A onda dos revivals provavelmente não vai mais parar: com tantos filmes e séries que já fazem parte do inconsciente coletivo da humanidade, sempre vai ter algo para refazer ou usar de base na grande mídia. Sally e Somir resolvem olhar para o lado positivo dessa história e escolher quem fez isso melhor recentemente.

Tema de hoje: qual a melhor série “revival” dos últimos tempos?

SOMIR

Eu sou um homem simples, eu vejo Twin Peaks, eu voto em Twin Peaks. Para quem não conhece a série, eu vou escrever o texto todo sem dar nenhum spoiler, porque realmente vale a pena assistir. A série original foi ao ar entre abril de 1990 e junho de 1991, e talvez a melhor definição de gênero seja mistério. Mas… é mais do que isso: a série passeia entre humor, surrealismo, terror e insanidades em geral enquanto estabelece uma investigação policial numa pequena cidade americana.

A premissa é a descoberta do corpo de uma estudante da cidade de Twin Peaks, enrolada em plástico nas margens do rio local. Um agente especial do FBI é enviado para a cidade para investigar. Séries sobre investigações são comuns, descobrir quem matou tal pessoa é um dos elementos mais básicos de qualquer série ou filme de mistério.

E nesse ponto básico, a série não decepciona (muito… mais sobre isso depois) com uma trama que se complica a cada episódio, com a participação de praticamente toda a cidade no mistério sobre a morte da garota. Se fosse uma série normal, já daria conta de carregar a tensão e as reviravoltas esperadas do tema.

Mas Twin Peaks não é uma série normal. Bolada e dirigida por David Lynch, um notório maluco genial, Twin Peaks pega todos os clichês de tramas policiais e vai te desequilibrando com o passar dos episódios. Desde o começo, você sente que tem algo “errado” ali, não só pelo desenvolvimento da história, como pelo tom escolhido, a forma como as cenas são feitas, as reações das personagens.

É como se você começasse a desconfiar que está num sonho, mas nada é explicitamente maluco o suficiente para confirmar essa desconfiança. É algo mais sutil, que vai te sugerindo aos poucos que as coisas não são como parecem ser. E não é te dando sustos ou forçando cenas fantásticas o tempo todo, é como se todo mundo estivesse um milímetro fora da posição esperada, algo que você sente antes de ver.

E se você parar de ler o texto agora e começar a ver, vai achar que eu estou te sacaneando. A série por muitas vezes parece humorística, as personagens são divertidas, muitas delas bem carismáticas. O roteiro parece que está montando uma cena de comédia, mas o clima ainda é pesado. Não é o chamado “humor negro”, é a graça do contraste de situações e de personalidades no meio de uma situação terrível como o assassinato de uma jovem.

Mas aos poucos, Twin Peaks começa a sair dos trilhos de uma trama policial comum. Eventualmente você não sabe mais o que diabos está assistindo, as cenas começam a ficar mais e mais malucas… mas ainda há uma lógica interna na série que te mantém interessado. As personagens te conquistam e o mistério vai tomando proporções muito maiores.

Mas nem tudo são flores. Em 1990, David Lynch ainda não tinha o tamanho que tem hoje em dia. Os executivos da emissora foram no pescoço dele, forçando-o a tornar a série mais palatável para o americano médio, querendo reduzir custos, forçando uma conclusão para o mistério. Lynch foi obrigado a ceder, mas o fez nos seus termos: o final da segunda temporada tem uma grande dose da putez do diretor com a emissora.

Se eu estivesse escrevendo esse texto em 2016, avisaria que infelizmente a série acaba com o diretor mandando um dedo do meio para os executivos da emissora, o que poderia estragar um pouco o excelente conjunto da obra. Mas o tempo passou. Em 2017, Twin Peaks voltou. A Showtime separou uma verba, chamou Lynch e disse pra ele: “vai ser feliz!”.

Lynch foi lá e fez a continuação. Mais de 25 anos depois, não tinha mais como pegar a série de onde ela parou, então, temos que aceitar que a original parou onde parou, mas… quando a coisa é feita de coração, funciona. Twin Peaks continua nos dias atuais (vulgo 2017) com algumas das personagens da série original tentando resolver a situação que o “vai se foder, emissora!” do final da segunda temporada criou.

