”, essa é a demanda e é isso que eles tem que apresentar para ganhar dinheiro. Não faltarão panacas que paguem 5, 10 mil reais por um tablete que muda feições de seres humanos (e sabe-se lá o que mais) em fotos, que saiba emular emoções humanas. Pagarão primeiro por ser cool, por ser status e segundo para estarem um passo à frente, em vantagem, nesse grande e doentio joguinho de emular sentimentos online. Parabéns, otários.

Vamos emular tanto os sentimentos através desses iCraps que em breve não saberemos mais esboçar um sorriso sincero, afinal, é cada vez mais raro uma pessoa que ria por estra feliz, o sorriso hoje é para aparecer, ostentar. Se puder ser emulado em uma foto, sorrir pra que?

Para dizer que nosso desprezo pela Apple está virando marca registrada, para creditar tudo à inveja ou ainda para perguntar se vai lançar um desses que conserte caráter: sally@desfavor.com

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