Se você viu a original, sabe que tem que dar tempo pra história assentar. Twin Peaks começa devagar na versão original, e não é muito diferente no revival. Mas não se preocupe, é essencial para a experiência: primeiro você tem que se acostumar com o mundo da série para que ela possa te levar para os lugares muito malucos que estão no caminho até o final.

Eu fiquei reclamando com a tela, admito: “Lynch, desgraçado, de novo? Avança logo essa história!”. Mas fui recompensado por dar mais essa chance para ele e sua série. Assim que Twin Peaks se estabelece de novo, começa a ficar muito divertida de novo. Na primeira versão, você acompanha um mundo pacato que parece esconder alguma coisa muito estranha, no revival, é como se houvesse algo pronto para atacar a qualquer momento, é uma tensão diferente, mas que “rima” com a versão original.

Ao contrário da escolha da Sally (que também é muito boa), a minha depende muito de você ter visto a série original. Não dá para se estabelecer só com uma memória vaga do tema original, a graça é justamente ter uma conclusão para o tiro de 12 no peito que foi o final de Twin Peaks original. Foram necessários 25 anos para lidar com o golpe, mas agora que se reergueu, entrega o prometido. Lynch está livre para ser Lynch e te deixar maluco tentando entender o que está acontecendo. Não se preocupem, é divertido passar por essa experiência.

Estou sendo vago sobre a história porque quanto menos você souber sobre Twin Peaks antes de ver Twin Peaks, melhor. Não pesquise nada, só vá assistir a série original (é de uma cafonice espetacular, você vai se acostumar e perceber a graça de algo escondido por trás daquilo tudo), e quando vir o último episódio do original, não vai ter a mesma sensação de perda e confusão que eu tive, porque vai ter o revival lá, prontinho para resolver as pontas soltas e te entregar mais uma temporada inteira de maluquice de altíssimo nível.

É uma experiência, finalmente completa. Por isso se torna imbatível pra mim.

Para dizer que já viu e minha descrição sem contar nada é estranhamente correta, para dizer que nunca viu e agora que não vai ver mesmo, ou mesmo para perguntar onde pirateia (tinha na Netflix): somir@desfavor.com

SALLY

Qual é o melhor seriado “revival” (relançamento ou continuação de algo antigo)?

Cobra Kai! Para quem não sabe, Cobra Kai é a continuação dos filmes “Karatê Kid” e, ao contrário dos filmes, é muito bom!

Twin Peaks também é bom, mas o original era bom e o atual continua bom. Cobra Kai não, Cobra Kai é uma volta por cima como eu nunca vi. Mesmos personagens, um tom completamente diferente, um gênero completamente diferente: passou de uma aventura adolescente a uma comédia politicamente incorreta.

O seriado é tão surpreendente que eu mesma não fazia a menor questão de ver. Só fui ceder e assistir depois de muitos comentários positivos do Danilo Gentili, não fosse isso, jamais teria parado para assistir uma continuação de “Karatê Kid”. Nem o filme eu tinha visto! E, de fato, depois que vi Cobra Kai, ainda cheia de pé atrás, me surpreendeu positivamente.

Fazer algo politicamente incorreto já é difícil hoje em dia, quem dirá migrar de um filme clichê de superação para isso. O protagonista herói, o menino mais fraquinho que apanhava de todo mundo (Daniel LaRusso, ou apenas Daniel San) e no final se supera vencendo um campeonato de luta vira um pai de família chato, enquanto o grande vilão, o menino maior que fazia bullying (Johnny Lawrence), vira o protagonista, muito mais interessante do que o personagem bonzinho.

Além das piadas com minorias no geral, também fazem piada com eles mesmos, sobre como estão velhos, sobre como são canastrões. Fazem referências divertidas ao passado, trazem atores que participaram do filme para o seriado em contextos muito divertidos e tratam de assuntos delicados sem o menor respeito ou sutileza.

De um filme totalmente preto no branco, onde havia um bonzinho escrotizado e um malvado escrotizante, criaram nuances de personagens: conhecendo cada um deles melhor se percebe que ninguém é 100% mocinho nem 100% bandido. Humanizaram os personagens e deram protagonismo para o mais tosco, o mais incorreto, o mais sem noção.

Não se levar a sério é uma arte que poucos ainda conseguem praticar de forma não-grotesca. Cobra Kai consegue. LaRusso e Lawrence brigam o tempo todo de forma patética e sem maturidade. Não é em qualquer lugar que você pode ver uma briga entre dois adultos onde um picha um passaralho na boca do outro em um outdoor de publicidade – isso fica divertido (veja uma prévia aqui).

Além disso, Cobra Kai tem porrada de verdade. Porrada séria. Não é lutinha coreografada com movimentos harmônicos como no filme. É porrada porrada como faz tempo eu não via. Porrada com sangue, com fratura, com dente quebrado.

E, o melhor: a porrada come entre os menores de idade, a ponto de um deles ir parar no hospital paraplégico. Essa cena deve ter uns dez, quinze minutos de muita porrada entre crianças, dentro de uma escola, um grau de pancadaria que nem em filme do Rocky eu tinha visto. Acho que nunca vi uma porradaria tão forte, nem em filme do Chuck Norris.

E quando eu falo em politicamente incorreto, eu não estou falando do nível básico, e sim do nível avançado. Estou falando de professor tripudiando em alto e bom som, na frente de toda a turma, de aluno lábio leporino, apelidando-o de “lip” (lábio). E o seriado ainda consegue fazer disso algo positivo, mostrando o valor didático do bullying-arte.

É um patamar de abuso ao cruzar a linha do que é permitido tão grande, que eu gostaria de Cobra Kai se surgisse do zero. Mas ganha ainda mais mérito por ter nascido de algo tão cagado e datado como Karatê Kid. É como uma flor que nasceu no meio do estrume. Cobra Kai é um sopro de esperança: qualquer porcaria pode se transformar em uma coisa boa com os roteiristas certos e com o tom certo.

A maior prova de que o troço é bom é que ninguém acreditou no seriado, ninguém quis fazer e, quando a primeira temporada estreou no YouTube (YouTube Premium) rapidamente foi comprada pela Netflix. Fazer algo que ninguém botou fé funcionar com um orçamento baixo e fazer a Netflix correr atrás de você não é para qualquer um e certamente merece a sua atenção.

Cobra Kai não partiu do zero, partiu de menos um, e, com todos esses obstáculos no caminho, se transformou no seriado mais visto do ano, não na Netflix, mas entre todos os streamings (medindo o número de minutos visualizados por produção). Tem algo de especial acontecendo, não tem como negar.

Então, não é apenas uma opinião minha, parece que muita gente gostou de Cobra Kai. Em um mundo com Amazon Prime, Disney Plus, Netflix e tantos outros, com centenas de produções novas todos os meses, ser o mais visto tem um grande mérito, principalmente quando se parte de uma presunção negativa. Cobra Kai é o exemplo de superação muito melhor do que Daniel San foi em Karatê Kid.

Quer rir? Quer ver criança trocando muita porrada? Quer ver bullying didático? Está de saco cheio do estilo HBO e quer ver algo muito legal sem ser apelativo (sexo, nudez e baixarias)? Quer ver um seriado e personagens que não se levam a sério e riem deles mesmos e dos outros? Quer ver aquele tipo de coisa que você diz “não acredito que eles tiveram coragem de dizer isso!”?. Cobra Kai.

Retornar décadas depois e continuar apresentando um bom trabalho, vários já fizeram, como por exemplo, Arquivo X. Mas pegar algo ruim, brega e politicamente correto e transformar em algo engraçado, divertido e politicamente incorreto, eu nunca tinha visto. Sério mesmo, dê uma chance a Cobra Kai, você não vai se arrepender.

Para dizer que se quisesse ver criança saindo na porrada olharia para sua família, para dizer que se quisesse ver bullying iria para a aula ou ainda para dizer que sua ideia de diversão não é tripudiar de um lábio leporino: sally@desfavor.com

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Comments (10)

  • Não curto muito ver séries. Com exceção de South Park, difícil hoje em dia eu acompanhar algo com afinco. Nem anime mais tô acompanhando.

    Não sei explicar bem, mas desenvolvi um preconceito gigantesco com tudo relacionado ao que chamo de “geração Nétifrixi”, que mete o bedelho em tudo e se sente fácil um expert em crítica cult. Aí se você fala que não conhece ou não tem interesse em algo, a pessoa até fecha o semblante “ué, como assim você não passa milênios com a bunda colada no sofá vendo série, o que você faz da vida, ô meu??”

    Não sei se é alguma trilha neural minha que determina que “falou de série, falou de Netflix, então falou de geração pseudo-descolada, lacração e pretexto pra sécso”, mas não consigo mais ver sentido em assistir dezenas ou até centenas de episódios de séries.

    • A Netflix, como qualquer outro meio, tem uma pá de bosta, um monte de modinha e algumas poucas coisas boas.
      Tem que saber filtrar até achar as coisas boas. Eu te entendo, mesmo antes de Netflix, eu passei anos ignorando The Big Bang Theory por achar que era um modismo idiota, e quando vi, amei.

  • Cobra Kai.
    Zabka carrega o seriado nas costas.
    Desanimei um pouco quando começaram a dar foco nos moleques. Todos péssimos. Só servem pro verdadeiro Karate Kid trollar.
    Vou providenciar minha camisa do Cobra Kai.
    A propósito.
    No excelente “How I Met You Mother”, o mais que excelente Barney, já havia nos ensinado sobre o golpe ilegal e toda a verdade por trás do verdadeiro babaca da história.
    Nerds dirão que não, mas penso que o argumento de Barney foi mais que um empurrão para o seriado.

      • Deve ter sido uma das cenas de luta mais longas que posso me lembrar.
        Mas, melhor ainda, foi como o Johnny resolveu recuperar o movimento das pernas do Miguel.
        “Dont be a pussy! Get up and grab the naked woman magazine!”
        Ou algo do tipo.

  • Eu também estava com os dois pés atrás em assistir Cobra Kai, já que virou moda fazer remake/reboot/revival com personagens e tramas totalmente destoadas da original pra agradar certos grupinhos chorões. Mas depois de um amigo meu me pentelhar horrores para assistir, resolvi dar uma chance e realmente foi uma grata surpresa. Dei risada demais dos absurdos politicamente incorretos e principalmente do Johnny Lawrence, um típico tiozão dos anos 80, tentando se adequar aos costumes do mundo digital (e sofrendo com isso). E realmente as cenas de porradaria são muito bem feitas. Aquele quebra-pau no colégio me impressionou pela verossimilhança. Rinha de adolescente no seu auge.

    Enfim, é aquele revival que ninguém pediu, porque ninguém sabia que seria tão bom (agora é torcer pra Netflix não estragar tudo).

  • Bernardino Teixeira

    As duas séries são boas; lembro-me de ver Twin Peaks original e não entender patavina devido à pouca idade (e experiência); anos depois, mais maduro e calejado, fiquei surpreso com a qualidade da série e este revival não fica devendo nada à original (David Lynch é totalmente inesperado: quem consegue assistir “Veludo Azul” e manter a sanidade, merece um prêmio). Cobra Kai também é surpreendente, pois partiu de uma premissa totalmente ingênua (filmes de adolescentes da década de 1980) para criar um mosaico de personagens bem construídos e uma trama elaborada.
    Na minha humilde opinião, um revival dos “Arquivos X” seria bem interessante: com o que estamos passando atualmente o que não iria faltar seria roteiro…

    • O revival de Arquivo X que já foi feito é maravilhoso. Tem o que eu considero um dos melhores episódios de todos os seriados de todos os tempos: o terceiro episódio da 11° temporada, “Mulder and Scully Meet the Were-Monster”. Infelizmente acho que a série não volta, pois a Gillian Anderson já disse várias vezes publicamente que não voltaria a interpretar a Scully.

      • Um dos meus irmãos gosta tanto do Arquivo X que viajou para Vancouver após saber que havia um tour pelos cenários das cinco primeiras temporadas filmadas lá (quem é fã, disse ele, percebe que as últimas temporadas seriam mais ensolaradas porque eram filmadas em Los Angeles), bem como cenários de outras séries. Por exemplo, se não me engano, a fundação Phoenix (McGyver) era o prédio da companhia de saneamento básico da cidade…

        Infelizmente, como a série já tem quase 30 anos desde seu início, ele notou que muitos dos cenários deram lugar a prédios residenciais quando voltou lá há uns 3, 4 anos.

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